29 junho 2005

Nicotina



Nota: 8,5

Em Nicotina, uma sucessão de acasos e mortes se unem pela espiral de fumaça dos cigarros. Fumar faz mal à saúde, adverte o Ministério da Saúde, mas pode ser bom para o cinema.

Na entrevista que deu ao Estado, durante o Festival de Cannes, Jeanne Moreau descreveu as baforadas de Marlene Dietrich nos filmes de Joseph Von Sternberg como a suprema afirmação do erotismo no cinema. Wayne Wang e Paul Auster obtiveram bom resultado com Cortina de Fumaça e Sem Fôlego e Michael Mann obteve reconhecimento como grande diretor a partir de sua denúncia da indústria tabagista no poderoso O Informante, no qual o alvo do ataque do cineasta é menos a indústria do fumo que a mídia e a Justiça por ela cooptadas.

O diretor Hugo Rodriguez, de Nicotina, viu todos estes filmes e também Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Nicotina é obra de um fumante tarantinesco que vê no acaso uma ponte para a violência. São três tramas interligadas que correm num tempo muito preciso, das 21h17 às 22h50, num total de 83 minutos. No centro de todas elas está o cigarro, que o diretor Rodriguez e o roteirista Martin Salinas definem como metáfora de qualquer coisa, da fraqueza e carência ao desejo consciente de morte.

Tudo começa com a confusão provocada por Lolo. Interpretado por Diego Luna, um dos garotos de E Sua Mãe também, de Alfonso Cuarón, ele é um técnico em computadores que instalou um sistema para monitorar a vida da vizinha. Neste momento, Lolo foi contratado para uma atividade criminosa - deve entrar nas contas secretas de um banco. Um par de comparsas vem buscar o disquete no qual ele registrou os códigos de acesso para repassá-lo a dois mafiosos russos, que vão pagar em jóias, mais exatamente, diamantes. Mas o voyeurismo de Lolo é descoberto pela vizinha, que invade seu apartamento e arma uma cena. Nervoso, o rapaz troca o disquete e desencadeia uma série de perseguições e mortes que correm velozmente na tela, apoiadas em situações e diálogos repletos de humor negro.

A este núcleo inicial, o de Lolo, agregam-se outros dois - o do farmacêutico e sua mulher e o do casal que possui a barbearia na qual vai parar o russo fugitivo. Antes de morrer, ele tem tempo de dizer que escondeu as jóias na pança e é o que basta para a mulher do barbeiro, como uma ensandecida Lady Macbeth, abrir sua barriga e revirar nas tripas em busca do ouro. São cenas que poderiam ser chocantes, não fosse o humor com que o diretor as reveste.

Sob a aparência de uma simples diversão, Rodriguez, em Nicotina, cria polêmica por duas ou três coisas que diz sobre a natureza do vício - e de como aqueles que não conseguem deixar de fumar ficam encurralados por seus desejos quase sempre irracionais.

Corações e Mentes



Nota: 10

Para muitas pessoas Riachuelo sempre foi uma loja de roupas, não uma das batalhas mais desiguais da Guerra do Paraguai. Por outro lado, muitos de nós sabemos detalhes do estrago que o exército dos Estados Unidos fez em um pequeno lodaçal no Sudoeste da Ásia entre 1964 e 1975. A Guerra do Vietnã - explorada a esmo no cinema - já está impregnada no nosso imaginário. O que um documentário sobre o tema tem hoje a oferecer?

No caso de Corações e mentes (Hearts and Minds, 1974), Oscar da categoria em 1975 e um dos divisores de água do gênero em Hollywood, tem muito. Não apenas pelo fato do intervencionismo estadunidense continuar igual três décadas depois, mas pelo que diz, nas entrelinhas, a respeito do racismo, da natureza combativa e da prepotência inerentes ao imperialismo do irmão do Norte.

O diretor do filme, Peter Davis, estava para o governo Nixon (1969-1974) como Michael Moore está para a Era Bush. A primeira diferença é que Davis sabia o que fazia: narrativa panfletária, sim, mas sem discursos em off redundantes ou satíricos. Davis confiava no poder das imagens, Moore confia no poder de si mesmo. A segunda diferença é que, depois de reeleito, Richard Nixon renunciou. Bush ainda não.

Para fazer valer sua posição pacifista diante dos estertores da guerra, que já durava mais de dez anos, Davis primeiro vai à origem de tudo: a Guerra Fria. Nos anos 50, os EUA financiavam a tentativa da França de manter o domínio colonial sobre a então Indochina. A intenção norte-americana era evitar que os emancipacionistas, afinados com o Comunismo, declarassem independência. O país também tinha uma cultura agrícola respeitável, principalmente no plantio de arroz. Qualquer coincidência com as justificativas de hoje - guerra pelo petróleo e contra o Islã - não são coincidência.

A coisa começou a apertar quando os franceses foram derrotados e os Estados Unidos tomaram as dores da expulsão. A cada ano, no Sul, as tropas de Tio Sam aumentavam em número à medida que o Vietcongue do Vietnã do Norte, comandado por Ho Chi Minh, resistia ao poderia bélico. E é quando o massacre ficou evidente, final dos 60 e início dos 70, que Davis colheu a maioria das imagens do filme.

Não dá para saber muito bem o que é material de arquivo e o que foi filmado por Davis, mas impressiona como a câmera parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Está no helicóptero que bombardeia pântanos. Acompanha a tortura de um vietnamita na rua. Segue o menino que pede esmolas no ocidentalizado Vietnã do Sul. E está com soldados na cama das prostitutas da capital Saigon.

Se a clássica foto da menina nua, queimada de napalm, lhe causa desconforto, passe longe de Corações e Mentes. Crianças literalmente descascando são aqui um forte argumento visual contra o genocídio. Perto do fim, mães desesperadas ameaçam se jogar nas covas em que seus filhos estão sendo enterrados. Logo em seguida, um general da ofensiva contradiz a cena dizendo que os vietnamitas não têm o mesmo apego à vida que os ocidentais, que isso é uma coisa presente na "filosofia oriental".

Davis, que não é bobo, traduz quando precisa falas em francês e vietnamita para o inglês, trocando rapidamente as legendas por dublagens. Fica muito mais dramático ouvir o relato da filha morta em um bombardeio não quando se lê, mas quando se ouve. Nem precisaria disso. Assim que a palavra é passada aos combatentes as idiossincrasias ficam evidentes. Deve haver algo de muito errado com um país quando o ameríndio, convocado a lutar, estende ao "amarelo baixinho e iletrado" o mesmo tipo de preconceito que ele sofre do restante dos soldados.

A certa altura da retirada, o alto escalão da ofensiva aparecia em campo somente para distribuir medalhas aos vietnamitas que começavam a recompor o exército contra o Vietcongue, em substituição aos estadunidenses. Ironia: em A Queda (2004), Adolph Hitler, ciente da derrota, saía de seu bunker somente para condecorar os adolescentes nacionalistas que morreriam pouco depois. Não havia, num cenário assim, como conquistar os corações e as mentes dos vietnamitas - único modo, segundo um estrategista no início do filme, de vencer a guerra. Hoje isso é repetido em Bagdá: deve-se conquistar a confiança dos iraquianos para estabelecer a paz.

No fim das contas, os únicos corações e mentes cooptados aqui são os dos próprios estadunidenses. Davis faz questão de filmar jogos de futebol americano e palestras de ex-prisioneiros de guerra em escolas para demonstrar como a compulsão pela vitória e a xenofobia estão arraigados na cultura nacional. Repare no close-up reservado a uma baliza - a menina que abre a parada militar equilibrando um bastão. Toda maquiada e sorridente, ela é o emblema nefasto dessa política de Estado. O coração voltado para a suposta defesa dos ideais democráticos. A mente convencida da superioridade da América.

Contra Corrente



Nota: 7

Seja no sertão nordestino de Abril Despedaçado (2001), nos confins argentinos de O Pântano (2001), nas encostas sicilianas de Respiro (2002), no vilarejo espanhol de O Sétimo Dia (2004) ou, agora, nos lodaçais estadunidenses de Contra Corrente (Undertow, 2004), a lei que vigora é a mesma: o determinismo. Famílias sem perspectiva social são os motes dessas cinco obras, mas no caso deste filme indie de David Gordon Green os peões dessa tragédia meio que fazem por merecer a desgraça, nestes tempos anti-Bush: são os caipiras da chamada américa profunda.

