27 abril 2007

Maria



Nota: 7

Em Jesus de Montreal (89), do canadense Denys Arcand (As Invasões Bárbaras), um grupo de atores encena uma controvertida montagem da Paixão de Cristo. Ao mesmo tempo em que se defendem de ataques conservadores, eles passam a reviver em seu cotidiano situações bíblicas. Compreensivelmente, o ator que interpreta Jesus é quem mais se perturba com o trabalho.

Movimentos psicológicos e espirituais semelhantes enriquecem Maria, que recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza em 2005, ainda sob o calor da polêmica provocada por A Paixão de Cristo (04), de Mel Gibson. Não é preciso se assustar com a lembrança: a recriação do norte-americano Abel Ferrara (O Rei de Nova York) está para a carnificina de Gibson como vinho para água de torneira.

Em primeiro lugar, há um filme-dentro-do-filme, "Isto é Meu Sangue", recebido com pedras por grupos católicos antes mesmo de seu diretor (Matthew Modine), que também interpreta Cristo, conseguir lançá-lo. Além disso, há um episódio misterioso: a atriz que fez o papel de Maria Madalena (Juliette Binoche), em vez de retornar para casa, preferiu ir a Jerusalém.

Outro núcleo é protagonizado por um apresentador de TV (Forest Whitaker) que se dedica a uma série de programas sobre Jesus. Não é um período qualquer: sua mulher (Heather Graham) está prestes a ter uma criança e se sente especialmente só. À medida que as tramas se encaminham para um encontro, Ferrara impõe à história uma atmosfera de suspense em torno da fé, repleto de sugestões, ambigüidades e perguntas sem resposta.

Ao final, intensifica-se o diálogo entre o que é divino e o que é humano, com a riqueza plástica e simbólica de um quadro que não se cansa de explorar.

Maria aborda a fé religiosa, é um trabalho um tanto inesperado do diretor nova-iorquino Abel Ferrara, conhecido por histórias violentas, quase sempre ambientadas no universo do crime e da droga, como Vício Frenético (1992) e O Funeral (1996).

Maria venceu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Veneza de 2005.

O próprio Ferrara, em entrevistas sobre o filme, revelou ter-se inspirado em alguns dados reais, como um programa de televisão de um jornalista que falava sobre Jesus Cristo - idêntico ao personagem Ted Younger (Forest Whitaker) - e a dificuldade de alguns atores saírem de seus papéis quando um filme termina.

Uma crise desse tipo, justamente, é o ponto de partida para que a atriz Marie Pilesi (Juliette Binoche) decida ficar em Jerusalém, depois de ter atuado em um filme sobre Jesus Cristo, em que ela fez o papel de Maria Madalena.

Ela, que era uma atriz famosa e requisitada, resolve isolar-se e continuar sozinha uma redescoberta espiritual provocada pelas sensações que viveu durante as filmagens e que a levam a questionar todo seu modo de vida.

Em Nova York, Ted Younger é apresentador de um programa de televisão sobre a vida de Cristo, em horário nobre. O novo filme é um assunto quente para ele, que resolve entrevistar o diretor, o ambicioso Tony Childress (Matthew Modine).

O desaparecimento da atriz principal intriga Younger, que parte para uma pesquisa incansável sobre seu paradeiro, levada às últimas conseqüências - ele é até mesmo capaz de seduzir uma de suas melhores amigas em troca do celular de Marie Pilesi.

Jornalista rico, poderoso e bem-sucedido, Ted é aquele tipo de pessoa a quem ninguém diz não e a quem não falta nada. As coisas mudam quando sua mulher (Heather Graham) tem um parto prematuro e o bebê corre risco de vida. Nesse momento, conversar com Marie torna-se para ele a porta para o reencontro de novas prioridades espirituais.

O enredo reforça também uma redefinição da figura bíblica de Maria Madalena, que segundo evangelhos não reconhecidos pela Igreja Católica - como o de Maria e o de Filipe - nunca teria sido prostituta e sim um dos apóstolos mais próximos de Cristo.

Por ser mulher, teria sido vítima de machismo e discriminação. Esta é também, aliás, uma das teses sustentadas pelo best seller O Código Da Vinci, de Dan Brown, adaptado para o cinema. Mas em Maria o tom é muito mais sóbrio.

