17 dezembro 2004

Cleópatra



Nota: 6

O road movie, gênero reflexivo por excelência, serviu bem ao cinema da Retomada na sua busca por um perfil popular, genuinamente brasileiro. Nada mais normal que seja também ferramenta dos argentinos nestes tempos incertos em que o cinema vai bem mas o país segue em dilemas. No caso dos realizadores portenhos, o filme de estrada tem uma cara muito bem definida: significa deixar a redoma de Buenos Aires, hoje desmistificada, e rumar ao interior campestre, procurar entre traços indígenas e cenários bucólicos a identidade nacional perdida.

Partilham dessa idéia da "Argentina Profunda", em maior ou menor grau, filmes de estrada ou não, obras como Lugares comuns (Lugares comunes, de Adolfo Aristarain, 2002), Pântano (La Ciénaga, de Lucrecia Martel, 2001), Histórias mínimas (de Carlos Sorín, 2002), Sangre (de Pablo César, 2003) e Família Rodante (de Pablo Trapero, 2004), estes dois últimos inéditos no circuito comercial daqui. Legítimo representante das epopéias motorizadas, província após província, Cleópatra (2003), de Eduardo Mignogna, também está à procura de si mesmo.

A senhora do título ganhou esse nome - não cansa ela de explicar na tela - devido ao amor do pai pelos clássicos. A fenomenal Norma Aleandro, a velhinha de O filho da noiva (El hijo de la novia, de Juan José Campanella, 2001), empresta à personagem a sua doçura irresistível. O problema é que Cleo vive triste: resiste em empregos bissextos, os filhos todos se foram e o marido aposentado (Héctor Alterio) resmunga dia após dia com a garrafa de vinho na mão contra as desgraças econômicas da nação.

Quando jovem ela queria mesmo era ser atriz. Por isso se enche de coragem quando acaba chamada para um teste de televisão. A experiência não é das melhores - Cleo acaba consolada pela estrela de novela, Sandra (Natalia Oreiro), figura igualmente infeliz, mas por motivos opostos. Sandra tem votos de fartura, pinta como a nova estrela latina no caminho de Hollywood. Mas ela não quer nada disso. Idealista, sonha com amores verdadeiros, com um anonimato consagrador. E Sandra acaba convencendo Cleo a viajar. Rumarão à cidade natal da moça, como Thelma e Louise deixando a rotina para trás e dirigindo sem preocupações.

Antes disso, Cleópatra começa ameaçador. O fato de Alterio - par romântico de Norma no arrasa-quarteirão de Campanella - viver aqui o marido fracassado tem evidente intuito de chocar. Ao viver uma personagem que despreza o sucesso cosmético, a própria Natalia Oreiro, atriz-modelo-cantora uruguaia que deve a fama à sua beleza, renega esse passado. O recado se consolida quando Cleo petrifica-se diante das câmeras no traumático teste: esqueça o encanto das lentes e a fantasia dos finais felizes, tratamos aqui da dura realidade onde não cabe a utopia do mundo ficcional.

Começa ameaçador, sim, mas já vale aqui uma crítica: Cleópatra não é um filme uniforme. A rispidez dá lugar a uma comédia dramática quando Cleo e Sandra partem em viagem. Norma se permite, inclusive, abusar de gags cômicas. Natalia surge fotogênica em trajes e closes generosos. Mignogna negou a utopia lá no princípio, mas não verá problemas em embrenhar a história em romances açucarados, com direito a catarse em parque-de-diversões, esse ícone do melodrama clássico.

O diretor filma os anseios e os amores dos mais jovens com a boa vontade de quem, com a autoridade dos sessenta anos de idade, acredita mais em renovação do que em ceticismo. A ingenuidade no tratamento de Sandra e o final apaziguador reservado a Cleo podem desapontar quem espera um retrato mais crítico da realidade argentina, como se prometia antes. De qualquer modo, outros filmes semelhantes virão. Orgulhoso, esse povo que acredita em predestinação, muito mais do que o brasileiro, ainda refletirá muito para achar um sentido em sua existência.

Ilusão de Movimento



Nota: 5

Longa-metragem de estréia de Héctor Molina, diretor egresso da TV e dos curtas, Ilusão de Movimento (Ilusion de Movimiento, Argentina - 2000) foi produzido no bem-sucedido núcleo de cinema de Rosario, que desponta no cenário argentino como uma das mais promissoras forças criativas nacionais. No entanto, Molina, atualmente professor universitário da sétima arte, falha ao não conseguir focar sua obra, que acaba borrada em meio a pontas soltas, problemas de execução e narrativa redundante.

Na história do filme, Geraldo (Carlos Resta) volta à cidade que deixou há dois anos, quando houve uma ação de resistência política que acabou em tragédia e o forçou a se esconder por um tempo. Em seu retorno, reencontra David (Matías Grappa), seu melancólico filho de sete anos, que vive agora com a avó e a tia. Também retorna ao convívio dos amigos, que o ajudarão a redescobrir o amor pelo filho e a superar a dor mal cicatrizada da perda da esposa e seu sentimento de culpa.

A premissa parece ótima, mas durante toda a produção o cineasta parece não conseguir decidir-se por um objetivo para seu filme. Passa do melodrama à comédia e ao suspense de forma atropelada, chocante, (des)costurada por uma trilha sonora barata. Cada cena parece ter sido dirigida por uma pessoa diferente - algumas são boas isoladamente, outras são completamente irrelevantes, repetitivas e ruins. Assim, a obra resulta confusa e pueril, apesar da trama simplista. Também sobram erros técnicos, como a montagem - que poderia ter extraído um bom filme dali - e o som, quebrado em muitos momentos ou fora de sincronia.

Salvam-se apenas os atores, que se esforçam para colocar alguma ordem na bagunça estabelecida por Molina. No entanto, o único que realmente convence é o garotinho Matías Grappa, que vive o pequeno David, que, sem dúvida, merece uma nova chance urgente.

Um filme perdido em boas intenções, mas que mancha a reputação do ótimo novo cinema argentino.

16 dezembro 2004

Para Sempre Lilya



Nota: 7,5

Mais uma vez, o sueco Lukas Moodysson (de "Bem-vindos") trabalha com as incertezas e esperanças dos adolescentes. Assim como em "Amigas de Colégio" (1998), o cineasta explorou passagens na vida de uma menina para revelar as descobertas sentimentais e a falta de perspectiva numa cidade sem muitas opções.

Em "Para Sempre Lilya", a história é mais dura e até cruel. Num drama intenso, Lilya, que tem 16 anos, vai do céu ao inferno num piscar de olhos. E, o pior, sem muitas justificativas.

A bela garota de rosto angelical vê a possibilidade de sair de uma União Soviética melancólica para viver numa América próspera, se transformar em pesadelo. Pouco antes da viagem, Lilya é avisada pela mãe que não irá mais para os Estados Unidos. A partir desse abandono maternal, tudo dá errado em sua vida.

A menina vai mal na escola, é expulsa de casa pela tia que fica cuidando dela, se droga, cai na prostituição, é enganada pela melhor amiga, passa frio e fome e, no ápice de seu desespero, a mãe renuncia à sua guarda, pois já está bem nos EUA.

Contrastando com os problemas, Lilya tem apenas a companhia do pequeno Volodya, de 11 anos, e de um quadro de uma santa, para quem reza todos os dias. Volodya não é um amigo tão promissor.

O menino também passa por maus momentos, já que é espancado pelo pai e fica o dia imaginando ser um astro do basquete. Mas, Volodya é apaixonado por Lilya. E, é esse carinho mútuo que dá forças aos dois.

Paralelo ao apelo comovente do enredo, "Para Sempre Lilya" tem um importante papel social ao mostrar como funcionam as redes internacionais de prostituição. Cansada de tanto apanhar da vida, Lilya acredita num simpático rapaz que promete uma vida melhor na Suécia.

Ao desembarcar, seu sofrimento piora. A garota é obrigada a fazer programas e sofre seguidos estupros e agressões. O filme é tocante e a própria Lilya analisa sua situação ao afirmar "Ninguém merece uma vida assim".

É difícil ficar indiferente às cenas com a menina sendo agredida e violentada. Sua beleza física remete à uma vida feliz e saudável. Mas, mesmo com tantos problemas, ela luta e acredita que pode ser feliz, mesmo que em sonho ao lado de seu anjo da guarda.

Embora o retrato da Rússia não seja lisonjeiro, a Suécia não aparece muito melhor, sendo mostrada como um país de ruas escuras com homens desumanizados que buscam sexo sem emoção.

Filmando quase inteiramente nas próprias locações, Moodysson e seu diretor de fotografia, Ulf Brantas, conseguem transmitir ao espectador até mesmo o cheiro da vida nas casas decadentes da Rússia, onde tudo está à venda e nenhuma droga é perigosa demais para ser experimentada.

Os diálogos são quase inteiramente em russo, com pouca coisa dita em inglês e sueco. No difícil papel-título, Akinshina (já vista em Sisters, de Sergei Bodrov Jr.) está ótima, e o novato Bogucharski, embora tenha um papel menor como Volodya, é um verdadeiro achado.