Sempre que perguntado sobre o lugar de onde vem, o adolescente Chris Munn (Jamie Bell, o famoso Billy Elliot) diz que vem de lugar nenhum. Mas não é difícil localizá-lo, por dedução: casas de alvenaria, pocilgas no quintal, longas distâncias rurais, camisas de flanela xadrez, florestas, rebocadores desdentados, cantoria gospel, sotaques puxados, fantasias de peregrinos no Dia de Ação de Graças, recém-casados de carroça, bonés de lenhador, botas de couro, caminhonetes desbotadas.

A região entre o Centro-Oeste e o Sul dos EUA - que comporta, aliás, o Estado do Alabama onde, há trinta anos, nasceu o diretor-revelação Green - é a redoma que asfixia a família Munn. O pai, John Munn (Dermot Mulroney, de As confissões de Schmidt), vive em ponto morto depois que perdeu a esposa. Sobraram os dois filhos, Chris e o caçula, Tim Munn (Devon Alan). Os três não esperam muito da vida. Nem mesmo a cortar os cabelos que já tampam a vista do irmão Chris se dispõe.

Vigiado para não cometer os erros do pai quando jovem, basta que lhe virem as costas para Chris largar os serviços do chiqueiro. Ele comete delinquências na cidade. Corre à casa de uma garota. Mas ela não quer nada com ele. Ninguém quer. Até o dia em que o seu tio, Deel Munn (Josh Lucas, de Hulk), sai da cadeia e lhes presta uma visita. Deel tem sérios assuntos a tratar com John. Ficamos sabendo do passado nada glorioso dos irmãos. Coisas que podem ocorrer - e certamente ocorerrão - à geração seguinte de irmãos, Chris e Tim.

Essa herança maldita, seleção natural aparentemente inescapável, tem no riacho a sua alegoria e em Caronte (barqueiro na mitologia grega que levava as almas ao inferno), o seu símbolo fúnebre, como conta John em uma fábula familiar. As águas que se renovam na vizinhança dos Munns são como as vidas que se sucedem em nome dessa harmonia do caos.

Mas o nome do filme é Contra corrente, é a reação ao determinismo. O termo original, undertow, quer dizer recuo das ondas, mas também significa uma idéia adormecida no fundo da mente. Se a primeira metade de 108 minutos de filme mostra o peso do inconsciente coletivo em Chris, a tensa metade final trata da tentativa de libertação, da sua excruciante terapia.

Pois é inconscientemente que Chris e Tim atravessam, em fuga, árvores e mais árvores, vilarejos e ruas e jardins atrás não sabem bem do quê. Ainda que invasiva, a orquestração um tanto lírica de Philip Glass (compositor de As Horas) acompanha bem essa metade do filme. Dá o tom do que parece apenas um road-movie desembestado, quando na verdade é uma história de formação de caráter dos jovens irmãos. E essa formação passa obrigatoriamente pela desconstrução da existência, por um certo primitivismo, desde provar o sabor de tinta até entender as picadas de um parasita. A sequência em que Chris recorre às mamas da vaca para matar a sede é emblemática.

Nesses momentos Green demonstra afeto com as coisas da terra. Não é um diretor que, como tantos, caricatura e condena a massa sulista por desconhecê-la. Crítico construtivo, ele demonstra por meio do menino Tim - ainda que de forma um tanto grotesca - que digerir o desconhecido não é simples. Essa analogia entre o fisiológico e o comportamental, o orgânico e o social, funcionou muito bem para Lucrecia Martel no citado O Pântano (em que o lodo também é sinônimo de estagnação), e dá certo aqui também.

Há outra semelhança com os demais três filmes lembrados no início do texto. No momento climático de Contra Corrente, Chris sonha estar diante do mar. Tradicionalmente no cinema é no mar que tudo se resolve - e diferente do riacho, as ondas não seguem um único curso, pelo contrário, abrem-se a correntes várias. Trata-se do mesmo mar do desfecho que Emanuele Crialese, Walter Salles Jr. e Carlos Saura assumiram para os supracitados trabalhos; a imensidão do mar serve como o escapismo que livra os personagens do determinismo arraigado na terra. Acontece que Green recusa a facilidade do escapismo. E Chris acorda do sonho. Sem mar, ele terá que se resolver com o pai John, com o tio Deel, com Caronte, com a corrente.

22 junho 2005

Batman Begins



Nota: 6

A história deste novo Batman começou com uma tragédia. O cineasta Christopher Nolan estava preparando uma cinebiografia de Howard Hughes, que seria protagonizada por Jim Carrey, quando ficou sabendo que Martin Scorsese estava começando as filmagens de seu O Aviador (2004). "Acho que não escrevi rápido o suficiente", disse o diretor de Amnésia (2000) e Insônia (2002) à revista Empire. "Então eu decidi fazer um filme sobre um tipo diferente de milionário excêntrico", brinca.

A escolha de quem já havia demonstrado "mão boa" em filmes menores, porém de grande profundidade psicológica, não poderia ser mais acertada. Nolan, que confessa nunca ter sido leitor voraz de histórias em quadrinhos, trabalhou ao lado de David S. Goyer (roteirista dos Blade e que atualmente escreve o longa The Flash), fã desde pequeno do Cavaleiro das Trevas. O que os dois sempre buscaram foi a resposta mais próxima da realidade possível para o caminho trilhado por Bruce Wayne, desde que ficou órfão até o momento em que colocou a capa, a máscara e o cinto de utilidades.

No início do filme, vemos um jovem Bruce brincando no jardim ao lado de Rachel Dawes. Quando o menino sai correndo e se esconde da amiga, acaba caindo em uma caverna infestada de morcegos. Os animais serão não apenas a causa de seus maiores pesadelos, mas também a inspiração para o personagem que vai percorrer as noites de Gotham prendendo bandidos e outros malucos.

Quem leu Batman: Ano um, de Frank Miller, vai perceber semelhanças na descrição acima e em algumas cenas do longa. Porém, a clássica minissérie que conta os primeiros dias do Batman não foi a única fonte. O que os dois roteiristas queriam mesmo era mostrar o treinamento físico e principalmente psicológico que ajudaram Wayne a criar o Homem-Morcego.

Para deter os bandidos, Bruce Wayne resolve entender a mente de seus inimigos e abdica de todos os seus bens e poderes financeiros e passa a viver como um criminoso, roubando, passando fome, apanhando em prisões. Ao ser jogado em uma solitária tão úmida e sombria quanto a caverna que depois se tornaria seu lar, Wayne conhece Henri Ducard (Liam Neeson). Ele promete ajudá-lo em sua busca e, ao fim do treinamento, abre o jogo sobre a sociedade chamada Liga das Sombras e seu líder, Ra's al Ghul (Ken Watanabe).

Ao retornar à Gotham City, Wayne (Christian Bale) vê uma cidade já completamente dominada pelo crime organizado. Os policiais, os juízes e os políticos são todos corruptos e estão acabando com a cidade que seus antepassados ajudaram a construir. Até mesmo a Wayne Enterprises, antes voltada ao bem dos cidadãos, está agora mais preocupada apenas com os próprios lucros. Os únicos aliados de Batman para recuperar a cidade são o mordomo Alfred Pennyworth (Michael Caine), o Tenente Gordon (Gary Oldman), Lucius Fox (Morgan Freeman), seu braço direito dentro da Wayne Enterprises e a crescida Rachel Dawes (Katie Holmes), agora promotora pública assistente.

As pancadarias, perseguições em autovias, pancadarias, salvamentos de prédios em chamas, pancadarias e vôos que se seguem também são diferentes do que se esperaria de um caríssimo filme de verão norte-americano. As cenas são fracas e muito forçados. Boa parte da verba, algo em torno de 135 milhões de dólares, foi investida em equipamentos e cenários de verdade. Muito pouco do que se vê na tela são pixels criados em parrudos computadores. O maior exemplo disso é o novo Batmóvel. O carro/tanque foi a primeira coisa do filme a ser revelada ao público porque foi também a primeira a ser construída. Foi o seu sucesso junto à cúpula da Warner Bros que garantiu ao time criativo (Nolan, Goyer e o desenhista de produção Nathan Crowley) sinal verde para desenvolver o projeto sem ressalvas. Ao todo, foram produzidos cinco modelos, que fazem de verdade tudo o que se vê nas telas, como saltar e fazer curvas em alta velocidade.