Ironicamente, foi o sucesso de um filme de estilo totalmente oposto a este, A Paixão de Cristo, que possibilitou que este projeto mais suave e reflexivo encontrasse financiamento. Antes dele, os produtores de Maria só ouviam que "ninguém queria ver um filme sobre religião".

24 abril 2007

A Colheita do Mal



Nota: 0

Não há talento que salve um roteiro ruim. Hilary Swank, duas vezes vencedora do Oscar (por Meninos Não Choram e Menina de Ouro) é a mais recente prova disso. Talentosíssima, caiu na lábia de Joel Silver, o controverso superprodutor de Matrix, V de Vingança e clássicos oitentistas como Duro de Matar e Máquina Mortífera, que tem feito verdadeiro desserviço ao gênero do terror e suspense com sua produtora Dark Castle Entertainment, casa de desgraças como Na Companhia do Medo, 13 Fantasmas e A Casa da Colina.

Ao encontrar-se com Silver, Swank aceitou realizar seu primeiro filme notoriamente comercial pós-sucesso na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Colheita do Mal (The Reaping). Fã de suspenses sobrenaturais, ela acreditou que o roteiro de Chad Hayes (Casa de Cera) resultaria num filme decente ao encantar-se com as reviravoltas propostas no roteiro. Mas eis outro problema sério do gênero: reviravoltas no final (coisa meio comum no cinema, hoje em dia) também não salvam roteiros ruins. Hoje em dia tudo é repetido à exaustão, e não basta apenas uma idéia interessante e outros 90 minutos de clicheria e explicações desconexas, pouco convincentes...

A trama coloca Swank no papel de Katherine, uma professora da Louisiana State University e ex-pastora especializada em desmentir milagres mundialmente (ela faz isso por uma tragédia pessoal, mas não fica claro para quem trabalha). Ela tem 100% de sucesso nessas missões até que é chamada à pequena cidade de Haven, na Lousiana (o filme foi gravado antes e depois da passagem do Katrina por lá), que está enfrentando a primeira das 10 clássicas pragas bíblicas do Egito: o rio virou sangue. O que parecia mais um caso fácil começa a se complicar conforme as demais pragas do Testamento seguem na seqüência.

Os locais acreditam que tudo isso seja obra de uma menininha de 12 anos (a arrepiante AnnaSophia Robb, de A Fantástica Fábrica de Chocolate), supostamente uma cria do capeta, e cabe a Katherine impedir uma tragédia e desvendar o mistério antes que o pior aconteça - seja isso a morte de uma inocente ou o fim dos tempos.

O roteiro é falho, previsível e a direção é fraquíssima. Stephen Hopkins, diretor que andava desaparecido das telonas (seu filme mais lembrado é Predador 2), não aposta nos sustos fáceis (mas também não é de ferro e deixa lá um ou dois deles) tão superutilizados hoje em dia. E parece bem à vontade com os efeitos especiais, que em determinado momentos tomam conta da história com explosões e correria, algo que ele deve ter aprendido na passagem pela telessérie 24 horas.

Um cineasta menos versátil, portanto, poderia ter significado um lançamento de Colheita do Mal direto em DVD pela fragilidade do texto. Mas ele também tem enorme sucesso ao filmar a figura de Swank como nunca foi registrada antes. A atriz aparece aqui como uma verdadeira diva hollywoodiana: roupas simples e esvoaçantes, decotes generosos, jeans apertado, cabelo sedoso... Hopkins a toma como objeto de fetiche e não tenta disfarçar isso. A cena da faca no passador da calça escancara esse prazer quando, depois de Katherine guardar a arma junto ao traseiro, ela sobe uma escada e a câmera a acompanha, glúteos feito engrenagens, subindo e descendo, degrau a degrau. Lindo.

O difícil é voltar ao clima de suspense depois de uma cena dessas.

A atriz fez a opção errada. A direção é absurdamente comum e convencional, irritantemente convencional. Parece que os produtores e diretores de Hollywoody não se importam mais em deixar bem claro, que o público alvo de seus filmes, são completos idiotas.

Caixa Dois



Nota: 7,5

Os produtores e roteiristas brasileiros têm buscado inspiração em comédias de sucesso no teatro para levar às telas. Depois de adaptações como Irma Vap e Trair e Coçar É Só Começar, chega Caixa Dois, de Bruno Barreto.

Com roteiro baseado na peça homônima de Juca de Oliveira, o filme coloca em cena a corrupção em diversos níveis da sociedade brasileira.