Os Sonhadores



Nota: 7

Quando vai à Cinémathèque de Paris, Matthew (Michael Pitt) gosta de se sentar nas primeiras fileiras da sala. "Para receber as imagens primeiro", diz ele, ao lado de todos os outros cineclubistas recém-saídos da puberdade. A frase nasce clássica, junto com outras tantas passagens espirituosas de Os sonhadores (The dreamers, 2003). E ela resume bem o romantismo ingênuo e a intensa cinefilia que transpira, do início ao fim, do polêmico filme de Bernardo Bertolucci.

Apesar do ardor, o norte-americano Matthew não usufrui da cinemateca como gostaria. Decorre o ano de 1968, e o fundador e diretor da casa, Henri Langlois (1914-1977), acaba de ser demitido. Os movimentos estudantis, que já falavam alto contra o conservadorismo institucionalizado, se exacerbam. Entre passeatas e manifestações, Matthew puxa conversa com dois jovens irmãos gêmeos que também frequentavam as sessões, Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green). Ah, Isabelle...

Matthew logo se interessa, claro, pela sensualidade meio blasé da moça. E os gêmeos nutrem curiosidade pelo norte-americano limpo e loiro que flana por Paris sem compromissos - e que parece conhecer tanto de cinema quanto eles próprios. O teste definitivo: se o trio enganar os guardas e conseguir atravessar o Louvre numa correria desenfreada, quebrando o recorde dos personagens godardianos de Bande à part (1964), a amizade de Matthew será finalmente aceita.

História, cinema e ficção, como se vê, misturam-se sem pudor em Os Sonhadores. Enquanto os dias de 1968 - o famoso "ano que não acabou" - transcorrem e marcam a memória de uma geração idealista, Matthew passa as tardes no apartamento de Theo e Isabelle discutindo política, cultura, comportamento. E aprendendo a viver. O sexo inevitável surge lúdico e inocente, o incesto se mostra mais poético do que carnal. Haverá quem se sinta escandalizado com a libertinagem, mas o fato é que o amor é só mais uma peça, e não o fator dominante, nesse conto de amadurecimento.

Bertolucci enche a tela de nostalgia, sim, mas o seu discurso soa novo, pertinente - como as últimas palavras de sabedoria de um velho enfermo para o seu neto imprudente. Theo brada contra o sistema, mas é incapaz de acompanhar as passeatas que acontecem à sua janela. Já Matthew desafia os irmãos a crescerem, a lutarem, mas ele mesmo prefere o discurso pacifista ao confronto de verdade. Neste cenário, o panfletarismo dá lugar à reflexão. Joplin, Doors, Dylan, Hendrix, ícones daquela geração, poucas vezes soaram tão verdadeiros quanto na fabulosa trilha sonora de Os Sonhadores.

O cineasta tenta, assim, alimentar o inconformismo nos jovens de hoje que aprenderam a ver em termos como "revolução" uma conotação negativa. Busca, com Matthew e os gêmeos, resgatar o tempo em que o maior desacordo entre EUA e França envolvia o humor de Jerry Lewis. E o seu filme prega, acima de tudo, a crença no cinema como arma da transformação.

Entre inúmeras citações explícitas de obras alheias, a referência a Sergei Eisenstein (1898-1948) aparece de forma velada. Na cena final, ao fazer os policiais avançarem sobre a platéia, Bertolucci toma do mestre russo a sua mais famosa ferramenta, o enquadramento "engajado". Com isso, não deixa dúvidas sobre o seu libelo político.

A Grande Sedução



Nota: 8

Desconfie de campeões de bilheterias. Normalmente são filmes que apostam em fórmulas prontas, mais fáceis da massa assimilar. Por exemplo, A grande sedução (Le grande séducion, de Jean-François Pouliot, 2003), comédia canadense que superou em casa hobbits, Neos e até mesmo As invasões bárbaras (Les invasions barbares, de Denys Arcand, 2003), se encaixa naquele tipo de comédia edificante, de auto-ajuda social, que prega a simplicidade regional contra a voraz globalização, na linha de Ou tudo ou nada (The full monty, de Peter Cattaneo, 1997).

Em tom de fábula, o acabado Germain (Raymond Bouchard) conta que, na época em que era menino, a ilhota de Saint Marie La Mauderne não era o amontoado de rochas triste e sem vida como se vê hoje. Os pescadores saíam cantando para o ofício e, na volta, faziam a alegria de suas esposas. Atualmente, com o esgotamento da pesca, todos os cento e pouco habitantes de lá vivem do seguro-desemprego. Só encontram abrigo no bar. E não vêem a hora de fugir para o continente. Germain tem um plano para mudar o lugar. Mas somente com a ajuda de todos pode fazer Saint Marie voltar aos velhos tempos.

Mas, calma. Ainda há a grande sedução do título. Para atrair a instalação de uma fábrica e garantir empregos, a população precisa de um médico residente. Germain planeja, então, convidar algum doutor da cidade grande a morar na ilha. Claro que ninguém aceita. A contragosto, porém, o Dr. Christopher (David Boutin) acaba convencido a passar um mês em Saint Marie. Para que ele resolva ficar, começa então uma intricada operação para maquiar o lugar e torná-lo... sedutor.

Eis então que se dá a transformação. Da mesma maneira que um espectador exigente se indispõe com o esquematismo, o amoral Christopher chega cheio de preconceitos. Mas não demora até que ele - e nós - sejamos convencidos. A grande sedução começa a revelar os seus atributos. Os personagens que, à primeira vista, parecem caricaturas irritantes, aos poucos ganham humanidade. Alguns deles, aliás, como o caixa do banco, se mostram incrivelmente cativantes. Montar o elenco com amadores, moradores de Harrington Harbour, locação das filmagens, acaba como trunfo principal da película.

E os floreios armados para iludir Christopher são uma delícia. Fãs de hóquei, os habitantes fingem que são loucos por críquete. As mulheres se insinuam. Mergulhadores prendem peixes à sua linha de pesca. Christopher começa a achar dinheiro na rua. E por aí vai. Não dá para resistir. É como o rato que avança no queijo mesmo sabendo da ratoeira. Grande sedução, na verdade, é deixar-se levar por um filme mesmo sabendo desde a primeira cena como ele vai terminar.

Os Incríveis



Nota: 8

Na fila do cinema, uma pessoa pode virar para quem estiver saindo da sala onde acabou a sessão de Os incríveis (The incredibles, 2004) e perguntar: "E aí, é melhor que Shrek 2?"

A questão não é totalmente errada, afinal estamos falando de dois longas-metragens construídos a partir de pixels e em empresas que nos últimos anos vêm brigando quase que sozinhas nos mercados de animação para o cinema. A segunda aventura do ogro verde, por exemplo, tem a melhor arrecadação nas bilheterias deste ano, e como Monstros S.A. foi o rival direto de Shrek em 2001, era de se esperar que Dreamworks e Pixar travassem mais uma batalha.

Mas a verdade é que Os incríveis não deve ser comparado a Shrek 2. O verdadeiro rival da família formada por Sr. Incrível, Mulher-Elástica, Violeta, Flecha e Zezé é o nosso amigo da vizinhança, o Homem-Aranha. Desta vez, a empresa presidida por Steve Jobs, que também é o chefão da Apple, deixou para trás as comédias "fofinhas" com brinquedos, insetos, monstros bonitinhos e peixes palhaços e entrou de cabeça no mundo dos super-heróis.

Quando conhecemos os personagens principais, eles estão no auge de suas carreiras de salvadores do mundo, vivem na mídia e trabalho é o que não falta. Mas após um incidente com uma das pessoas em perigo, os heróis começam a ser alvo de processo em cima de processo. O governo então cede à pressão popular e acaba proibindo a ação de superseres - o que nos faz lembrar de uma outra HQ, Watchmen, de Alan Moore.

Quase tratados como bandidos, os heróis têm de mudar de emprego e, claro, de vida. Há um projeto que os recoloca no mercado de trabalho "normal" e é num destes escritórios chatíssimos cheio de trabalhos burocráticos que Beto Pêra, alter-ego do ex-Sr. Incrível, vai parar. Agora casado com Helen Pêra (Mulher-Elástica), ele tem três filhos, vive no subúrbio e trabalha numa seguradora, onde seu chefe não perde a chance de gritar com ele.

Completamente insatisfeito com sua vida, Beto vê sua vida dar uma nova guinada quando recebe um estranho chamado para voltar a atuar, desta vez, em missões secretas e para um novo chefe mais secreto ainda. Faturando alto e se divertindo muito por ter as explosões e perigos de volta à sua vida, ele se sente renovado ao ser novamente o Sr. Incrível. Mas este sentimento não dura muito e logo ele se mete numa enrascada sem tamanho que só sua esposa e seus filhos - que nunca haviam usado seus poderes com força total - podem salvá-lo.

Apesar de não utilizar as texturas que foram desenvolvidos para fazer os pêlos azuis de Sulley ou o mar das aventuras pela busca de Nemo, animar Os Incríveis não foi tarefa fácil. Desta vez, os artistas da Pixar ralaram muito e pela primeira vez fazem um mundo próximo da nossa realidade. Um dos truques para não cair na mesma armadilha que gerou críticas ao hiper-realista Final Fantasy e mais recentemente ao Expresso Polar, foi a utilização de personagens mais próximos da caricatura que da realidade... pelo menos no traço, já que psicologicamente todos eles têm bastante profundidade. Para citar apenas dois deles, vale notar que o poder de invisibilidade de Violeta é uma metáfora para o que muitas adolescentes querem: ser invisíveis, sumir de tão tímidas. Já a supervelocidade de Flecha, representa o estado de um garoto de 10 anos, que não consegue ficar parado.