Quem tem o Batman como herói preferido é porque sabe que o Cavaleiro das Trevas não nasceu em um planeta distante, foi picado por aranhas radioativas, ganhou um anel poderoso, ou tem genes mutantes. O Morcegão é o melhor porque é "apenas" um ser humano, como você e eu. A diferença é que ele é muito mais obstinado e, bom, tem mais grana na conta bancária. Beeem mais!

Esta humanidade é mostrada no longa quando Batman volta para a Mansão Wayne e é acordado por Alfred, que o adverte contra os inúmeros hematomas que ele tem em seu corpo. Logo em seguida, o mordomo-faz-tudo - inclusive servir de alívio cômico - sugere ao patrão que ele se arrume para uma balada. Bruce Wayne, o playboy que sai para jantar e se divertir e compra hotéis de sobremesa é um personagem tão interessante quanto aquele que se fantasia e sai à noite. A escolha de Christian Bale (Psicopata Americano) para protagonizar a história foi corretíssima, pois ele demonstra na voz a diferença entre os três personagens que interpreta: Batman, o playboy e o verdadeiro Bruce Wayne.

Mas assim como Bruce Wayne, Christopher Nolan é humano e erra (ou cede aos desejos do mercado). Há um número exagerado de vôos do Batman, provavelmente criados para vender bonequinhos que planam por aí. Há também alguns vícios hollywoodianos, como a repetição incessante da frase "você precisa cair pra aprender a se levantar" e perseguições nonsense pelas ruas de Gotham. Talvez isso, e a criação de uma personagem - Rachel Dawes - , que foi claramente colocada no longa para ser o interesse romântico de Bruce Wayne/Batman, estrague esta volta triunfal do Batman. O filme é mais dark, mais sombrio, mais real (Gotham lembra muito São Paulo), mas com muita ação banal. Sem dúvida, o título - que pode ser traduzido livremente como "Batman, o início" - reflete o começo de uma lucrativa e, principalmente, promissora franquia. Como início foi bom, melhor que os antecessores, mas creio que deveriam pensar mais na questão psicológica do personagem (o que permeia a primeira parte do filme) e menos na questão mercadológica (que domina o restante final). O filme não ´ruim, mas poderia ter sido muito melhor. Vamos esperar o próximo.

15 junho 2005

Clean



Nota: 7,5

Se considerarmos a qualidade de alguns trabalhos anteriores recentes, como Demonlover (2002) e Irma Vep (1996), dá pra se afirmar que o diretor francês Olivier Assayas se livrou das drogas.

Em termos comparativos, Clean (2004), seu filme mais recente, é infinitamente superior e amadurecido em relação aos supracitados, meros exercícios de câmera e de linguagem numa análise mais relativa. Este longa, vencedor de dois prêmios do Festival de Cannes do ano passado (Melhor Atriz para Maggie Cheung e Melhor Fotografia para Eric Gautier, o mesmo de Diários de Motocicleta), entra em cartaz no Brasil com seu título original para não estragar o sentido dessa palavra única e forte, ou então talvez para não comprometer seu conteúdo por via de traduções tenebrosas, muito comuns quando se tem como objetivo levar tudo quanto é público ao cinema. Numa versão brasileira aproximada, seria algo como um processo de desintoxicação. Entretanto, essa “limpeza” purificadora não se observa apenas nos aspectos orgânicos e farmacológicos do filme. Clean vai fundo na alma de seus personagens, atingindo o âmago de suas questões e perturbações psicológicas. É muito mais intestino do que cosmogênico.

O filme conta a história de Emily Wang (Cheung, ex-esposa do diretor, numa interpretação formidável), casada com um rock star, Lee Hauser (James Johnston). Emily tenta colocar seu marido dentro do cenário musical, indo atrás de gravadoras e de empresários. Porém, seu temperamento faz com que ela se desentenda com todos desse universo artístico, entre eles o próprio agente de Lee. Por causa disso, ela não é bem quista por amigos do cantor e nem mesmo pela família dele, que a vê como uma mãe ausente e pouco preocupada com o filho pequeno. Tanto Emily quanto Lee são consumidores pesados de drogas e, como se não bastasse, é ela própria que fornece a ele os tais entorpecentes. Certo dia o roqueiro morre de overdose. Emily é considerada culpada e acaba indo passar seis meses na prisão. Após esse período cumprindo pena, ela tenta uma reaproximação com seu sogro, Albrecht Hauser (Nick Nolte), que tem a guarda da criança.

A escolha de Paris como a cidade desse reencontro não poderia ser mais acertada. Ela é a síntese perfeita desse composto amalgamado de modernidade e decadência. Paradoxalmente, a cidade-luz é retratada com uma série de imagens escuras. Os planos embaçados e claustrofóbicos são a busca inconsciente, dentro do processo retroativo histórico, pela claridade no período das trevas. O filme, de certa forma, resgata esse Iluminismo artístico, trazendo para os dias de hoje esse tão estudado movimento de rearranjo do sistema de idéias e pensamentos, em que foi necessário, como em toda ruptura estética, um choque de valores. Não é à toa que, tanto na História quanto na película, a palavra que vem à cabeça é Renascimento. Somente através do sepultamento do passado é que se pode dar um novo sentido à vida. Um sentido mais claro, a uma vida mais limpa.

Assayas parece mesmo ter abandonado seus vícios frenéticos. Aqui não há mais a necessidade de impor seu estilo através de experimentalismos lingüísticos ou maneirismos exibicionistas. Clean, nesse sentido, é mais contido que alguns de seus trabalhos predecessores. Daria pra arriscar dizer que ele flerta, mas não se debruça no “deixar acontecer” da nouvelle vague. A câmera é respeitosa, seguindo naturalmente o fluxo e obedecendo ao tempo de cada um de seus personagens. Numa cena inicial, em que uma banda toca em um bar alternativo, a câmera não se contenta em apenas fazer o registro da música como algo que está acontecendo naquele instante. Ela se aproxima do grupo dark no palco, acompanhando a respiração da cantora e os batimentos cardíacos da canção, do primeiro ao último acorde. É um momento, assim como vários outros, de introspecção, que dá ao espectador a possibilidade de desfrutar os timbres sonoros e também se aprofundar no entendimento da relação que os protagonistas estão tendo com aquele recorte de suas vidas. Isso não quer dizer que a mão de Assayas seja omissa e seu olhar, meramente contemplativo.

Clean está longe de ser um filme letárgico. Há uma interferência muito grande do diretor em seu ritmo. Alguns movimentos de câmeras, que percorrem os corpos e a porosidade de suas peles, provam exatamente isso. Em certos momentos, em que essa máquina galopa pela matéria humana e invade os vazios formados por ela, percebe-se que é necessário se alimentar de muito queijo brie para se chegar a tal nível de maestria.

Tudo em Clean converge para a família e as relações de casa. Emily deixou Jay com os sogros para viver o inebriante mundo do rock. Há os pais de Lee, que, em algum momento, perderam o bonde. Não o identificam, por exemplo, em fotos de discos. Compensam tentando de novo, na criação do neto. Clean, um filme sobre gerar, amar e as responsabilidades que aqui orbitam, rastreia esse fluxo misterioso que é o crescer dos filhos, numa química de ternura e rispidez, intensidade afetiva e estranhamento. Os sogros deixaram de conhecer Lee, Emily e Jay mal se conhecem, mas todos têm amor uns pelos outros.

A Janela da Frente



Nota: 5

Em O último beijo (L'ultimo bacio, de Gabriele Muccino, 2001), a bela atriz Giovanna Mezzogiorno sofria com a indecisão conjugal de seu noivo, que precisou trai-la para descobrir o quanto a amava. A posição se inverte em A janela da frente (La finestra di fronte, 2003), dirigido pelo turco Ferzan Ozpetek.