A peça estreou em São Paulo no final dos anos 90, ficou mais de cinco anos em cartaz, cumpriu turnês em diversas outras cidades e acumulou um público de mais de 1 milhão de pessoas.

Luiz Fernando (Fúlvio Stefanini) é um banqueiro que consegue R$ 50 milhões numa transação não muito honesta. O doleiro encarregado de lavar o dinheiro, porém, morre, e o ricaço pede para seu assistente (Cassio Gabus Mendes) conseguir um novo "laranja".

Sobra para a secretária Ângela (Giovanna Antonelli) a função. Ela também pensa em ganhar algo com a falcatrua; afinal, sabe que só tem um emprego porque é bonita e um dia a beleza vai acabar.

Na outra ponta da história está a família de Roberto (Daniel Dantas), um funcionário competente de uma das agências de Luiz Fernando. Ele é casado com Lina (Zezé Polessa), uma professora primária pobre, porém honesta. No entanto, com o corte de gastos no banco ele acaba sendo demitido. Quando tenta reverter a situação, as coisas só pioram.

Tudo fica mais complicado quando o dinheiro vai parar na conta da professora Lina, por engano. Começa uma série de encontros e desencontros envolvendo todos os personagens. Luiz Fernando descobre que ela é mulher de Roberto e tenta conseguir ajuda do ex-funcionário (que em troca ganhará o emprego de volta) para recuperar o dinheiro.

Enquanto isso, Ângela procura Lina, que é sua sogra, para conseguir reaver o dinheiro. As duas também pensam na hipótese de denunciar o banqueiro, mas ficam tentadas a silenciar por saber que Luiz Fernando é rico e poderoso e esse dinheiro não é honesto.

É uma rede de intrigas não muito complexa, que funciona mais no teatro do que no cinema. Transitando por poucos ambientes e com poucos personagens, Caixa Dois tira bom proveito de um ou outro diálogo espirituoso e bem sacado do texto original. A direção de Barreto, porém, é impessoal, resultando num filme genérico e pouco cinematográfico, que mais parece seriado de televisão.

Fica claro que Bruno Barreto quer falar do Brasil contemporâneo com o seu filme, abordando um tema que não sai dos noticiários. Ao mesmo tempo, procura fazer a classe média rir de suas próprias mazelas.

Quando a confusão já se instalou em Caixa Dois, a professora interpretada por Zezé Polessa ironiza a suposta inocência do banqueiro Luiz Fernando (Fúlvio Stefanini) em uma história que envolve seu banco. Diz que está diante de mais um presidente "que não sabia de nada".

Os ecos tardios dos escândalos políticos de 2005 talvez sugiram que seja aberta a caixa-preta dos usos e costumes da elite brasileira na virada do milênio, com a contundência que ainda se espera de um filme brasileiro sobre o tema.

Não é, contudo, o que se vê. O protagonista da história é um cheque de R$ 50 milhões, resultado de falcatrua celebrada em Brasília na seqüência de abertura, mas sobre a qual não se falará mais nada. Os apuros giram em torno de fantasias bancárias sobre os caminhos que um cheque manchado de ovo pode percorrer.

É uma situação de chanchada, que Stefanini traduz melhor do que ninguém. Seu banqueiro responde pelas estocadas mais fortes de humor. Haveria aí uma trilha a explorar de maneira mais intensa, com a ajuda de Polessa e de Daniel Dantas.

Mas, no caminho da chanchada, há alguns pedregulhos. Em um filme sobre capital, ato falho: desconsolado, o personagem de Cássio Gabus Mendes, capacho do banqueiro, se pergunta se haveria emprego para ele na empresa "x" - que vem a ser uma das patrocinadoras de Caixa Dois, via mecanismos de incentivo por meio de renúncia fiscal. Merchandising ingênuo a denunciar que desse mato jamais sairá um filme brasileiro voltado, para valer, contra a elite.

18 abril 2007

Ponte Para Terabítia



Nota: 8

É comum ouvir adultos julgando a "vida fácil" das crianças. O que estes marmanjos parecem esquecer é que a infância não era assim tão fácil assim. É só lembrar dos pesadelos causados pelos primeiros dias na nova escola, ou do medo dos colegas maiores, do temor de fazer algo estúpido na frente de todo mundo, ou da vergonha de alguém reparar naquela roupa que sua mãe escolheu. Ei, quem nunca passou por isso?