Já as melhores piadas vêm da impotência dos heróis quando estão longe de seus trajes colantes, ou agindo humanamente na pele dos super-heróis. Entram nestes casos a cena de Beto fechando a porta de seu velho carro com força e fúria do Sr. Incrível e até mesmo o momento quase traumático em que a Mulher-Elástica olha para o tamanho do seu traseiro antes de sair para a salvação de seu marido.

Mas apesar de ter conseguido equilibrar muito bem todos estes elementos humanizadores e ainda incluir na história ação de primeira com perseguições de carros, explosões e pancadarias, o diretor Brad Bird (que fez ótimo O gigante de ferro, 1999, e aqui empresta sua voz à Edna Moda na versão legendada) não conseguiu fazer um filme perfeito... pelo menos não para os padrões da Pixar. Antes de iniciar o filme, é mostrado o curta Boundin' (sobre uma ovelha que é tosada e acha que perdeu sua alegria), mas ao fim de Os incríveis não há as já famosas "piadinhas nos créditos" que acompanham os longas da casa desde Vida de inseto. É uma pisada na bola pequena perto de todos os outros acertos, mas a culpa é toda deles, que nos deixaram mal acostumados.

08 dezembro 2004

Viagem do Coração



Nota: 7

O cinema francês tem fama de ser feito para intelectuais. Viagem do Coração (Bon voyage, 2003), do veterano diretor Jean–Paul Rappeneau, é um filme comercial, mas com a célebre elegância francesa.

Pouco depois do início da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha invade a França e ocupa Paris. Figuras importantes como parlamentares, jornalistas, médicos e intelectuais se refugiam no hotel Splendide, em Bordeaux, uma cidade livre do domínio nazista. Quando esta elite se vê obrigada a conviver com espiões e criminosos, passa a florescer toda sorte de intrigas e alianças políticas. Mas também nascem tórridos romances, como aquele vivido por um jovem que precisa escolher entre uma atriz famosa e uma estudante, enquanto se posiciona frente a questões políticas.

Viagem do Coração lembra uma produção dos anos 1930, uma típica farsa francesa situada no mundo real. Possui um roteiro bem amarrado com ritmo vigoroso. Entre desencontros e revelações surpreendentes, Rappeneau colocou diálogos inteligentes que equilibram seriedade e humor. As piadas são simples. Um condenado frustrado com sua incapacidade de retirar suas algemas, balança os pulsos e elas caem. Uma pessoa soca uma porta desesperadamente e descobre, segundos depois, que ela está destrancada. O filme não tem um drama pesado, típico das produções sobre a ocupação nazista na França. Em vez disso, é uma história sobre pessoas tentando se adaptar a uma situação limite. Com exceção do personagem protagonizado por Peter Coyote, não há vilões no enredo, somente pessoas e suas razões.

No elenco, temos astros franceses e novas promessas. Gérard Depardieu está ótimo como sempre no papel do Ministro Beaufort. Isabelle Adjani, mesmo na pele da aproveitadora atriz Viviene, provoca risos com uma interpretação na medida. Com 48 anos, ela deve ter o seu próprio retrato de Dorian Gray, já que parece não envelhecer. As novas promessas são Gregori Derange, como o escritor envolvido nas artimanhas de Viviene, e Virginie Ledoyen (A Praia) faz Camille, uma física determinada a salvar o mundo.

O filme é muito bem editado, possui um fotografia interessante e trilha sonora de Gabriel Yared (Paciente Inglês). Tanto a cena inicial, como a final são de pessoas se divertindo dentro do cinema. Essas imagens procuram ressaltar, que a intenção de Viagem do Coração é convidar o espectador a entrar num mundo de imaginação e se divertir por duas horas. E consegue.

Whisky



Nota: 7

Em entrevista ao jornal francês Le Monde, Pablo Stoll, que co-dirigiu Whisky (2003) com Juan Pablo Rebella, disse que "o importante é o coração, o sentimento, a idéia, e não o virtuosismo técnico". O depoimento é coerente com seu filme, cujo principal diferencial técnico é a total ausência de planos seqüência. A câmera fica parada o tempo todo, fixa em um tripé, sem sequer um zoom in ou out durante os seus 100 minutos. Não importa se a diferença de altura entre Jacob (André Pazos) e Marta (Mirella Pascual) é de uns 30 cm. Os dois jovens cineastas não ligam de cortar um pedaço da cabeça de um ou mostrar a outra pela metade.

Para dar ritmo ao filme entra o bom trabalho do montador Fernando Epstein, que junto com a diretora de fotografia Bárbara Alvarez deu vida à idéia dos dois criadores. Rebella confirma que embora o plano não tivesse um propósito claro, era isso que eles queriam. "Hoje, quase um ano depois, após ter visto e revisto o filme finalizado, na minha opinião, os enquadramentos fazem parte dos aspectos mais satisfatórios. A imobilidade da câmera enriquece a narração", confessa Rebella.

O enredo é bastante simples e mostra que a rotina impera sobre as vidas de Jacob e Marta. Todos os dias, quando ele chega à fábrica de meias que herdou de seus pais ela já está lá, esperando. Entram juntos e enquanto Jacob liga as máquinas, ela se troca e vai preparar o chá para o chefe. Na hora de ir embora, Marta checa as bolsas das duas únicas funcionárias além dela e se despede: "até amanhã, se Deus quiser".

A chegada de Hermann (Jorge Bolani) quebra a previsibilidade deste dia-a-dia. Ele também tem uma fábrica de meias, no Brasil, onde vive há bastante tempo. As diferenças dos produtos dos dois irmãos é gritante e reflete suas personalidades. Hermann é mais alegre, vivo e moderno, como as meias que fabrica. O irmão mais novo de Jacob quase nunca volta a Montevidéu. Nem mesmo no funeral de sua mãe, ele compareceu. Sua visita coloca um pouco de cor à película, que até aquele momento era cinza, repetitiva e mostrava vidas tediosas.

Para não demonstrar que vive só e que as coisas não vão nada bem, Jacob chama Marta para agir como se fosse sua esposa enquanto Hermann estiver no Uruguai. Ela vai ao cabeleireiro, se arruma e dá um jeito na casa, escondendo os vestígios da longa e dolorida enfermidade da mãe dos dois irmãos. Os "recém-casados" combinam o local de sua lua-de-mel, colocam alianças e tiram uma foto. Antes de clicá-los, o fotógrafo pede para que "digam whisky". Assim vemos, pela primeira vez, um sorriso nos rostos dos dois. Um sorriso falso, de curtíssima duração, causado apenas pela fonética da palavra.

E é esta visível falsidade de sentimentos que torna o filme tão interessante. A dureza da vida entregue à família (Jacob), ao trabalho (Hermann), ou à falta de objetivos (Marta) deixa os personagens insensíveis, inertes ao ato de viver e, como mostra o filme, não há nada mais triste do que a solidão. Stoll confessa que "Whisky é a projeção do que pode acontecer daqui a trinta anos. A gente tem medo da solidão".

O cinema da dupla uruguaia vêm sendo bastante comparado aos de Aki Kaurismaki, principalmente pelos longos silêncios, que só são possíveis porque eles conseguiram juntar ótimos atores. Bolani, que nasceu em 1944, parece ser bem mais novo que o envelhecido Pazos, de 1945. E Mirella Pascual passa à sua personagem toda a humanidade que ela precisa para viver, mesmo que solitária e tristemente.

Whisky é apenas o segundo filme da dupla Stoll e Rebella. Os dois se conheceram na faculdade, quando cursavam Comunicação Social, viram que tinham muita coisa em comum e decidiram trabalhar juntos. A estréia no cinema aconteceu com 25 Watts (2001), filmado em 16 mm, que custou apenas 25 mil dólares e conseguiu certo sucesso nos festivais de que participou. Com um orçamento estimado de 500 mil dólares eles fizeram Whisky, que ganhou o prêmio na mostra Un certain regard no Festival de Cannes deste ano e alguns Kikitos em Gramado, entre outros troféus mundo afora. Prêmios merecidos, afinal, estamos falando de um bom Whisky, que não deixa ninguém com dores de cabeça no dia seguinte.

A Voz do Coração



Nota: 6

Quando entrou em cartaz na França, em 17 de março deste ano, A Voz do Coração (Les Choristes, 2004) teve cinco semanas com média superior a 700 mil espectadores. Este começo invejável tornou o longa de estréia do cineasta Christophe Barratier uma das grandes surpresas do ano, pois seus mais de 7 milhões de espectadores foram superiores, por exemplo, ao conseguido por Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban.

A história não tem novidades para quem já assistiu a Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989) ou Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997). Mas não foram estes filmes hollywoodianos que inspiraram Barratier a escrever seu roteiro. Sua principal influência foi La Cage Aux Rossignols (de Jean Dréville, 1945). Músico de formação, foi lá que ele encontrou a história de um inspetor que chega a uma rígida casa de correção e consegue mostrar aos jovens que há, sim, uma saída para aquela situação.