Agora, ela interpreta Giovanna, esposa exemplar que anda descontente com a vida profissional e com a pessoal que há nove anos leva ao lado de Filippo (Filippo Nigro). Certo dia o casal encontra um idoso perdido, sem identidade ou memória, que passa a segui-los pelas ruas de Roma. Giovanna não se incomoda, mas o marido traz para casa o sujeito (vivido por Massimo Girotti).

Aos poucos a mulher se afeiçoa por ele - ainda mais quando começa a conhecer o seu nebuloso passado de paixões e sacrifícios. Esse contato com tanta carga emocional a impulsiona: Giovanna decide se aproximar do bonitão do apartamento vizinho, Lorenzo (Raoul Bova), que até então ela só espiava pela tal janela da frente. Lorenzo e Giovanna se aproximarão neste mergulho na história do velho desconhecido.

Assim, amor nos tempos de hoje se intercala com o amor no passado. O que era autoconhecimento intimista no filme de Muccino ganha aqui a ambição de um resgate histórico. Reconstituição de época e debate de temas tabus nos anos 30 e 40, como o homossexualismo, chegam ao primeiro plano na investigação que Giovanna faz aos poucos. A amnésia do estranho trata de uma expiação italiana em relação ao Fascismo que, nos dias atuais do direitista Berlusconi, é imperativo retomar, como se todo cidadão italiano precisasse cavucar a própria memória esquecida para atualizá-la.

Ótimo começo. Mas como se trata, antes de tudo, de um emotivo melodrama, prepare-se para ver essa variação de assuntos impregnada toda de sentimentalismo.

E sentimentalismo em produções italianas, vale dizer, beira o cafona. Os olhos oceânicos de Giovanna não escapam a um único close-up. A redução dos personagens a estereótipos vai desde o marido grosseiro à mesa até a caracterização do amante como um Clark Kent irretocável, atencioso e carinhoso. Dentro e fora da tela, tudo conspira em favor da comoção: espécie de voz da experiência para o elenco, Massimo Girotti faleceu em Roma aos 84 anos no dia 5 de janeiro de 2003, antes da estréia do filme, que é dedicado a ele.

Quem conseguir atravessar essa nuvem de pranto, contudo, pode enxergar em A janela da frente interpretações distintas. Curioso, por exemplo, como à luz dos plebiscitos da Constituição Européia o filme adquire uma conotação inesperada.

No começo do longa aprendemos, ainda que não seja dito, que Giovanna se ressente de viver num prédio cheio de imigrantes. A câmera de Ozpetek, ele mesmo um estrangeiro, perde bom tempo nos não-romanos amontoados em apartamentos pequenos demais. Em seguida, passeia pelas ruas da capital junto com os devaneios do desmemoriado como um tour pela nostalgia italiana. Giovanna se ressente também de trabalhar de dia e o marido de noite em empregos pouco recompensadores. Identidade e sustento, ora, são os tópicos mais pertinentes da integração continental hoje em voga. O desfecho melancólico do filme pode ser um pouco frustrante no lado amoroso, da identidade (e não deixa de ser melancólico política e socialmente; seria bem conservador caso se consumasse por completo), mas funciona bem para mostrar que os europeus se contentariam, antes de qualquer coisa, com uma certa dignidade profissional, com o sustento.

O longa fez sucesso na Itália, onde ganhou cinco prêmios David Di Donatello (o Oscar italiano). Embora o apetite do público italiano por pieguice nunca deva ser subestimado, Janela aparece como uma difícil aposta.

10 junho 2005

O Guia do Mochileiro das Galáxias



Nota: 6,5

Publicado em 1979, O guia do mochileiro das galáxias, primeiro livro de uma série criada por Douglas Adams (1952-2001), ganhou uma legião de fãs pela sua mistura de ficção científica empolgante com sátira social e política no estilo de Monty Python. Não por acaso, seu escritor também era britânico, assim como a trupe de Em busca do cálice sagrado, e partilhava do senso de humor que só os súditos da Rainha têm.

O desejo de transportar esta aventura espacial para outras mídias partiu do próprio Adams. O Guia do mochileiro, na verdade, surgiu como uma série de rádio, que foi compilada em fitas cassete e só então virou o bestseller. Depois que conseguiu um espaço na TV britânica Adams chegou até a escrever duas versões do roteiro de um longa-metragem. Infelizmente, devido a um ataque cardíaco aos 49 anos, ele não viveu para assistir ao seu filme. Foram anos de negociações e indecisões sobre o projeto. O sinal verde para a produção só foi dado pela Walt Disney Pictures em outubro de 2003, dois anos depois do falecimento do autor.

Com o OK da casa do Mickey, as tresloucadas personagens d'O Guia do mochileiro não tardaram a ganhar novas formas de carne e osso. Revisado por Karey Kirkpatrick (Fuga das Galinhas), o roteiro de Adams chegou às mãos do maluco Spike Jonze (Adaptação), que recusou o projeto mas indicou um colega diretor de videoclipes para o trabalho. Assim entrou em cena Garth Jennings, conhecido pelos clipes de "Coffee & TV" (Blur), "Right Here, Right Now" (Fatboy Slim) e "Imitation of Life" (REM), entre outros.

Ao lado do produtor Nick Goldsmith, seu sócio na Hammer & Tongs, Jennings leu o roteiro do filme e decidiu se arriscar pela primeira vez em um longa-metragem. Meses depois, todos os assentos da nave Coração de Ouro, veículo de "improbabilidade infinita" que carrega os protagonistas do filme através da galáxia, já estavam ocupados com ótimos atores e a produção finalmente estava pronta para zarpar.

Não entre em pânico

O aguardado projeto chegou às telas finalmente em maio de 2005. Porém, lamentavelmente, o resultado é apenas mediano.

Apesar de ser uma produção claramente apaixonada, ela não tem sucesso em versar a essência do livro para o cinema. Boa parte do que soa histericamente engraçado no romance perde força quando lançado em cristalina computação gráfica nas telonas. A equivocada decisão de colocar um narrador ao fundo, numa tentativa bizarra de explicar o que já está sendo visto, também não ajuda. Não há nada mais redundante do que isso na linguagem da sétima arte. Será que o estúdio acredita que as piadas de Adams são inteligentes demais para o público dos multiplexes?

Melhor sorte têm as cenas geradas por técnicas clássicas - como a parte em que os viajantes espaciais são transformados em sofás coloridos. Nessa seqüência, assim como em outra criada com bonecos de pano, os móveis animados são criados por stop-motion e o resultado é divertidíssimo. Fica a sensação de que se a produção tivesse sido criada com mais improviso e absurdos e tivesse menos da "Magia Disney" hollywoodiana teria funcionado muito melhor.

Mas "não entre em pânico", como diria o próprio Guia. Há idéias boas no filme. A melhor delas é mostrada logo no começo, quando o capítulo 23 do livro - que explica que os golfinhos são mais inteligentes que os humanos - ganha ares de musical da Broadway com direito a uma trilha sonora que ficará dias tocando na sua cabeça. O próprio narrador funciona bem em outros momentos da história, quando o Guia do Mochileiro das Galáxias, o guia de viagens intergaláctico carregado pelos heróis, entra em ação. Nessas passagens, que servem para explicar termos ou espécies, entram animações simplistas que pedem os tais divertidos comentários em off. Nelas, a relevância de imagem/narração se inverte e o texto de Adams é valorizado como nos livros.

A versão nacional do filme também reserva uma grata surpresa (não é sempre que as distribuidoras nacionais têm boas idéias com essa): apesar do longa ter legendas, o sempre competente José Wilker dubla a voz do narrador. A solução é inteligente, já que as cenas em que ele interfere são geralmente recheadas de informação e colocar a legenda sobreposta às animações poluiria demais a imagem.
A grande pergunta da Vida, do Universo e Tudo Mais

Mas se a adaptação não é assim tão boa, pelo menos os atores se esforçam para que ela se mantenha acima da média. Martin Freeman, da série de TV The Office, está perfeito como o terráqueo Arthur Dent. Seu robe puído, toalha estampada e cara de alienado estão ótimos. O astro Sam Rockwell (Os vigaristas) também diverte como o presidente da galáxia Zaphod Beeblebox, um alien de dois rostos e três braços que tem como maior realização da carreira a criação da bebida Dinamite Pangaláctica. Mas quem rouba a cena é Marv, o andróide paranóide. Interpretado pelo anão Warwick Davis (Willow, Retorno de Jedi) e dublado por Alan Rickman (o Snape de Harry Potter), o personagem pessimista tem as melhores cenas do filme.