Ponte para Terabítia (Bridge to Terabithia, 2007) chega para nos lembrar dessas dificuldades, fazendo um filme sobre e para as crianças que não é infantil. A história se passa em uma zona rural no interior dos Estados Unidos. Jess é o único filho no meio de outras quatro irmãs, duas mais velhas e duas caçulas. É ele quem assume as responsabilidades dos trabalhos pesados e manuais quando seu pai não está em casa - uma grande constante. Suas únicas diversões são desenhar no seu caderno e treinar para se tornar o mais rápido da escola.

No primeiro dia de aula tem uma corrida. É a chance de se vingar daquele moleque que não pára de atormentá-lo. Vento no rosto. Concorrentes comendo poeira. Enfim a glória? Não. A novata que acabou de se mudar - sim, uma menina - vem por fora e vence todo o seu esforço com um maldito sorriso no rosto. Passa por ele como se estivesse flutuando. Vencido por uma menina! Qual o garoto que não se sentiria humilhado? Mas Leslie não fez por mal. Ela só estava tentando se enturmar.

O pior, no longo caminho para casa, naqueles ônibus escolares americanos que remontam à toda a fauna escolar, a tal menina está lá, para lembrá-lo da derrota. Ela é sua nova vizinha. Seus pais são escritores e se mudaram para o interior em busca de novos ares. Leslie fica sozinha, mas jamais solitária. Sua imaginação é ainda mais rápida que seus pés e em pouco tempo ela mostra a Jess um novo mundo, em que sonhar é deixar para trás os problemas da vida real. Juntos eles criam Terabítia, um reino que foi destruído pelo Senhor das Sombras e que eles deverão reconstruir mesmo contra a vontade de trols e águias peludas.

A história foi escrita por Katherine Paterson em 1976, para ajudar seu filho mais novo, David, a enfrentar um enorme trauma em sua vida. Funcionou tão bem que o próprio David Paterson ajudou a escrever o roteiro e a produzir o filme ao lado de Lauren Levine, que levou o projeto para a Walden Media. Melhor lugar não havia, já que o estúdio é o mesmo que adapta para as telonas as Crônicas de Nárnia, inspiração confessa da autora. No livro, Leslie empresta seus livros sobre Nárnia para Jess, para que ele aprendesse como funcionava um reino mágico e como um rei deveria se comportar.

Veja bem: inspiração! Ponte para Terabítia, o filme, pelo menos, tem pouquíssimo em comum com a história de C.S. Lewis. Na história dos Paterson, a passagem para este reino encantado não é uma total fuga da realidade. O fantástico e o real estão o tempo todo se esbarrando. Os sonhos não são longos e sem fim, mas bastante intensos enquanto duram. Entre uma viagem e outra a Terabítia, Jess e Leslie têm de voltar para casa, para suas vidas, para os problemas do dia-a-dia.

A adaptação foi comandada por Gabor Csupo, que depois de criar, escrever e produzir diversas animações (incluindo aí Rugrats - Os Anjinhos) estréia no cinema live-action. O húngaro entendeu o espírito do livro e conseguiu criar um filme que não banaliza a experiência das crianças. A ponte que ele constrói não leva apenas para Terabítia, mas para um lugar maravilhoso, onde elas não são pequenos seres não-pensantes e sem sentimentos.

Terabítia, mais do que a terra onde os protagonistas são rei e rainha, é a fuga do "bullying" sofrido na escola, da ausência dos pais escritores de Leslie, da escassez econômica. A principal passagem na narrativa criada pela americana Katherine Paterson, ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen, não é a do mundo real para o da fantasia, mas sim da infância para a adolescência. Mas a história de Paterson é comovente justamente por não diluir a realidade com tons fantasiosos -sim, existe dor, perda e frustração no mundo real.

300



Nota: 3

"Filme de batalha que dá sono é ruim pra caralho..." O veredicto de um adolescente ao fim de uma das sessões de 300, revela que a decepção com adaptação da HQ de Frank Miller não se resume a mau humor de críticos de cinema.

O trailer criou uma expectativa em torno do filme, que as duas horas de projeção não satisfazem. Com exceção das seqüências de batalha, com ênfase no aspecto gráfico, coreografia estilizada e um uso admirável dos contrastes entre os vermelhos das vestes espartanas e o cinza dos uniformes persas, 300 se arrasta, perdido em lições ideológicas de intenções duvidosas.