Em A Voz do Coração, o inspetor Clément Mathieu é interpretado por Gérard Jugnot. O ano é 1949 e logo que ele chega ao reformatório é apresentado às "brincadeiras" dos delinqüêntes que habitam por ali e também fica sabendo que o lema do lugar é "ação / reação". Se alguém faz algo que não deveria, vai trabalhar na limpeza, apanhar, ou passar um tempo na solitária. As duras regras foram implementadas pelo diretor Rachin (François Berléand) e fazem do local um presídio. Com tanta pressão e punição, acaba não sobrando espaço para que o potencial dos garotos seja descoberto, e mesmo os que estão ali apenas por serem órfãos podem acabar se corrompendo.

Cabe ao professor novato, um músico frustrado, mudar algumas regras e abrir as exceções que devolvem aos meninos a alegria de viver. O atalho é através da música. Com a formação de um coral ele não só consegue a atenção dos meninos, como também ganha seu respeito e admiração. A estrela do time é Pierre Morhange (Jean-Baptiste Maunier), um garoto problemático de rosto e voz angelicais e atos quase diabólicos. Nesta disputa entre o bem e o mal, a força e o jeito, o amor e o ódio, que Barratier consegue envolver o espectador e ganhar, ele também, seu respeito e admiração. A prova disso é o altíssimo número de pessoas que viu o filme e sua indicação para representar a França no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro do ano que vem.

O cineasta consegue equilibrar a dramaticidade do tema com o lirismo das músicas e a comicidade que só crianças puras de coração conseguem enxergar numa situação destas. E não precisa ficar com medo dos números musicais, pois a história tem apenas 1h35 e é mais fácil você sair de lá cantando do que dormir no meio da projeção.

Mas é nas atuações que o longa tem seu principal diferencial. Contar com atores renomados como Jugnot facilita o trabalho de qualquer um, mas quando o diretor opta por utilizar garotos, na sua maioria sem experiência, e consegue emocionar o público, é porque o trabalho foi bem feito. Jean-Baptiste Maunier foi encontrado no coral Petits chanteurs de Saint-Marc, de Lyon, e realmente faz aqueles belíssimos solos. Depois que o filme entrou em cartaz, ele virou uma estrela e o número de crianças se inscrevendo em corais aumentou bastante. Para um cineasta (e para um professor), não há nada melhor do que saber que seu objetivo foi atingido.

Peões



Nota: 5

Em outubro de 2002, apesar de indefinidas, as eleições presidenciais já não tinham volta. Com o triunfo do PT, finalmente, fez-se o justo reconhecimento de um movimento nascido no sindicalismo em 1979/80. O povo, enfim, chegou ao poder. Hoje já sabemos no que deu o governo de Luís Inácio Lula da Silva. Mas aqueles dias embebidos em sonho ainda conservavam o orgulho e a esperança. São os dias retratados em dois documentários, Entreatos e Peões, ambos finalizados em 2004, que ganham estréia simultânea.

O primeiro, dirigido por João Moreira Salles, acompanha de perto a rotina do então candidato durante as vésperas da eleição. Já Peões busca, como explica o título de dúbias interpretações, os obreiros manejados em nome dessa causa.

O diretor Eduardo Coutinho vai ao ABC paulista para resgatar homens e mulheres que alicerçaram o embrião do Partido dos Trabalhadores - mas não passaram do anonimato. Evita personagens que ascenderam na burocracia ou na política. O seu interesse vai desde piqueteiros incorrigíveis e comunistas convictos até desempregados e aposentados por acidentes de trabalho. Documentarista adepto das entrevistas, hábil interlocutor, ele extrai intimidades dessas pessoas que viveram ou ainda vivem o engajamento sindical.

O diretor tem escrúpulos de excluir, na montagem, o trecho que cita o apego de Lula pela bebida, mas isso não significa que Peões seja chapa-branca. Pelo contrário, fica implícito na ordem de depoimentos o tom crítico: o último entrevistado deseja para o filho uma vida melhor do que ser meramente um peão.

Mais do que isso, toda a narrativa é construída com o intuito de humanizar o período, e não endeusá-lo. Coutinho filmou as fábricas, os locais que fizeram a história das greves, mas não utiliza essas imagens na edição final. Assim, Peões resultou - nas próprias palavras do diretor do palavroso Edifício Master (2002) - "no seu filme mais falado". Sai o tom épico que não lhe interessa, entra a melancolia dos desabafos.

Há algumas cenas históricas inseridas, pesquisadas em filmes da época, como ABC da Greve (de Leon Hirszman, filmado em 79, mas finalizado apenas em 90), mas que entram aqui somente para servir de contextualização. E não daria para suprimir, mesmo, a cena filmada por Hirszman em que Lula é chamado pelos grevistas, dias após a sua prisão pelo regime militar, para reocupar o lugar de comandante dos protestos. Por mais que Coutinho se despoje da eloquência, é impossível negar o tom messiânico da cena.

Nas lembranças dos ex-amigos, dentre os expoentes de 1980, Lula sempre foi maior que todos. Em 2002, a eleição mal se resolvia e os peões já imploravam para não serem esquecidos.

A Sétima Vítima



Nota: 4

Nos últimos anos, a Espanha tem brindado o público com diversas boas produções de terror. São filmes que sobretudo têm inovado o tema com roteiros originais e uma nova safra de diretores competentes. A sétima vítima (Darkness, 2002), do diretor Jaume Balagueró, não consegue ser brilhante como seus antecessores, mas mesmo assim traz soluções criativas para uma história inverossímil e batida.

Como não podia deixar de ser, o filme começa quarenta anos atrás, quando - durante um eclipse - sete crianças desaparecem numa província na Espanha. Só uma criança é encontrada. O seu relato é desconexo e misterioso. No primeiro furo do roteiro, inexplicavelmente, as autoridades não investigam o caso e tudo fica por isso mesmo. Já nos dias atuais, a criança sobrevivente mudou-se para os Estados Unidos e se tornou um pai de família com um casal de filhos. Atraído por uma proposta comercial, Mark (Iain Glen) retorna com sua esposa Maria (Lena Olin) e seus filhos Regina (Anna Paquin) e Paul (Stephen Enquist) para a mesma província. Por incrível que pareça, eles decidem morar numa mórbida casa bastante afastada da cidade e que mais parece a residência do personagem Norman Bates, do filme Psicose (Psycho, de Alfred Hitchcock, 1960).

Mark começa a enlouquecer conforme as luzes e outros fenômenos paranormais começam a acontecer na casa. Descobrimos então que ele nunca deixou de ter esses surtos. Num segundo furo do roteiro, seu médico (Giancarlo Giannini), que é seu próprio pai, parece não se importar muito com isso. Espectadores mais atentos matam toda a trama nesse momento. Para piorar, Maria, esposa de Mark, acha completamente normal que seu filho Paul acorde toda manhã arranhado. Alega que ele deve ter feito isso em si mesmo durante o sono (!?!?). Regina, única personagem que não abusa de nossa inteligência, é a primeira a desconfiar que alguma coisa estranha está ocorrendo e auxiliada por seu namorado, Carlos (Fele Martinez), resolve investigar os acontecimentos.

O roteiro parece uma colcha de retalhos de outros filmes. A receita tem como ingredientes Os Outros, de Alejandro Amenábar, A Espinha do Diabo, de Guillermo del Toro, e O Iluminado, de Stanley Kubrick. Chega a lembrar os piores momentos do diretor italiano Dario Argento. Só faltou uma péssima dublagem e imagens sanguinolentas para sermos transportados para esse universo. O ótimo elenco é desperdiçado. Ao mesmo tempo em que eles não comprometem o filme, também não são exigidos em suas qualidades.

A única coisa que se salva são os inusitados planos do diretor. Claramente notamos que ele substitui os efeitos especiais por movimentos de câmera singulares. Mesmo com esse fiapo de história ele consegue algumas imagens assustadoras. Um outro ponto positivo é o final, bem diferente dos padrões de Hollywood. Mas isso é muito pouco para o talento do diretor.

Nina



Nota: 7

No livro Hitchcock/Truffaut, o ícone francês da Nouvelle Vague entrevista o mestre inglês do suspense. Entre outras coisas, pergunta-lhe sobre uma eventual adaptação de Crime e Castigo (1866), o clássico de Fiodor Dostoievski (1821-1881) que possui todo tipo de elemento familiar aos temas hitchcockianos, como morte, solidão e culpa.

Ele rejeita, e explica: “O que não entendo é que alguém se apodere totalmente de uma obra, de um bom romance que o autor levou três ou quatro anos para escrever e que é toda a vida dele. Se você pega um romance de Dostoievski, não apenas Crime e Castigo, qualquer um, todas as palavras ali dentro têm uma função. Para expressar a mesma coisa de modo cinematográfico, seria preciso um filme de seis ou dez horas”.

Hitchcock não gostava de escrever. Passou a carreira transformando romances menores em obras-primas. Neste caso específico, tinha razão. A criação definitiva do russo, um dos maiores ensaios morais da história da literatura, exige respeito. Desencoraja aventureiros com as suas caudalosas quinhentas páginas, com os seus personagens que tomaram vida, se encorparam ao longo de todos esses cento e tantos anos e impregnaram o imaginário mundial.