A história começa minutos antes da explosão da Terra - planetinha inútil que será destruído para obras de melhoramento da Via Láctea - e mostra um britânico comum chamado Arthur Dent (Freeman) sendo poupado da catástrofe. Seu salvador é Ford Prefect (Mos Def), um alienígena que passou os últimos 15 anos estudando os hábitos terrestres disfarçado de ator desempregado para atualizar o Guia do Mochileiro das Galáxias, publicação interplanetária no melhor estilo "guia de viagens". Juntos, eles começam a viajar pelo universo, auxiliados pelas espertas dicas do manual e acabam envolvidos na busca pela "grande pergunta da Vida, do Universo e Tudo Mais".

A sinopse pode até se parecer com a do livro, mas a história distorce momentos significativos da obra de Adams. O primeiro ponto a ser destacado é a inclusão do líder religioso Humma Kavula, personagem criado pelo próprio autor especialmente para o filme. Interpretado por John Malkovich (O retorno do talentoso Ripley), Humma, apesar de divertido, surge como mera desculpa para a aparição de algo que será utilizado numa das cenas finais.

E por falar em final, não há qualquer semelhança entre o clímax do livro e o do longa-metragem. As mudanças são simplesmente lamentáveis e tiram toda a relevância filosófica de acontecimentos centrais da trama. Adams, que se considerava um ateu radical ("Deus desapareceu em uma nuvem de lógica", escreveu), pontuou sua comédia literária com observações sagazes sobre a natureza humana, a nossa imbecilidade perante o planeta e ácidos comentários sobre as religiões. O filme, devidamente pasteurizado para a família, estrategicamente elimina todos esses pontos, transformando genialidade subversiva na pipoca engraçadinha da semana, com direito a momentos de comédia romântica.

Se a idéia das mudanças era aumentar o potencial de público do filme, a Disney quebrou a cara. As bilheterias mundiais estão muito abaixo do esperado e uma continuação - devidamente plantada ao final do filme - só deve decolar se o filme gerar bons resultados em DVD. A obra de Douglas Adams merecia destino melhor.

Brown Bunny



Nota: 7,5

Depois de dois anos de atraso, o público brasileiro poderá finalmente conferir o motivo de toda a polêmica em torno do último filme do multitalentoso Vincent Gallo. Brown Bunny (2003) ganhou destaque na mídia por causa de uma cena explícita de sexo oral envolvendo o próprio Gallo e a atriz Chlöe Sevigny. A tal cena foi tão marcante que a agência Philip Morris resolveu não representar mais a atriz, mesmo sendo ela uma artista indicada para o Oscar - Melhor Atriz Coadjuvante por Meninos não choram (1999). O mais irônico é que a cena seria interpretada pela Kirsten Dunst, a 'namoradinha' do Homem-Aranha. Ela abandonou o projeto no último instante e acabou sobrando para Chlöe, ex-namorada do diretor.

Conhecido por suas excentricidades, Gallo produziu, dirigiu, escreveu, atuou e chegou a operar a câmera. Muitos o acusaram de praticar um exercício de megalomania e exibicionismo. O filme foi vaiado em sua sessão de estréia no Festival de Cannes em 2003 e virou sinônimo de piada por diversos críticos renomados. Depois do desastre, o cineasta resolveu cortar aproximadamente 20 minutos da fita. A nova versão, menos lúdica, conquistou os mesmos críticos que o vaiaram. E foi assim que produção venceu o prêmio da crítica no Festival de Veneza no mesmo ano. Porém, a controvérsia sobre a cena de sexo oral envolvendo os dois protagonistas permaneceu.

Uma pena que um simples boquete tenha se tornado mais importante que a obra. Muitas pessoas deixarão de assisti-lo ou só irão por causa da cena explícita. Alguns até irão dizer que não havia necessidade. Tudo poderia ser feito implicitamente como a cena de sexo anal entre Marlon Brando e Maria Schneider em O último tango em Paris (1972), de Bertolucci. Talvez, mas os tempos são outros e o próprio Vincent Gallo confessou que não acredita em tabus. Ele acha o sexo a relação mais antiga e natural de todos os seres do planeta. Por que negar o óbvio?

Independente das crenças de Gallo, a cena não é gratuita e tem forte conotação metafórica na narrativa. Os homens heterossexuais terão mais facilidade de entender a mensagem. Ela tem um fundo na premissa básica do macho dominante, aquele que não aceita em hipótese alguma que sua parceira se relacione sexualmente com outros machos. Uma dica é prestar mais atenção no que é dito do que no próprio ato em si.

Partindo desse ponto pode-se entender que Brown Bunny é um libelo sobre a culpa. O diretor soube construir com imagens esse conceito. A cena de sexo oral, que surge nos 15 minutos finais, é justamente a conclusão desse pensamento. Antes disso vamos descobrindo aos poucos quem são os personagens. Vincent Gallo é Bud Clay, um piloto de motocicletas. O acompanhamos em sua trajetória de New Hampshire até a Califórnia. Logo nas primeiras cenas percebemos que alguma coisa o angustia. Aos poucos descobrimos que foi a perda de sua namorada, Daisy (Sevigny). O objetivo da viagem é revê-la. E até chegar ao seu destino, Bud irá encontrá-la nas lembranças, nos lugares marcantes ou nas próprias pessoas. Ele esta numa turnê em busca da redenção.

Vincent Gallo já tinha feito essa viagem em Buffallo '66 (1998), sua estréia como diretor em longas-metragens. Ele também interpretava um homem atormentado pelo passado na pele do protagonista Billy. Esse filme foi concebido no mesmo estilo das produções do falecido John Cassavetes, em que um simples drama familiar transforma-se numa história bizarra. Apesar de terem ritmos distintos, em ambos os roteiros percebe-se um diretor preocupado em construir por meio de imagens e diálogos uma trama peculiar com uma linguagem cinematográfica própria.

A grande diferença entre Billy e Bud Clay é que agora a angústia é interna. A cada nova seqüência o espectador vai percebendo que ele é um fantasma de carne e osso que está vagando entre as pessoas. Sua vida tornou-se um looping atemporal de emoções. Clay almoça, toma banho, se veste e dorme. Todas as funções necessárias são realizadas, mas de maneira robotizada. Vincent Gallo escolheu os closes, a câmera desfocada e a película granulada para separar a reflexão do real. As longas tomadas feitas de dentro da van em movimento retratam que o seu percurso não tem destino. Sua busca nunca terá fim. O pára-brisa com pequenas manchas de insetos mortos é o único objeto que nos prende ao mundo real.

Em seu caminho ele conhece três mulheres: Violet (violeta), uma menina entediada com a vida, Lilly (lírio), uma mulher angustiada e triste, Rose (rosa), uma prostituta melancólica. Bud Clay busca nelas o afeto perdido de Daisy (margarida). Só que elas também parecem fantasmas de nossa realidade. As três buscam o mesmo conforto de que Clay precisa. Todas têm nomes de flores como a antiga namorada. A relação intrínseca entre as quatro será evidenciada quando descobrirmos os motivos que levaram Clay e Daisy a se separarem. A cena envolvendo Lilly é a mais aflitiva e poética. Clay senta-se ao lado dela e, depois de se entreolharem, começam a se beijar. O semblante dos dois mostra profunda tristeza. Nada é dito. Não há necessidade. Os dois conhecem a desilusão.