O triunfo da força e da disciplina contra a tirania e o misticismo parecem extraídos de um manual fascista. Pior, ecoa muito da doutrina Bush ao reproduzir um suposto "choque de civilizações" entre Ocidente e Oriente.

Mas é na ineficiência em satisfazer os instintos de ação da platéia que 300 fracassa. Entre uma cabeça decepada e jorros de sangue, dá-lhe discursos sobre a liberdade, o valor da morte e outras filosofices, proclamados em tom shakespereano por atores obscuros cujo único talento reside nos músculos.

300 reproduz os truques de Gladiador (reconstituição de uma civilização antiga, ação brutal, música melosa tonitruante, cenas de emoção em campos de trigo). Mas os excessos "kitsch" do filme de Ridley Scott na versão "camp" de Zack Snyder (constituída por uma tipologia gay cujo ápice é a aparição constrangedora de Rodrigo Santoro) convertem a emoção em risadas involuntárias.

Crianças brutalizadas e militarizadas desde o berço (algo parecido com um Nascido Para Matar, sem a crítica; discurso pró-belico, onde a guerra é pregada como um avanço e a negociação como uma fraqueza; limpeza étnica, onde os defeituosos são mortos, para que a nação não se torne fraca. Nazismo? Fascismo? Não quero tomar partido, deixo que Leônidas fale por mim: "Sem piedade, sem prisioneiros." Essas são as frases desferidas pelo "grande" líder, quando o exército espartano aprisionam mais de mil soldados inimigos.

Nota 3 pela bela fotografia, pelos belos efeitos especiais, pelo clima pesado e denso gerado pelo filme. É só.

Ventos da Liberdade



Nota: 9

Ventos da Liberdade (The Wind That Shakes the Barley, 2006) foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 2006. Já estava na hora do veterano e talentoso cineasta Ken Loach ser premiado. Ele já tinha participado sete vezes da corrida à Palma de Ouro e embora este não seja o seu melhor filme, é uma inspiração para novos cineastas.

Ao retratar a Irlanda dos anos 1920, em luta contra os dominadores ingleses, Loach comprou uma briga. Afinal, ele mesmo é inglês e nem por isso se intimidou em retratar seus compatriotas como opressores, violentos, irracionais. Como numa cena em que mostra soldados britânicos fazendo uma revista numa casa irlandesa e afinal matando um adolescente apenas porque não quis dizer seu nome em inglês, insistindo na pronúncia em sua língua nativa.

Na Irlanda, em 1920, trabalhadores do interior do país se organizam para enfrentar os esquadrões britânicos que chegam para sufocar o movimento pela independência. Cansado de testemunhar tanta brutalidade, Damien, um jovem estudante de medicina, abandona tudo para juntar-se ao irmão Teddy, que há tempos já aderiu à luta armada. Quando as táticas não-convencionais dos irlandeses começam a abalar a supremacia dos soldados britânicos, o governo se vê forçado a negociar e os dois lados discutem um acordo de paz. Nesse momento, na Irlanda, aqueles que estavam unidos pela independência se dividem entre os que são a favor e os que são contra o acordo, deixando os irmãos em lados opostos de uma nova guerra, agora interna.

Ken Loach é um cineasta político-militante e suas produções são carregadas de mensagens políticas. Quem conhece seu trabalho sabe que seus filmes sempre envolvem situações do estilo Davi contra Golias, isto é, entre o comum e o poderoso. Mais preocupado com a composição poética do que com o formato, sua narrativa é predominante convencional. Mas engana-se quem acha que isso seja um demérito. Pelo contrário. Seus filmes costumam acertar no coração do público. Seu tema preferido é apresentar as relações humanas em meio a um forte cenário político.

Ultimamente, Loach parecia estar mais preocupado com os relacionamentos do que com a política. Apenas um Beijo (2004) e Tickets (2005), seus dois últimos longas-metragens, foram produções irregulares que apostaram nessa premissa. The Wind That Shakes the Barley é um retorno ao seu melhor cinema. Mesmo estando um degrau abaixo dos ótimos Agenda Secreta (1990) e Terra e Liberdade (1995), o filme é um tributo à diversidade da discussão política, não só entre a Inglaterra e a Irlanda, mas também entre os próprios irlandeses. E o debate acaba sendo convertido em um melodrama, em que dois irmãos acabam ficando de lados opostos. Também é uma oportunidade para o público entender com o IRA foi concebido.