Corajoso em sua estréia na direção, o publicitário Heitor Dhalia decide tomar o clássico para si. Numa livre releitura, tira-o de São Petersburgo e o contextualiza na São Paulo dos dias de hoje. O brasileiro não tem o perfeccionismo exacerbado de Hitchcock. Também não tem medo de errar. Então faz do protagonista Raskolhnikov uma menina, Nina.

Perene pesadelo

Parceria com outro destemido, o roteirista Marçal Aquino, Nina (2004) parte da mesma premissa do clássico russo. Nina (Guta Stresser, do humorístico global A grande família), como Raskolhnikov, vive num quarto insalubre com o pouco dinheiro tirado de empregos rasos. Não faz muito para mudar de vida, é verdade. Mas a vida também não faz por merecer. Tanto ela quanto ele se indignam, mesmo, com a fartura alheia. O russo assassinou uma velha rica a machadadas por causa disso – e ela nem havia lhe causado mal algum. Já Nina tem motivos vários para cair matando no pescoço de Dona Eulália (Myriam Muniz, excelente na caricatura que lhe cabe).

As diferenças começam aí. Não havia esse esboço de maniqueísmo no clássico. Dona Eulália, dona do apartamento onde Nina aluga um cômodo, ganha logo a antipatia do público por roubar-lhe as correspondências, escravizá-la com a limpeza doméstica, por negar-lhe comida até que receba o aluguel. O público toma imediatamente as dores de Nina, e isso periga comprometer a vocação crítica e imparcial do filme.

Dhalia atenua essas desvantagens com vigorosas opções estéticas. Nina pode ter poucos momentos de originalidade genuína – como a emblemática e genial passagem do cego, que inexiste no livro - mas as suas imagens são certamente memoráveis. Filmado nas locações capengas do centro da cidade, com objetos de cena reciclados ou “catados”, o filme transpira sujeira. Transmite, assim, juntamente com as animações viscerais de Lourenço Mutarelli, mais emoção do que a limitada Guta Stresser é capaz.

Seria mais um produto da safra nacional tecnicamente impecável, mas inseguro na dramaturgia, se a porção final não reservasse gratas surpresas. No seu momento mais introspectivo, de tempos-mortos que traduzem o caos na cabeça de Nina, o filme consegue finalmente sair da sombra de Dostoievski. É, finalmente, a reinvenção prometida desde o começo. E não são precisas todas as horas que calcula Hitchcock.

Dhalia pega ilusão e realidade e os embaralha, à moda de David Lynch e David Cronenberg. Em Crime e Castigo essas duas perspectivas não se misturam durante as febres de Raskolhnikov: a morte do cavalo é sonhada, mas os pintores estão lá, assim como o acusador da rua e a polícia também são de carne-e-osso. Aqui, ficam as dúvidas. Onde terminam os fatos e começam as alucinações de Nina? Afinal, houve crime ou não? Será também nosso, meu e seu, esse perene pesadelo da urbanidade?

Má Educação



Nota: 6,5


Quando anunciado, Má educação (La mala educación, 2004) foi classificado como filme-denúncia, já que os abusos sexuais cometidos por padres na Espanha foram sentidos na pele por Pedro Almodóvar. Até o cineasta entrou no jogo dos rótulos. Disse que o filme caberia melhor na gaveta de cine negro, já que a trama desemboca em mistérios e mortes típicos do noir - gênero inclusive citado em pôsteres no desenrolar da história.

Acontece que, dada a complexidade do cinema do espanhol, toda etiqueta parece limitada. Má educação é um filme-denúncia, sim, mas está longe de ser só isso. O próprio Almodóvar já havia esculhambado a igreja em Maus hábitos (Entre tinieblas, 1983), por exemplo, de forma muito mais direta e ostensiva. Também não é apenas filme noir, já que o lado policialesco se instala só a partir da metade da projeção - e também de forma mais tímida do que nos filmes mais rasgados do diretor.

Seria mais oportuno ver Má educação do ponto de vista da sexualidade. A grande maioria dos seus filmes são femininos. Os atores Javier Bardem, Antonio Banderas e Jávier Cámara são minoria num universo sempre devotado às mulheres. Travestis costumam ser, em suas obras, almas delicadas presas em corpos inconvenientes. São a última trincheira da sinceridade e da idealização.

Não aqui. O travesti vivido por Gael García Bernal é opaco, meramente a consequência de uma desilusão. Se há uma particularidade neste décimo-sexto longa de Almodóvar, é o fato de ser, antes de mais nada, um amargo filme masculino.

Suspeite dos romantismos de Ignacio (Bernal) quando este reencontra, por acaso, numa cama de hotel, Enrique (Fele Martínez). Pense na emoção, na esperança, como utopias ficcionais. Esses substantivos femininos têm pouco a ver com a dura realidade destes dois rapazes que se amaram na infância. Enrique virou cineasta e se surpreende com os modos afetados de Ignacio. Estranha quando o antigo amigo lhe traz um roteiro autobiográfico sobre os dias incertos que viveram no colégio católico. Mas mesmo assim decide fazer esse filme. É a chance de lavar velhas feridas e entender o novo Ignacio.

A metalinguagem se encaixa muito bem nas intenções de Almodóvar. Denunciar a pedofilia do padre que se apaixonou por Ignacio e puniu Enrique seria fácil - hoje em dia, até óbvio. O espanhol prefere mostrar como os abusos marcam a vida adulta de seus personagens e, por extensão, a sua vida e a sua própria carreira.

Como Enrique, ele se amparou no cinema para se defender, mas isso não impede que, ao tratar do tema, se revele azedo e magoado. Você poderá constatar depois de algumas reviravoltas: a face ora bela ora monstruosa de Ignacio diz muito da separação que Almodóvar enfim promove entre realidade e ficção. O diretor que adotou o brega e o kitsch como fantasia para maquiar o mundo agora faz a autocrítica. Ele, que sempre se identificou com feminices, expõe o seu coração doído de homem.

Lutero



Nota: 6

Há três assuntos cujas discussões invariavelmente podem terminar em bate-boca: futebol, política e religião. Os gostos pessoais de cada indivíduo tendem a falar mais alto que o bom senso e dificilmente uma pessoa que leva estes temas a sério dá o braço a torcer.

Nem mesmo o peso da arte e da diversão tendem a abafar estes valores. Quando transportados para o cinema, por exemplo, viram alvo de disputa, como em Fahrenheit 11 de setembro e Paixão de Cristo.

Pois eis que chega às telas mais um filme de caráter religioso. Lutero (Luther, 2003), de Eric Till, conta a história do alemão Martinho Lutero que mudou não só a história de seu país como também do cristianismo e do mundo. Quando começou a colocar em dúvida alguns dogmas da igreja no século 16, principalmente a venda de indulgências, o teólogo acabou liderando a criação do protestantismo e ajudando o movimento Reformista. E ao traduzir o Novo Testamento, ele colaborou também na fundamentação da língua alemã. Até aquele momento, a Bíblia só existia em latim, dominado apenas pelos católicos e por alguns membros da nobreza. Com esta primeira tradução, o livro sagrado finalmente se tornava acessível ao povo, que poderia ler e interpretar as palavras de Cristo por si próprio, sem a influência direta e tendenciosa dos eclesiásticos.

Impulsionado por um orçamento estimado de 21 milhões de euros, o diretor pôde reunir um ótimo elenco. Joseph Fiennes (Shakespeare apaixonado) é Lutero, Alfred Molina (Homem-Aranha 2) empresta seu talento ao cobrador de indulgências Johann Tetzel, Bruno Ganz faz o reverendo Johann von Staupitz, pai espiritual de Lutero, Peter Ustinov interpreta o príncipe Frederico o sábio... e a lista vai longe.

Assim como acontece a todo os atores e seus personagens, Fiennes altera ótimos momentos com outros sem expressão. Os debates que acontecem na cabeça de Lutero são bastante interessantes e até assustadores. Porém, há também cenas completamente sem sentido, como as que mostram sua relação com Katerina von Borg (Claire Cox), ou então extremamente piegas, como seus encontros com uma camponesa e sua filha aleijada. O excesso de personagens e a falta de habilidade do cineasta em manter o ritmo atrapalham e podem confundir.

Se cenários, figurinos e maquiagem estão bastante convincentes, a fotografia limpa torna o produto bastante parecido com filmes feitos para a TV. Mas o maior problema é mesmo a falta de um roteiro que consiga unir melhor a vida de Lutero e os fatos históricos de forma mais harmoniosa. Sei que tentar contar toda a obra e vida de uma pessoa em duas horas é sempre complicado, mas há nesta história alguns pulos na linha temporal que atrapalham o bom andamento do enredo.

Mas nem todos vão concordar com isso. Na Alemanha, onde a comunidade luterana é, por motivos óbvios, muito grande, o filme foi muito bem recebido. E assim voltamos ao tema colocado lá em cima e como preferimos um final feliz a uma briga com os seguidores do monge alemão, deixamos a decisão de ver ou não o filme na sua mão.

Kill Bill: Volume 2



Nota: 8,5

Em 1997 o nerd tentou crescer. Como os dois filmes anteriores de Quentin Tarantino, Jackie Brown prestava respeito ao imaginário dos anos 1970 - no caso, a onda negra da blaxploitation - mas sinalizava uma tentativa de amadurecimento. No lugar dos piadistas caricatos que matavam por acidente, entrou a serena aeromoça vivida por Pam Grier. A crítica e parte dos fãs não gostaram. Afinal, era um drama de alforria feminina dentro do cômico universo machista que todos aprendemos a idolatrar.