Em uma de suas paradas, Clay resolve visitar a casa de Daisy na infância. Eles eram vizinhos quando pequenos. No trajeto vemos de um lado as típicas casas americanas com seus jardins milimétricos, e do outro um cemitério. Nesse conflito de imagens percebemos que vida e morte convivem pacificamente. O significado desse contraste só será definido ao final da projeção. Na casa da mãe de Daisy, ele nos oferece mais pistas. O protagonista comenta sobre o filhote de coelho marrom na gaiola. A mãe de Daisy afirma que ela sempre criou coelhos. Mais tarde, numa loja de animais, Clay pergunta a um funcionário o tempo de vida de um coelho. A informação é repetida várias vezes durante essa seqüência. Isso gera uma antítese visual que estimula o espectador a desvendar a trama.

Esses jogos cênicos são intercalados com pequenos clipes musicais. Dependendo das ações, temos jazz, melancolia ou trova. Em dois momentos do longa-metragem, Vincent Gallo coloca músicas em que as letras completam as imagens. São canções características dos anos 1970, com voz e violão. Interessante que as cenas de lembranças com Daisy não possuem som algum. São secas e duras como a morte. A exceção é só no encontro final entre os dois protagonistas, que culmina numa mensagem comovente.

Alguns podem formular questões sobre qual era verdadeira intenção de Gallo. Seria um road movie introspectivo dos anos 1970? Sim. Seria um filme sobre o amor? Também. Mas antes de tudo, é um filme sobre a culpa. E como essa culpa pode esmagar um homem e deixá-lo à deriva, sem destino.

09 junho 2005

Melinda e Melinda



Nota: 7,5

Comédia dramática parece um termo paradoxal... Ou um filme faz rir ou faz chorar, não é? Acontece que tragédias podem muito bem ser hilárias, assim como piadas frequentemente escondem morais bastante sérias. Em Melinda e Melinda (2004), o diretor Woody Allen divide a narrativa em duas histórias paralelas - drama e humor - justamente para mostrar como uma pode impregnar a outra.

A coisa começa num bistrô. Amigos discorrem sobre a natureza humana. Seria ela essencialmente trágica ou cômica? Coloca-se um desafio. Um deles fornecerá a premissa - garota surge desavisadamente num jantar de amigos e causa constrangimento - e outros dois devem desenvolvê-la de acordo com suas respectivas crenças.

Aquele que acredita na dramaticidade conta a história de Melinda (Radha Mitchell), sujeita que irrompe cheia de malas e toda estropiada no jantar que o ator Lee (Jonny Lee Miller) organiza para um diretor de teatro. Lee, que deseja o papel principal numa peça, fica bravo - afinal, Melinda, amiga de adolescência de sua esposa, Laurel (Chlöe Sevigny), poderia escolher uma hora melhor para aparecer. Acontece que Melinda acabou de largar o namorado, está longe dos filhos, não tem onde morar... É o começo de uma série de lamúrias sem fim.

Já o amigo do bistrô que acredita na comédia faz de Melinda (também Radha, dois bons desempenhos) uma tipa tão atrapalhada quanto encantadora. Ela bate à porta do ator fracassado Hobie (Will Ferrell) justamente quando a mulher deste, a cineasta Susan (Amanda Peet), oferece jantar a um possível investidor do seu futuro filme. Melinda não tem contas a acertar com ninguém, pelo contrário. Acaba de se mudar para o andar de baixo. Mas como a Melinda trágica, começará aos poucos a mudar a vida de todos ali.

Repare que Allen faz questão de dividir o tom já nos letreiros de abertura: ao fundo do seus habituais créditos sem imagens, uma orquestração sisuda se interrompe de repente para dar lugar à animada versão de Duke Ellington para "Take de 'A' Train". Esse é o jogo do diretor, emparelhar as duas narrativas. Ambas possuem os mesmos elementos, pitadas de adultério, de desilusões e descobertas amorosas. São os detalhes que as distinguem.

Por exemplo, enquanto numa história Hobie (claramente alter-ego de Allen, por suas tiradas cômicas e vocação ao burlesco) conversa com si mesmo no espelho, na outra Melinda encara o seu reflexo de modo quase shakespeareano. Os lugares que os personagens visitam e as situações que dividem também são idênticas. A diferença é o enfoque.

Aos poucos, porém, a separação entre o dramático e o satírico começa a ficar estreita. Não sabemos, a certo ponto, se Allen está rindo de seus personagens trágicos ou se está levando a sério suas caricaturas.

A inversão é inteligente, mas não irretocável. A porção trágica é melhor desenvolvida que a cômica, já que Allen sempre soube se escorar melhor no humor negro contido do que na comédia rasgada. O fato de seus personagens serem manipulados de acordo com o esquema da dualidade não deixa espaço para um elemento importante nos seus filmes, o acaso. Previsível e meticuloso demais, Melinda e Melinda acaba se tornando o filme mais inofensivo, ainda que engenhoso, da safra atual do diretor.

Tentação



Nota: 7

O relacionamento amoroso entre homem e mulher continua sendo um mistério, uma loteria. Como explicar que aquela paixão, a chama do amor, vai apagando com o tempo? Às vezes o sentimento acaba para ambos os lados, mas ninguém tem coragem de declarar o fim. Ainda pior é quando só um continua amando. Tentação (We don't live here anymore, 2004) lida com todas essas possibilidades. Não à procura de soluções, mas sim incitando o espectador a uma reflexão. Por isso é quase que impossível não se identificar com certas atitudes e acontecimentos mostrados.

Toda a narrativa é concentrada no convívio entre dois casais. Jack (Mark Ruffalo) e Hank (Peter Krause) são melhores amigos. Suas esposas, Terry (Laura Dern) e Edith (Naomi Watts), são mães de seus filhos e suas amigas também. Eles moram em boas casas, têm bons empregos e se vêem sempre. Mas por trás dessa relação perfeita Jack está tendo um caso com Edith. A cada momento que pode, ele inventa uma desculpa para se encontrar com ela. Terry está desconfiada e aflita, pois ela ainda ama seu marido e seu maior desejo é que as coisas voltem a ser como eram.

No meio desse emaranhado, Hank só tem tempo para o seu trabalho. Seu único objetivo é conseguir publicar seu romance. Sua obsessão é tamanha, que o sexo tornou-se um simples desejo carnal, porém, na forma de adultério. O interesse sexual e sentimental por sua esposa, Edith, praticamente sumiu. A trama vai se desenvolvendo mostrando que traidores e traídos são vítimas de seus próprios desejos. A verdade está mais próxima do que parece. É muito tênue a camada que separa o que está realmente acontecendo ao redor dos personagens. Na verdade eles sabem, mas encarar a realidade significa destruir suas rotinas. E nesse ciclo tedioso o casamento não é tratado com nobreza por nenhuma das partes. O envolvimento espiritual não acontece, restando só as vontades pessoais e mesquinhas.

O roteiro de Larry Gross é baseado em dois pequenos contos de Andre Dubus (1936-1999). E o que mais instiga o espectador é transportar para os dias de hoje uma história que seria normalmente retratada na época renascentista. A sociedade moderna não está tão longe das tragédias românticas do passado. A grande diferença é a ausência de heróis ou confrontos. O diretor John Curran embarca na onda de Dubus em que os laços do matrimônio se esfiapam nos pequenos detalhes. Seu trabalho é enxuto e preciso. Ele aproveita ao máximo as qualidades do elenco, deixando que cada característica e nuance se apresente no momento certo, com a carga dramática exata.

O único defeito é a péssima escolha do nome do filme aqui no Brasil. A tradução literal de 'We Don't Live Here Anymore' é 'Nós Não Moramos Mais Aqui'. Um nome que possui um significado metafórico. Essa definição, além de intrínseca, mostra que apesar de presentes, a identidade dos personagens se encontra cada uma em uma dimensão própria. Bem diferente de ‘Tentação', que só serve para transmitir uma idéia errada sobre a proposta do filme. Com esse título, o espectador desavisado pode deixar de aproveitar um filme introspectivo, por achar que é mais uma bobagem comercial.

Refém



Nota: 4

A trama é conhecida: um policial tem um trauma muito grande escondido em seu passado e decide mudar sua vida, mas é forçado a encarar de frente os problemas que estavam enterrados. O ator é conhecido: Bruce Willis, famoso principalmente pela série de TV A Gata e o Rato (que no século passado fez certo sucesso na Globo) e pela trilogia Duro de Matar (1988, 1990 e 1995). Assim, quem vai ao cinema já sabe o que esperar: muitos tiros, explosões, dramas baratos, histórias sem sentido, enfim, os clichês dos filmes de ação, certo? Sim e não...