Loach consegue aproveitar bem a odisséia política dos irmãos durante o conflito entre ingleses e irlandeses. Damien vai perdendo seu pragmatismo e vai se tornando cada vez mais idealista. Por sua vez, Teddy começa a duvidar de suas convicções iniciais. Tentando ser justo com os dois lados da balança, Loach apresenta argumentos e contra-argumentos, mas gradualmente o drama vai se perdendo dentro de um amplo labirinto de forças políticas.

Encabeçando o elenco temos Cillian Murphy (Batman Begins, Extermínio), que está soberbo no papel de Damien. Não é de hoje que suas interpretações vêm sendo pontuadas com talento e raça. Outros destaques são Padraic Delaney no papel de Teddy e Liam Cunningham como Dan, um maquinista que se torna revolucionário. O resto dos atores cumpre bem a proposta, deixando como único ponto negativo a personagem chamada Sinead, interpretada por Orla Fitzgerald. Não por culpa dela. Sua atuação é boa, mas a personagem foi criada para ser um simples interesse romântico para Damien. Talvez tenha sido a maneira encontrada por Loach para tentar disfarçar uma predominância de personagens masculinos na trama.

O filme impressiona também por seu apuro técnico. Méritos para o diretor de fotografia Barry Ackroyd, o cinegrafista Fergus Clegg e o compositor George Fenton. Mas o destaque fica mesmo para Ken Loach, que junta tudo isso e presenteia o público com cenas impressionantes. E mesmo que você não simpatize com os republicanos irlandeses, não tem como não se encantar com a sensibilidade com que ele retrata o assunto. Loach ainda aproveita para construir um paralelo com a situação atual política no Iraque. Fica a triste mensagem de que ainda não aprendemos a lição.

É de se notar a energia com que Loach filma aos 70 anos, em uma maturidade muito criativa. E não lhe faltam humor, paixão, nem mesmo poesia. O título original do filme (The Wind that Shakes the Barley) vem de uma canção de Robert Dwyer Joyce, que sintetiza o apaixonado espírito da pátria de James Joyce e Samuel Beckett.

Sunshine - Alerta Solar



Nota: 6

Em um primeiro contato, Sunshine chama a atenção pela plasticidade das imagens, em desequilíbrio com a dramaturgia flácida. Repensando o filme, o que fica na memória, mais do que o drama dos personagens, é o imaginário que os cerca. Em outras palavras, o visual não se esvai.

O bailado de imagens grandiosas, registradas em travellings lentos, como se a câmera estivesse mesmo solta na gravidade zero, relembra bastante a linha estética imposta ao gênero desde 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968). Antes do clássico de Stanley Kubrick, ficção científica espacial era assunto de ficção barata, antecipação fantasiosa da era dos videogames. Com 2001, o senso existencialista de que o homem é como um grão de areia no universo se impôs - o cineasta inglês Danny Boyle (Caiu do Céu) retoma com Sunshine essa idéia de infinito engolindo o indivíduo.

Na trama, 50 anos no futuro, o Sol está morrendo e a última esperança da Terra é depositada nas oito pessoas que embarcam na nave Ícaro 2. Eles portam uma carga delicada e perigosa, capaz de engatilhar um mini-big-bang dentro da estrela, o que voltaria a fazê-la brilhar. O problema são dois: se aproximar do sol não é a coisa mais fácil do universo, coisa que a Ícaro 1 (esse é o problema número dois) não conseguiu fazer tempos atrás, em sua missão fracassada.

Michelle Yeoh (O Tigre e o Dragão), Cillian Murphy (Batman Begins, Extermínio), Chris Evans (Quarteto Fantástico, Celular), Rose Byrne (Tróia), Cliff Curtis (Encantadora de Baleias), Troy Garity (Ladrão de Diamantes), Hiroyuki Sanada (O Último Samurai) e Benedict Wong (Coisas Belas e Sujas) formam o elenco/tripulação. Nem todos sobrevivem, evidentemente - no gênero, sacrifício humano é uma constante. Sobreviver em condição adversa ou morrer em nome do ideal maior são as marca do herói na ficção científica.

Se o descarte dos personagens chama a atenção de início, a tentação num segundo momento é relembrá-los como grupo. Destacam-se especialmente os atores orientais, Sanada, Yeoh e Wong. Há algo de herança milenar, de sexto sentido, na maneira como o japonês Sanada observa o ambiente. Talvez seja reminiscência dos filmes de samurai, mas o caso é que Sanada, no seu transe misterioso, parece enxergar mais do que os outros. A hegemonia oriental no elenco não foi por acaso. Boyle compartilha, conscientemente ou não, essa percepção de que os atores não-ocidentais transmitem mais facilmente uma imagem de introspecção.