Tarantino sentiu o baque e ficou seis anos sem filmar. Aprendeu a lição. Os dois Kill Bill são uma segunda tentativa de transição. De novo, uma história feminista. De novo, uma personagem sensível, intrusa na sanguinolenta picotagem do cineasta. Por que desta vez deu certo? Em 1997 ele não tinha a Noiva Uma Thurman.

Em março de 2004, algumas semanas antes do lançamento de Volume 1 (2003), o crítico Michel Laub já percebia na revista Bravo! a presença dela. "Movida por uma razão nobre, o instinto materno ferido; falando uma linguagem econômica, que não desperdiça uma frase sequer; transpirando uma sabedoria cosmopolita, respeitosa com tradições alheias - a "noiva" é uma criatura oposta a quase tudo o que se apontou até aqui como típico do seu criador", diz ele. Laub defendia que a personagem podia até ter algo de Uma, mas tinha pouco de Quentin.

Agora, diante do Volume 2 (2004), descobrimos que a Noiva tem, sim, muito de Uma - atriz cuja gravidez o diretor esperou pacientemente acontecer antes de filmar. Exatamente por ver a sua musa real e atual namorada espelhada na ficção é que Tarantino amadureceu.

Se o frenesi da primeira parte, recoberta de dezenas de corpos mutilados, dava pouco espaço para a introspecção, o espírito bandoleiro e crepuscular da segunda, vingança digna dos melhores faroestes, põe a mulher no seu devido altar. O filme é uma declaração de amor. Uma profusão de sexualidade que vai desde símbolos fálicos - a flauta de Bill (David Carradine) e a lanterna no caixão são dois emblemáticos -, passando pelo inegável sadismo do mestre chinês (Gordon Liu), até a famosa devoção do diretor pelos dedos tortos dos pés de Uma.

Repare que ela não é mais o fantoche de 1994 que dançava twist e levava injeções de adrenalina no peito. O titereiro teve que abrir mão do controle, dar vida à Noiva. Ela se transforma, assim, no personagem mais humano da vasta galeria bizarra de Tarantino. E isso pode soar estranho aos fãs - não se sinta ranzinza se preferir o espetáculo visual do Volume 1 - mas representa o grande salto do cineasta em direção à verdadeira autoralidade.

Seis anos de jejum deixaram-no inquieto. Não estranhe se Tarantino tropeçar na prolixidade, tentar dizer tudo ao mesmo tempo. No Volume 2 ele encavala músicas, uma atrás da outra, sem a parcimônia usual, introduz dispensável discurso nerd sobre super-heróis no momento mais inoportuno e, inclusive, não consegue se decidir entre três letreiros diferentes no fim do filme. Mas a sua homenagem a Uma é certeira. Basta a cena do choro final para perceber o bem que a paixão faz a esse homem. Explode coração!

O Expresso Polar



Nota: 6,5

O ano está acabando. Durante esses 40 dias que faltam, os estúdios apostam suas fichas nas produções de temática natalina. São filmes voltados para toda família, que sempre vêm acompanhados de alguma mensagem. O Expresso Polar (The Polar Express, 2004), do diretor Robert Zemeckis, é a primeira grande produção a chegar ao mercado nacional. O filme foi anunciado como a mais perfeita combinação de interpretação real e animação computadorizada. O longa é baseado no livro de 1985, escrito e ilustrado por Chris Van Allsburg, um dos nomes mais respeitados da literatura infantil. Aproveitando o lançamento, uma edição de capa dura está sendo editada no Brasil.

O Expresso Polar é uma história simples e emocionante sobre um garoto que não acredita mais em Papai Noel. Na noite de Natal, ele encontra-se em seu quarto, frustrado, quando escuta um terrível estrondo. Ao se aproximar da janela, vê um trem negro, brilhante e barulhento parado bem em frente à sua casa. Saindo à rua de pijama e chinelos, depara-se com o condutor do trem, que parece estar só esperando por ele. O trem está indo para o Pólo Norte. Durante a viagem ele conhece outras crianças, cada uma em sua jornada pessoal para descobrir o que lhe falta para ser completa.

Partindo desse argumento, o filme embarca numa viagem recheada de aventuras, músicas e mensagens, típicas das produções voltadas para o público infantil. Tom Hanks, velho colaborador de Zemeckis em filmes como Forrest Gump e O Náufrago, abraçou o projeto de corpo e alma. Além de produtor executivo, ele interpreta cinco personagens do filme (Menino, Pai do Menino, Condutor, Andarilho e Papai Noel). Veja bem, quando falo interpreta não quero dizer dubla. É interpretação mesmo. Usando a técnica batizada de motion capture (captura de desempenho), todos os personagens do filme foram feitos por atores de verdade em um estúdio. Eles atuaram vestindo um macacão que grava todas as suas ações, inclusive da face, que também fica coberta por pequenos pontos. Assim a expressão corporal e fisionômica do elenco é captada e usada pelos animadores.

Tudo isso aliado aos efeitos de computação gráfica, deu a Zemeckis a condição de realizar algumas seqüências de tirar o fôlego. A cena do bilhete perdido viajando pelas paisagens é ao mesmo tempo artística e poética. A ação no lago congelado também é edificante. Ao chegar ao Pólo Norte acompanhamos toda a cerimônia dos elfos para a entrada monumental de Papai Noel. Obviamente, a sua apresentação só podia ser marcada por uma canção de natal interpretada pela maior voz de todos os tempos. "Santa Claus is coming to town", gravada por Frank Sinatra em 1948, encaixa com perfeição à cena.

A trilha sonora tem ainda duas músicas cantadas pelo personagem de Tom Hanks. Com destaque para "Hot Chocolate", acompanhada por um balé digno dos musicais da Broadway. Como em todo filme natalino, "White Christmas" também se faz presente na voz de Bing Crosby. Tem ainda a participação super especial do cantor e líder da banda Aerosmith, Steven Tyler. Ele aparece cantando "Rockin on top of the world". Com aquela boca e o rosto marcado por todo tipo de rugas, é mais que apropriada a sua participação como elfo.

Enfim, apesar de todo o esmero na técnica, ainda há muito o que evoluir, já que os personagens ainda parecem ter aquele olhar de zumbi. Está para ser criada a técnica capaz de captar a expressão dos olhos humanos. Assim, a força do filme continua sendo sua mensagem, em que basta acreditar na magia do Natal para ela estar presente.

Exorcista: O Início



Nota: 5

Em agosto de 2001, a produtora Morgan Creek Films contratou John Frankenheimer (Ronin, A Ilha do Dr. Moreau) para dirigir o novo filme da cinessérie O Exorcista, iniciada em 1973 por William Friedkin (Caçado). Um ano depois, quando as filmagens deveriam começar, problemas na coluna afastaram o diretor - que acabou falecendo - da produção. Em agosto de 2002, Paul Schrader (Gigolô americano) assumiu a produção e tudo parecia bem.

As filmagens seguiram até abril de 2003 e o estúdio comemorou sua conclusão. No entanto, parece que nenhum dos produtores tinha visto qualquer trecho do filme, já que alguns dias depois foi anunciado que Schrader fora despedido do projeto por não ter conseguido colocar nojeiras e sustos em quantidade suficiente. A abordagem psicológica dada pelo cineasta ia contra tudo o que os investidores esperavam para seu alardeado terror.

Entra em cena então Renny Harlin (Do fundo do mar, 1999) que deveria apenas inserir algumas cenas novas e aumentar o sangue, escatologias, etc. Mas o estúdio se empolgou e deu carta branca ao diretor para ignorar o trabalho de Schrader e criar um novo filme. Sugestão que foi seguida e concluída em fevereiro de 2004.

Não é preciso ser um especialista para imaginar que todo esse problema durante a produção de Exorcista: O início (Exorcist: The Beginning, 2004) é de longe muitíssimo mais interessante do que o produto final. Não há criatividade que resista sob o bafo quente dos produtores de Hollywood. Difícil pensar em um destino mais triste para este prelúdio de um dos filmes mais assustadores de todos os tempos.

A premissa era genial: mostrar o passado do Padre Lancaster Merrin (Stellan Skarsgård), antes dele se tornar um exorcista, algo que foi bastante comentado no filme de 1973 (quando o personagem foi interpretado por Max von Sydow).

A nova história mostra o arqueólogo afastado da batina, tentando esquecer os horrores da Segunda Guerra Mundial ao liderar a escavação de uma improvável igreja bizantina no Quênia. Entretanto, com a descoberta de uma cripta ainda mais antiga que a edificação, uma força demoníaca - a mesma que possui a menininha Regan (Linda Blair) no original - é liberada, aparentemente encarnando em um garoto nativo sob os cuidados da bela médica Sarah (Izabella Scorupco). Em pouco tempo a loucura começa a tomar conta do vilarejo, criando um horror ainda pior do que o presenciado pelo padre no passado.

Apesar de toda a força da história, o resultado é medíocre. Esqueça o sofrimento da linda garotinha tomada pelo demônio Pazuzu e vai transformando-se lentamente em um pesadelo vivo. Em Exorcista: O Início, o que conta são os sustos fáceis, os gritos e a sofrível computação gráfica. Que saudade do boneco de cabeça giratória!