Enquanto mostra porque Jeff Talley (Willis) decidiu trocar o posto de negociador de reféns da SWAT em Los Angeles pelo de chefe do departamento em uma pequena cidade no sul da Califórnia, o diretor francês Florent Emilio Siri, discípulo de Eric Hommer estreando em Hollywood, consegue sair do básico e criar o clima certo para um thriller policial. Além da dor na consciência adquirida em Los Angeles, Talley tem de enfrentar problemas conjugais e uma filha adolescente em ebulição.

Além da interessantíssima seqüência dos créditos iniciais, Siri acerta também ao colocar os garotos-problema invadindo uma casa "apenas" para roubar um carro e se deslumbrando com a possibilidade de se tornarem milionários. O drama dos meninos dentro da casa, se desesperando pela sinuca de bico para qual caminham, e dos reféns - um pai, e um casal de filhos - é um crescente interessante que consegue deixar o espectador irriquieto em sua cadeira.

O problema é que ele acaba caindo nas armadilhas do gênero e do mercado norte-americano quando tem de mostrar a superação de Talley. A partir deste momento, surgem vilões que andam no meio das chamas carregando garrafas de coquetel molotov, donzelas em apuros com ar de Madonna (a santa, não a rainha do Pop) e misteriosos endinheirados sem rosto. A possível ligação destes últimos com o passado de Talley é citada, mas nunca resolvida. Para um filme que quer costurar todas as pontas, Refém (Hostage, 2005) acaba deixando sobras de tecido desfiados por todas as partes.

A seqüência final, que mais parece um faroeste, é a síntese do modo Duro de Matar que tem marcado a maioria dos filmes de Bruce Willis, um ator que não é limitado, mas que precisa ser bem dirigido para fazer sua cara de bebê chorão ficar legal na tela. Claro que um bom roteiro também não faria mal a ninguém. Isso dito, continuemos a nossa espera por Sin City.

07 junho 2005

Quanto Vale ou é Por Quilo?



Nota: 9,5

Sérgio Bianchi é brasileiro, ele não desiste nunca. As obras do cineasta paranaense sempre se esforçam em mostrar que, por trás da simpática idéia do "jeitinho brasileiro", existe uma hipocrisia que permeia a rotina nacional. Cronicamente Inviável (2000) fez sua ácida constatação da dominação e da opressão social no Brasil. Mas o filme era muito mal feito, com péssimas atuações, causando uma má impressão do telespectador. A crítica se perdia em meio a tantos defeitos. Agora em Quanto Vale ou é Por Quilo? Bianchi utiliza-se do recurso de histórias intercaladas para, mais uma vez, apontar o dedo acusatório contra seu segmento preferido para levar pancadas: a classe média.

E ironiza um elemento social de benemerência quase intocável: o terceiro setor. Na visão de Bianchi, ONGs são terreno fértil de corrupção, caixa dois, projetos falidos que só servem para contabilizar a pobreza como forma de negócio. Pior. São uma forma de perpetuar a miséria - daí as comparações com o período escravagista do país.

Livre adaptação do conto machadiano "Pai contra mãe", o filme começa no século XVIII, quando senhores atrelavam ao custo da liberdade de seus escravos um juro crescente ao ano. O que parecia boa vontade virava negócio muito lucrativo - coisa que Bianchi mostra acontecer hoje em dia, quando uma ONG fictícia superfatura a doação de computadores bichados a uma escola de favela.

No período colonial, para sobreviver decentemente, negros viravam capitães-do-mato para caçar escravos fugidos. Bianchi também espelha o caso negro-contra-negro dos dias de hoje. O caçador virou matador de aluguel. É o desfecho dramaticamente poderoso de um filme que até então se escora mais no sarcasmo - mais uma vez para mostrar que no Brasil nada muda, nunca.

Tudo é negócio para a classe média enfastiada, atrás de alívio de consciência, de posar com o menino carente em fotos oficiais, uma cultura que cresceu no país da Era FHC: onde o estado é incompetente, coloque-se lá você (de preferência com um bom projeto que consiga a famosa captação de cifras do governo rapidamente).

A sugestão é a ferramenta de Bianchi, um ótimo provocador, bastante contundente, que acaba realmente incomodando as pessoas que assistem ao filme, que geralmente são da classe média e acham que ajudando a entidades assistenciais, emitem um certificado de mea-culpa perante a desigualdade social nacional. Ele evita encerrar discussões, tanto que deixa pontos abertos a uma ou duas interpretações - quem acompanhar os créditos finais saberá. O saldo pende mais para o cinismo do que para o drama, mas é desse humor negro, dessas brincadeiras com fundo de verdade, que nos situe com a mediocridade do brasileiro médio, que precisamos para esquecer (mesmo que por duas horas) da nossa eterna alienação e conformismo. Nos indignamos ao final do filme, e mesmo que sendo muito pouco, serve para mostrar que podemos ser muito mais do que imaginamos.

05 junho 2005

Bendito Fruto


Nota: 6

No ano passado, Bendito Fruto, longa de estréia em ficção do carioca Sérgio Goldenberg, entrou como uma espécie de zebrão no Festival de Brasília. Além de premiar as atrizes Lúcia Alves e Zezeh Barbosa, conseguiu um empate técnico de Melhor Filme, junto com Peões (Eduardo Coutinho).

O resultado disso foi uma polêmica matéria na Imprensa, onde se questionava a formação do quadro da crítica jornalística brasileira e os métodos de contemplação de filmes nacionais. Pois Peões e Bendito Fruto caminham por lados praticamente opostos. O documentário é a tentativa sufocada e desesperada, mais tentada do que obtida, de um resgate de uma das fatias cronológicas mais importantes do nosso período histórico amordaçado pela ditadura e pela queda do poder econômico da classe trabalhadora. A ficção, por sua vez, é um retrato até baseado em fatos e cores reais, mas opta por uma revelação cromática bem fugidia das entranhas do sistema. Com esse auê todo, ficou mais evidente a curiosidade de descobrir qual o sabor que há dentro desse fruto, a tal ponto de tirar a força dos peões. Afinal, creio que, pelo acúmulo de referências e informações dentro do território nacional, uma premiação mostra mais o nível dos concorrentes em questão, do que propriamente o mérito concedido aos valores absolutos de um trabalho.

Edgar (Otávio Augusto) é um cabeleireiro que segue sua vida rotineira. Todo dia, vai ao estabelecimento herdado de seu pai, Antonio’s Tratamento de Cabelos, no bairro do Botafogo. Tudo pacato, do chefe Edgar ao movimento no centrinho do bairro. De repente, um inusitado telefonema, atendido pelas funcionárias Telma (Lúcia Alves, ótima) e Choquita (Camila Pitanga, que além de bonita é boa atriz), muda a vida do protagonista. Devido a uma explosão causada pela concentração de gases, a tampa de um bueiro voou e atingiu a capota de um táxi, no Centro do Rio. Quem estava dentro do automóvel era Virgínia (Vera Holtz), interiorana de Ribeirão Preto, antiga amiga de colégio de Edgar, que consegue localizá-lo graças a um cartão de visita que guardava em sua bolsa. Ela estava a passeio, mas vai parar no hospital. Junto com as malas, embarcam à terra do Corcovado todos os sonhos da caipira, até mesmo o de encontrar um verdadeiro amor.

Como todo bom estreante detrás das câmeras, Sérgio tem seus méritos e seus erros. A “historinha” é muito boa e até diverte. Há um enredo muito bem construído, onde cada situação tem seu desdobramento totalmente dentro da lógica ficcional. Por trás da aparente leveza da trama, há uma série de questionamentos mais relevantes, como a permanência do estado de escravidão, ainda que branda, nos núcleos familiares. Edgar está oficiosamente comprometido com Maria (Zezeh Barbosa), filha de uma empregada doméstica da família, que foi cuidada desde pequena e preferiu continuar habitando o seio mínimo da sociedade branca. Entretanto, esse relacionamento nunca é assumido, mais se parecendo com aquelas “escapadinhas” noturnas de chefe do lar aos cômodos das subalternas. Esse estado latente de escravidão parda divide os olhares com outra questão, a do homossexualismo, que envolve um galã de novela. Até mesmo o salão de estética não é perdoado. É lá que acontecem as cenas de hipocrisia.