Não são eles, contudo, os protagonistas. E a necessidade de eleger um - fica evidente desde o princípio que Cillian Murphy é o cara - banaliza a importância dos demais. Optar por seguir a linha kubrickiana, da ficção existencialista, tem esse demérito: a experiência só se amplifica quando se individualiza. Não dá pra ter oito tripulantes alcançando a transcendência ao final da jornada, mesmo porque a identificação do espectador tende a se concentrar em uma pessoa só.

Boyle e seu roteirista, o escritor inglês Alex Garland (autor de A Praia), deixam claro que estão em busca de algo bem maior do que explorar as diversões comuns ao gênero de ficção científica.

Aqui, eles buscam combinar explosões e correrias com questionamentos filosóficos e metafísicos - o que dá mais densidade ao filme. A bordo da nave também está o computador Ícaro, que com sua voz doce e feminina mais parece uma descendente de Hal, de 2001.

Se o roteiro começa a ficar confuso em sua última parte - com a introdução de um novo personagem e a soma de um novo gênero, o terror - os efeitos visuais nunca perdem a expressividade. A trama, porém, vai deixando de lado o equilíbrio de sua primeira hora para se tornar apenas um filme de perseguição e sustos.

Número 23



Nota: 5


Uma piada recorrente entre jornalistas que utilizam estatísticas em seus textos diz que os números, quando bem torturados, dizem qualquer coisa. Premissa equivalente é o ponto de partida do thriller neo-noir O Número 23.

Jim Carrey deixa de lado as comédias histriônicas que o tornaram famoso (como Eu, Eu Mesmo e Irene, de 2000) e os papéis dramáticos elogiados (como Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e o O Show de Truman) para mergulhar no terror Número 23.

Dirigido por Joel Schumacher (de O Fantasma da Ópera), o filme se apóia na crença de que o número 23 traz maus presságios. Uma idéia cujos defensores citam o "I Ching" (número 23), a "Bíblia" (Salmo 23) e até o escritor William S. Burroughs (que teria contado histórias obscuras em que o número está presente).

Escrita pelo novato Fernley Phillips, um dos admiradores confessos desse delírio numérico, a trama mostra a vida de Walter Sparrow (Carrey), cuja obsessão por um misterioso livro (chamado também o Número 23) torna-se perigosa.

Ele passa a acreditar que é o protagonista da publicação (um detetive grosseiro), já que possuem as mesmas recordações de infância. Como o personagem é um assassino, Sparrow passa a ser uma ameaça para todos que o cercam.

Para prazer dos espectadores numerólogos, os créditos de abertura vêm recheados de referências a acontecimentos históricos, como as datas de nascimento e de morte de Shakespeare (23 de abril) e o 11 de Setembro (11+9+2+0+0+1=23).
Outros tantos abundarão ao longo da história.

O problema desse tipo de jogo, porém, é o mesmo com que se depara o filme de Joel Schumacher: que fazer com tantos possíveis significados?
Refém de um suposto código determinista, o pacato Walter Sparrow (Jim Carrey, em versão sorumbática) tem sua vida virada ao avesso a partir do encontro com um cachorrão que escapa de seu controle e o faz atrasar um encontro. O efeito dramático seguinte o levará a descobrir, largado na estante de uma livraria, um volume intitulado o Número 23.

Numa situação semelhante a Mais Estranho que a Ficção, o personagem passa a ter seu destino guiado pela história narrada no tal livro, lotado de associações com o Número 23.

Como se não bastasse desenvolver um enigma estimulante o suficiente para fazer divertir e amedrontar com a deriva em que lança o personagem, o roteiro inventa uma duplicidade, transformando Sparrow numa versão pós-modernosa de detetive, com direito a "femme fatales" e outros clichês do gênero.

Mas, quando entra na contramão de suas referências, Número 23 perde o interesse. Enquanto o noir se abastecia do acúmulo de pistas falsas, de mutações radicais na moral dos personagens e em deixar insolúveis as investigações de onde partia, dissipadas por muitas outras que surgiam no caminho, Número 23 avança até o limite do enigma para em seguida entregar ao espectador sua solução em minúcias, recorrendo à fórmula da reviravolta abrupta que explica tudo.