Claro que nem tudo é imprestável no filme. O competente Skarsgard se esforça como Merrin, mas é totalmente apagado pela ruindade da encarnação do demônio nas cenas derradeiras. A maquiagem da criatura é evidente, malfeita e os cortes para o boneco 3D são tão gritantes e desnecessários que sugam toda a qualidade da atuação do ator. Mais feliz é o lendário fotógrafo romano Vittorio Storaro (Apocalipse Now) que garante ao filme suas únicas qualidades reais - a paleta de cores e a iluminação. O restante, nem um pacto com o demônio salvaria.

Felizmente, o fracasso de público e crítica ajudou a sepultar logo a produção nas telas. O filme falhou miseravelmente nas bilheterias - e mereceu. No entanto, terá uma nova chance em breve, já que o estúdio - ciente da porcaria que fez - revelou que o DVD do filme terá a versão recusada de Paul Schrader. Irônico, não? O lixo de ontem em socorro do lixo de hoje.

Que Pazuzu nos proteja!

Eu Não Tenho Medo



Nota: 7

Filme com crianças, e ainda por cima italiano... Já dá para prever o que vem embutido no drama de formação Eu não tenho medo (Io non ho paura, 2003): junte os lenços e prepare-se para os soluços.

O estilo edificante do diretor Gabriele Salvatores já havia sido validado quando Mediterraneo (1991) ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Aqui ele repete a dose, baseado no best-seller homônimo de Niccólo Ammaniti, publicado em 2001.

Paisagens idílicas, perfeccionismo técnico, tom cerimonioso e personagens cativantes se reúnem na difícil passagem da juventude à maturidade de Michele (Giuseppe Cristiano). Filho de família humilde, ele cerca-se de amigos num pequeno povoado italiano, mas prefere mesmo é rodar solitário em sua bicicleta pelos campos de trigo.

Certa tarde, Michele perambula numa construção abandonada e descobre, dentro de um buraco escamoteado, o menino Filippo (Mattia Di Piero) amarrado. Passado o susto inicial, a cada dia Michele se aproxima mais do prisioneiro. Leva-lhe comida, oferece ajuda - sem nunca contar o segredo à família. A coisa aperta, mesmo, quando Michele descobre na TV que Filippo foi seqüestrado. E piora quando descobre que pessoas do povoado podem estar envolvidas.

Amizade, coragem e todo tipo de virtude marcam a aventura. Você já conhece essa história. E se assistiu às fábulas juvenis de Stephen King, tipo Conta comigo (Stand by me, de Rob Reiner, 1986), sabe melhor ainda como a trama desembocará em um episódio traumático, em nome de nobres valores.

O problema maior de Salvatores não é remastigar esse subgênero à exaustão. A grande deficiência de Eu não tenho medo - comum a todo candidato a fenômeno de massa - é entregar tudo ao público sem exigir que este pense sozinho. Não seria preciso forçar a emotividade para fazer-se entender. Temos aqui, como exemplo, a sequência em que Michele, perturbado, assiste à colheita feroz das máquinas agrícolas. É uma alegoria belíssima de um certo desencanto comum ao amadurecimento.

Pena que seja só um momento breve de luz, num melodrama igual a tantos outros.

Os Esquecidos



Nota: 5

Segundo o comercial da TV, a crítica está dizendo que Os esquecidos, de Joseph Ruben, é o melhor e mais original thriller hollywoodiano desde O sexto sentido. Calma lá! Quem disse isso foi apenas o William Arnold, do Seattle Post-Intellingencer.

A verdade é que para curtir o novo filme estrelado pela sempre talentosa Julianne Moore, você tem de esquecer que o Haley Joel Osment via pessoas mortas. As histórias têm muito pouco em comum. Há um clima tenso no ar, um ou outro susto e só.

Telly Paretta (Moore) é uma mãe que não consegue esquecer seu filho. Sam (Christopher Kovaleski) morreu há 14 meses em um misterioso sumiço do avião em que ele e outras crianças viajavam. Telly passa horas de seu dia vendo fitas e fotos em que seu filho brincava, dava seus primeiros passos e sorria. Para tentar superar a perda, ela faz terapia com o Dr. Munce (Gary Sinise). Tudo bastante normal, se você levar em consideração a dor que é perder um filho.

Porém, um dia, todas as certezas que ela tinha começam a sumir. Seu marido, Jim (Anthony Edwards), tenta convencê-la de que eles nunca tiveram um filho. O médico confirma tudo. E agora, em quem acreditar? Naquele que a ama e no homem que é pago para ajudá-la, ou em seu coração, que tem certeza que ela teve, sim, um filho?

A sinopse acima resume bem a primeira metade do filme, que é muito boa e afunda o espectador na cadeira, fazendo-o imaginar o que é que está acontecendo e onde aquilo tudo vai dar. São momentos tensos e intensos, mas que terminam assim que o limitado Dominic West faz uma careta estranha e descobre algo que, se você não viu o trailer, não serei eu o estraga-prazeres a contar.

A partir desse instante, o filme perde sua graça e credibilidade. Do suspense inicial, o longa vira mais uma caça do tipo gato e rato, em que não fica muito claro quem é que realmente está caçando quem. Telly e o ex-jogador de hockey no gelo Ash Correll (West) buscam a verdade por trás do sumiço das crianças. Para conseguir solucionar o caso terão de trabalhar juntos e ainda despistar os agentes federais que estão no seu encalço.

Diferente dos filmes do ianque-indiano M. Night Shyamalan, a verdade vem à tona muito antes da hora, deixando muito pouco para ser aproveitado depois. A idéia original, bastante interessante, deve agradar a muita gente e não duvido que muitos sairão do cinema dizendo que o filme é ótimo. Mas, entre outras coisas, acho um pouco difícil acreditar que um alcoólatra e uma simples dona-de-casa conseguem correr mais que policiais treinados. Vai ver os tais esquecidos do título são as pessoas que deveriam tornar a história coerente.

Cazuza



Nota: 6

Verdade seja dita: não sou fã de Cazuza, nunca fui e não me imagino me tornando um. Não nego seu talento mas suas músicas simplesmente não se encaixam no meu gosto musical. E como dizem, gosto não se discute, se lamenta. Agora, nessa resenha em hora nenhuma falo de Cazuza como pessoa ou como música. Falo como filme. O filme pode ser lendário de um artista medíocre (quem não viu Lou Diamond Phillips interpretando Richie Valens em La Bamba?) ou medíocre sobre um artista lendário (onde este se encaixa).

Até mesmo para quem nunca foi fã de Cazuza é fácil não se surpreender com o filme que, teoricamente, conta a trajetória do cantor desde o início de sua carreira em 1981 até sua morte nove anos depois. Ao invés de se concentrar em aspectos da vida do cantor que sejam desconhecidos do grande público, o filme mostra de forma romanceada sua relação com os membros de sua banda, as drogas e a família. Se por um lado Cazuza mostra-se sempre como um revolucionário, querendo sempre romper barreiras, por outro percebe-se um rapaz mimado, filho de pais super-protetores e que conseguiu sua grande chance de forma quase nepotista, ao invés de baseada em seu talento. Afinal, seu pai João Araújo, interpretado com primor por Reginaldo Faria, era o presidente da gravadora Som Livre, onde arrumou um emprego para o filho. Sua mãe, Lucinha, vivida pela sempre talentosa Marieta Severo, acaba se mostrando condescendente aos péssimos hábitos do filho, cujo talento era realmente inegável e foi mais que comprovado ao longo de sua carreira.

Mas o que seria interessante ver em Cazuza: o tempo não pára? O que nós não vimos. O filme perde boa parte de seu tempo de projeção mostrando shows do Barão Vermelho. Se mostrassem imagens reais, como fizeram com o Rock 'n' Rio, aí sim. Mas não, mostram os atores dublando as músicas da banda. Em certos momentos isso cumpre uma função como mostrar a forte amizade entre Cazuza e Frejat apesar das discussões constantes entre os dois. Mas na maior parte do tempo, apesar de serem feitos usando uma estética extremamente anos 80 e que simboliza muitíssimo bem a cena do rock da época, ainda assim é uma perda de tempo. A promiscuidade do cantor que literalmente visitava construções e pagava operários por favores sexuais é deixada de lado.

O show fica mesmo nas mãos do Daniel de Oliveira. Não só pelo filme se concentrar apenas nele, mas por sua atuação sincera mesmo que às vezes um pouco política. Responsável por isso é a direção de Sandra Werneck e Walter Carvalho que mostram o cantor mais como um ícone, sempre poeta e galante, do que como um ser humano. Ou seja, mesmo quando ele não tem a menor razão em atitudes que toma, suas respostas são sempre convincentes e o filme acaba dando razão para ele em tudo. Como se pregasse um "Cazuza morreu mas viveu intensamente" sendo que mesmo em entrevistas dadas na época em que já estava sofrendo extremamente com os efeitos da AIDS, o cantor se mostrava, de certa forma, arrependido.