Contudo, Goldenberg erra na mistura de tinta que dá ao seu conteúdo. Enquanto o filme ganha ao ser muito maior do que mostra, perde ao aumentar em closes os detalhes que não precisaria mostrar. Bendito Fruto até lembra de certa maneira o filme Domésticas, de Fernando Meirelles, onde existe uma apropriação indevida das falas e dos costumes da classe média baixa suburbana. A câmera subjetiva se aproximando das nádegas de Virgínia, como se fosse o olhar de Edgar que refletisse todas as suas intenções, é de um mau-gosto típico de programas humorísticos televisivos. A necessidade de focar os pormenores do dia-a-dia do carioca popular, como o disco de vinil da novela O Espigão, o pagode tocado no rádio, as tinturas para cabelos de gosto discutível, a cor das camisas de Edgar ou a TV que não pega, acaba criando um certo distanciamento até cômodo pro diretor. Não há neutralidade de juízo de valores nesse retrato. Há mais vontade em ridicularizar o brega do que enaltecer a cultura desse povo sofrido e miscigenado. “Comédia muito burilada é coisa de inglês”, disse Otávio Augusto em entrevista. Bendito Fruto é um filme brejeiro, que se passa por inocente mas em certos momentos condena sua proposta com esses exageros estéticos intencionais. Não que haja uma deturpação. Mas, parafraseado um antigo comercial de TV, há maneiras de se contar uma grande mentira somente dizendo a verdade. E o filme se apóia nesse sofisma. “Quando você quer alguma coisa, o universo conspira a seu favor”, uma das profecias de Paulo Coelho citadas. As referências ao misticismo e às crendices populares mostram quão longe o filme está do coração de seus personagens.

Mesmo com esse esmalte dourado de unhas em primeiro plano, a base do filme é um interessante caminho a ser pensado nos próximos longas. O salão de beleza funciona como um elemento aglutinador de culturas e de emoções. Cada um vem de um canto do Rio de Janeiro e lá é o ringue dos choques e conflitos étnicos e sociais. Os personagens, diluídos em suas ambições e frustrações, vivendo o mundo individualista de sonhos das novelas, cada qual em sua casa e com seu bife e macarrão, acabam se encontrando na claridade do dia nesse antro de fofocas. “O salão é um confessionário”, é uma das frases de Telma que melhor resume o cume do filme. Há também um pouco de Mike Leigh em Bendito Fruto. Um ambiente pequeno, metonímia de um universo maior, palco de um caldeirão de sentimentos e crises que abalam a sociedade em estado permanente de convulsão. Há clímax e anti-clímax em ambos, com a diferença de que nos filmes ingleses o chá serve como analgésico para os ataques de histeria, enquanto que no longa brasileiro basta a revista Caras do mês retrasado.

Star Wars: Episódio III - A Vingança dos Sith



Nota: 8

Há 28 anos, o mundo achou estranho que um filme começasse com um longo texto amarelo explicando a história até ali. Mas a estranheza foi prontamente transformada em fascínio quando a primeira nave espacial cruzou a telona.

Mais tarde, graças ao velho sábio Ben Kenobi, ficamos sabendo mais sobre esses eventos prévios. "Um jovem jedi chamado Darth Vader, que foi meu discípulo antes de se virar para o mal, ajudou o Império a perseguir e destruir os Cavaleiros Jedi. Agora os Jedi estão quase extintos. Vader foi seduzido pelo lado negro da Força". A frase, proferida por Sir Alec Guiness, sintetiza Star Wars: Episódio III - A vingança dos Sith e conta o final do filme quase três décadas antes dele ser produzido.

Assim, sem surpresas, o capítulo derradeiro da nova trilogia de Star Wars se contenta em colocar as peças finais em um quebra-cabeça cuja imagem já é velha conhecida de todos. Não é saber como ele vai ficar que importa. A diversão aqui é conhecer o encaixe das peças.

Enquanto os episódios I e II serviram para cimentar as bases da história, é o terceiro filme que traz as relações diretas com a Trilogia Clássica. É neste que vemos o nascimento de Darth Vader, a separação dos gêmeos Luke e Léia, a formação do Império Galáctico e o extermínio dos Jedis. É o longa que justifica a existência dos dois primeiros.

Porém, de fato, apenas parte dele merece o mérito de "salvar a nova trilogia" (como se filmes com 1,5 bilhão de dólares somados em rendimentos só nas bilheterias necessitassem de salvamento). Quase 90 minutos do Episódio III não agregam nada à série. A ação, claro, é tecnicamente deslumbrante (outra vez), mas traz as mesmas batalhas CGI e diálogos sem alma dos outros novos filmes que tanto irritaram os fãs mais velhos.

Dessas duras críticas, dá pra tirar uma lição. Os efeitos especiais não devem ser julgados pela sua técnica, mas pela maneira como ajudam a história a estimular a imaginação do público. O que vale mais? Um Yoda de borracha explicando de maneira quase poética a natureza da Força, esse conceito quase religioso, ou um saltitante mestre Jedi digital sem uma linha sequer de bom diálogo?

Começando no exato ponto em que a telessérie animada Clone Wars (superior em narrativa e emoção à primeira metade de Sith) parou, o filme abre com uma gigantesca batalha espacial que serve de pano de fundo para a missão de resgate de Anakin Skywalker (Hayden Christensen) e seu mestre, Obi-Wan Kenobi (Ewan McGregor), ao chanceler Palpatine (Ian McDiarmid). O político foi sequestrado pelo General Grievous, discípulo meio-alienígena meio-robô do Conde Dookan (Christopher Lee). A seqüência coloca em andamento eventos que, de fato, servem apenas para afastar Obi-Wan de Coruscant e deixar Anakin mais perto das tentadoras ofertas de poder oferecidas por Palpatine. Enquanto isso, lá vêm mais daquelas constrangedoras cenas de amor com diálogos ruins (o calcanhar de Aquiles de George Lucas como roteirista)... mas quando dá até pra começar a lamentar a triste sina da saga, os 45 minutos finais surgem como "aqueles que vão restaurar o equilíbrio da Força".

Conforme o jovem Skywalker cede ao Lado Negro, a história ganha emoção. A tensão cresce e o quebra-cabeça vai ficando bonito. A cada peça, aumenta o nervosismo e o filme se revela como o mais selvagem e sombrio de toda a saga. A batalha no planeta de lava Mustafar é antológica e seu final, memorável. O momento em que o capacete negro de Darth Vader surge na tela - como nunca havia aparecido, por dentro - é daqueles de fazer parar de respirar. Felizmente, o próprio filme nos lembra que é hora de encher os pulmões novamente ao tocar pela "primeira vez" a cadenciada respiração do vilão (essa nós devemos ao genial designer de som Ben Burtt).

Com esse final, Star Wars recupera a grandeza do passado e nos lembra dos motivos pelos quais a aventura espacial arraigou-se na cultura pop. Melhor ainda, traz uma relevância política à saga que, até então, não era tão facilmente enxergada. É que no Episódio III Lucas abusa das referências à política estadunidense de George Bush. Ele diz que não, que era apenas coincidência, mas trechos de discursos do atual presidente dos Estados Unidos estão lá, nos lábios do ex-chanceler agora imperador galáctico, Palpatine. "Você já se perguntou se não estamos do lado errado? Se a democracia pela qual lutamos já não existe mais?", questiona Padmé Amidala (Natalie Portman) a Anakin. Excelente.

Enfim, 28 anos depois, caem finalmente as cortinas. Se a qualidade demonstrada na parte final de Episódio III tivesse aberto a nova trilogia, teríamos, sem dúvida, três novos clássicos nos cinemas. Mas se não dá pra voltar no tempo, pelo menos este capítulo final da cinessérie abrirá novas portas para a franquia. Depois da atração principal, o bis existirá na forma de seriados para a TV. E que a Força esteja conosco. O coração dos fãs não aguentaria um novo Jar Jar Binks...