A impressão é que pagamos para entrar num trem fantasma e fomos parar num inofensivo carrossel.

E veja só você... a frase "ESTE SUSPENSE É MUITO TOSCO" tem 23 letras (achou a piada forçada? Então espere só pra ver do que o Número 23 é capaz).

Um Beijo a Mais



Nota: 5

A adolescência não acontece apenas uma vez na vida. Ela muda de nome (passa a se chamar crise) e ocorre de tempos em tempos, quando se avança uma década de existência. A confusão é particularmente gritante em O Último Beijo.

No papel, é mínima a diferença entre o italiano O Último Beijo (2000) e a sua versão hollywoodiana, a comédia dramática Um Beijo a Mais (The Last Kiss), de Tony Goldwyn. O texto, os personagens, as situações são os mesmos. O que difere os dois filmes é a escalação do elenco - especificamente, a relação que o público mantém com os protagonistas e a imagem prévia que se faz deles.

Stefano Accorsi já era conhecido mundialmente por Capitães de Abril quando protagonizou o original, mas não é um tipo de fama como a de Zach Braff, o astro da telessérie cômica Scrubs. Criado no humor, o maior desafio de Braff é se desligar da imagem de comediante para que a parte dramática de seus filmes deslanche. Ele conseguiu transitar entre o choro e o riso em sua estréia no cinema, Hora de voltar, mas o desafio de Um Beijo a Mais é maior.

Maior porque envolve uma trama romântica convencional - em oposição ao tom indie-caricato de Hora de Voltar, que já era um subterfúgio em si mesmo - e envolve uma reviravolta moral e emocional mais difícil de ser manejada. Na história, Braff vive Michael, um arquiteto prestes a casar que atravessa a crise dos 30 anos. O fato de não haver mais surpresas no seu horizonte o angustia. Sua noiva, Jenna (Jacinda Barrett), está grávida e quer comprar uma casa. Durante uma festa de casamento, Michael conhece Kim (Rachel Bilson).

Todos à volta de Michael se arrependem de suas vidas, como o amigo Chris (Casey Affleck), que não suporta a mulher de seus filhos. O protagonista não quer isso para si mesmo. A traição vem como um respiro. Em Kim, Michael recupera a liberdade, a inconsequência etc. Mas crise é crise, uma hora se supera. Quando percebe o que fez, Michael tentará de tudo para que Jenna o aceite de volta.

Em paralelo, a narrativa de Um Beijo a Mais retrata alguns amigos de Michael. Todos na mesma faixa etária e enfrentando problemas que, se não são iguais, têm a mesma origem: o medo de aceitar a vida adulta. Também problemática é a vida de Anna (Blythe Danner), sogra do protagonista. Chegando à terceira idade, a personagem percebe que o tempo está passando rápido e ela está deixando escapar a chance de ser feliz.

A direção de Tony Goldwyn (Alguém como Você) é apenas correta, transformando Um Beijo a Mais em só mais uma comédia romântica sem grande originalidade, apesar de o roteiro ser assinado pelo premiado Paul Haggis (diretor e roteirista de Crash -- No Limite, Oscar de melhor filme em 2006).

É uma trama no limite da água-com-açúcar e do bom senso, na qual a principal âncora dramática, o ponto que o espectador tem para se segurar, é em Michael. Se não acreditamos que ele sofre, que ele se arrepende, que ele muda, então o filme não funciona. E - o diabo está aí - fica sempre aquela sensação mole de que o choro de Braff é de brincadeirinha.

Sabe quando a sitcom, tipo Friends, arma um revés para o personagem só para dizer que injetou drama entre uma piada e outra? Então. Não adianta pôr a culpa na O.C. Rachel Bilson. Um Beijo a Mais tem cara de drama-Friends por causa do ator mesmo. Para aproximar mais a comparação, é como quando morre um paciente em Scrubs - chega a ser ofensiva a maneira como o drama se infiltra na comédia com o intuito, desnecessário, de justificá-la dramaturgicamente.

Em Um Beijo a Mais, essa incompatibilidade entre a seriedade da trama e a vocação para o descompromisso de Braff inviabiliza o filme. A qualquer momento parece que Michael vai virar para Jenna - que Jacinda interpreta excelentemente, aliás - e entregar que tudo não passava de uma pegadinha: "olha ali para a câmera escondida!". Braff é bom ator, inegável, mas tem hora que isso não basta.