Cazuza: o tempo não pára não é um filme ruim. É apenas um filme que parece ter sido feito por fãs e por isso não deixa grandes impressões. Fatos curiosos e importantes para a formação do personagem, como de onde saiu a influência da MPB em suas canções, é deixada de lado e colocada como uma simples vontade de variar. Um cantor que durante toda sua vida teve diversos artistas frequentando sua casa devido a posição de seu pai na Som Livre. Por sorte, Cazuza é um personagem curioso e atraente. E por mais que a direção de Werneck e Carvalho seja competente e os atores se mostrem à vontade em seus papéis, um pouco mais de ousadia e pesquisa não fariam mal ao roteiro. Que funciona. Tem bons momentos. Mas o interessante em um filme biográfico é conhecer o personagem e não simplesmente rever o que já vimos.

07 dezembro 2004

Contra Todos



Nota: 7,5

Num momento onde a discussão mais importante entre os cineastas brasileiros é a conquista do grande público, CONTRA TODOS, o primeiro filme de Roberto Moreira, é um colírio intelectual para olhos tão cansados de ver idéias (muitas vezes mal) recicladas da TV dominando a produção cinematográfica nacional.

Sem trocadilhos, o diretor vai contra todos os clichês da atual leva de filmes brasileiros: diz não ao apelo fácil de rostos conhecidos do grande publico, não resvala para o sentimentalismo barato e para o maniqueísmo das histórias de mocinho e bandido, tem uma trilha sonora criativa e que interage com o resto da linguagem, escolhe a rua e o realismo cru batendo de frente com os suntuosos cenários e os rituais de embelezamento de planos através de movimentos de câmera rebuscados e de uma fotografia pretensamente bem elaborada.

CONTRA TODOS conta a história de quatro personagens de classe média baixa paulistana com urgência em mudar as próprias vidas. Cláudia (Leona Cavalli, de UM CÉU DE ESTRELAS de Tata Amaral e AMARELO MANGA de Cláudio Assis) é casada com Teodoro (Giulio Lopes, estreante em cinema) e incrementa sua vida de dona-de-casa em encontros furtivos com o filho do açougueiro. O marido, por sua vez, tem como amante uma evangélica pentecostal e ganha dinheiro como matador. Sua filha é uma adolescente rebelde que tem um caso com seu melhor amigo e parceiro de crimes, Waldomiro (Aílton Graça, de CARANDIRU de Hector Babenco). O ambiente doméstico é explosivo. Teodoro é capaz de pedir uma oração no jantar e espancar a filha que se recusa a praticar o ritual.

O grande pilar do filme é o ultra-realismo conquistado pelo diretor que filmou com equipamento digital, o que diminui o tamanho da produção de cada cena, gerando um ambiente mais intimista para o trabalho dos atores. A câmera está sempre na mão, procurando os atores em suas intenções. Os ensaios se deram com o diretor apresentando apenas as intenções dos personagens, ampliando o espaço de criação dos atores. Sem um texto escrito previamente, os diálogos soam muito naturais, embora em alguns poucos momentos infelizes se perceba a carência de falas mais concisas para complementar determinada idéia.

A opção pela câmera sem suporte aproxima o filme da linguagem documental, o que é reforçado pelos longos planos iniciais por espaços públicos de São Paulo, um delírio para os cinéfilos alternativos, mas que deve chatear, com certeza, o público médio. O mesmo arroubo realista torna críveis as cenas de rituais pentecostais e a organização dos espaços das casas dos personagens, onde a maior parte das cenas ocorre. O uso de locações e de objetos de cena adquiridos no bairro de periferia onde foi filmado enriquece a proposta realista do filme.

Mais feliz, no entanto, foi a escolha do elenco. Ao apostar em rostos desconhecidos do público, o diretor consegue, pelo efeito do desconhecimento, uma identificação direta entre personagem e público, barreira que tem que ser transposta quando se trabalha com atores famosos. Mesmo assim, é o talento dos intérpretes que se sobressai, criando um filme equilibrado, onde todos os atores do elenco principal têm destaque.

CONTRA TODOS é um filme que bate de frente com toda a mesmice que vem empalidecendo de criatividade a produção brasileira atual e, mesmo que não encha os bolsos dos exibidores e distribuidores, já é uma prova de que o tão falado cinema nacional não morreu de obesidade pelo excesso de pagantes (estes muito bem-vindos, sobretudo quando pensantes), nem de inanição por medo de abordar temas ‘pesados’ e ‘polêmicos’, algo de que muitos cineastas fogem, com pavor de espantar o público.

Capitão Sky e o Mundo de Amanhã



Nota: 6,5

O ano de 1939 foi um dos mais importantes na história do cinema. Foi quando foram feitos filmes como E o Vento Levou e o Mágico de Oz. Foi também nesse ano que aconteceram avanços tecnológicos - tanto que foi concedido pela primeira vez o Oscar de Efeitos Especiais e o prêmio de Fotografia foi dividido em duas categorias, preto e branco e colorida. Mais de 60 anos depois, o final da década de 30 volta a ser notícia no cinema - e, de certa forma, fazer história. Capitão Sky e o Mundo de Amanhã, uma verdadeira festa retrô-tecnológica, ou, em outras palavras, a ficção científica que qualquer nerd sempre fantasiou.
Praticamente tudo o que aparece na tela não existe. Exceto pelos atores e alguns objetos, o filme inteiro foi criado em computador. As cenas foram rodadas em digital usando um fundo azul e os intérpretes contracenando com o nada. Mais tarde, o diretor estreante Kerry Conran utilizou programas de computador para dar vida às mais delirantes fantasias, como o dirigível Hindenburg III passeando pelos céus de Nova York, ou robôs gigantescos destruindo as ruas da cidade.
Os distribuidores, produtores e parte da mídia vendem o filme como 'a mais nova revolução do cinema'. Não é para tanto. Capitão Sky certamente é um marco nos efeitos especiais. Conran conseguiu criar imagens autênticas, atingindo um nível de excelência que gente bem mais famosa não conseguiu, com um ataque de clones. Por outro lado, essa festa visual é a grande amarra do filme. A necessidade de ter uns três ganchos na narrativa a cada rolo e a vontade de agradar o tempo todo impedem que o filme realmente seja uma grande obra para entrar na história do cinema.
É provável, que no futuro Capitão Sky seja conhecido apenas como o filme que usou o fundo azul pela primeira vez - afinal, o longa tem mais qualidades tecnológicas do que dramáticas. O roteiro vai mostrando sua fragilidade à medida em que a narrativa avança. As belas imagens seduzem a platéia, mas os diálogos vão ficando cada vez mais óbvios e previsíveis.
Esse pode ser um preço razoável a se pagar. Afinal, o belíssimo visual do filme faz com que os pouco mais de 100 minutos passem voando. Os tons de sépia, azul e prata que dominam a fotografia além de uma imagem borrada dão um ar nostálgico de uma foto antiga consumida pelo tempo. Os figurinos criados por Stella McCartney, a direção de arte e a edição valem-se de temas e padrões antigos, dando um look novo aos aparatos.
No final da década de 30, cientistas famosos estão desaparecendo em diversas partes do mundo. A repórter Polly Perkins investiga o caso. Isso acaba coincidindo com a invasão de Nova York por um exército de robôs gigantescos. As autoridades contatam o Capitão Sky (Jude Law), uma espécie de pirata aéreo que topa qualquer parada, para com sua frota botar ordem no caos.
Isso acaba colocando Polly e Sky lado a lado novamente. Eles têm uma história de amor mal-resolvida. As discussões à la Jejum de Amor são alguns dos melhores diálogos do filme - principalmente a piadinha final. A dupla irá investigar os robôs e o desaparecimento não só dos cientistas, mas também de Dex (Giovanni Ribisi), uma espécie de braço direito de Sky. Um trabalho que os leva ao Himalaia e também para um vale em Shangri-lá.
Essa jornada, aliada à falta de tato de Conran para conduzir roteiros, faz Capitão Sky sofrer de altos e baixos com o tempo. Por isso, acaba sendo um alívio quando a personagem de Angelina Jolie, uma comandante britânica, entra em cena, dando um novo fôlego à trama. E que fôlego! Ela aparece praticamente no último terço da história, mas a bela atriz, com sua sensualidade nata e um tapa-olho sexy, levanta os ânimos. Ela, aliás, pode ter a ver com a separação de Sky e Polly.
Como todo bom cinema feito por aficcionados (à la Tarantino), Conran colocou uma centena de referências, que vão desde screwball comedies, passando por ficções e fantasias como King Kong (1933) e Metrópolis (1927), de Fritz Lang, além das mais explícitas, como O Mágico de Oz e O Morro dos Ventos Uivantes (1939).
O elenco tem o apelo certo que pede o pacote. Gwyneth nunca esteve tão bem e tão loira platinada. Sua Polly revela-se uma mistura de uma mulher dissimuladamente indefesa com uma repórter bisbilhoteira. Law, um dos produtores do filme, também faz um Sky ao mesmo tempo sedutor e arredio.
Não foi apenas 1939 que foi 'ressuscitado' em Capitão Sky; Há também uma participação muito especial de Sir Laurence Olivier, morto em 1989, que aparece em imagens de arquivo, num dos momentos mais bem sacados do roteiro.
Com tudo isso, o filme acabará tendo apelo tanto junto ao público mais nostálgico, que sente falta de 'filmes à moda antiga', como com os mais jovens ávidos por efeitos especiais. Essa tecnologia, aliás, é usada de forma bem coerente, evitando-se assim constrangimentos tecnológicos como Eu, Robô e A Liga Extraordinária.