16 outubro 2006

Pintar ou Fazer Amor



Nota: 7

A alternativa posta entre os dois termos do título de Pintar ou Fazer Amor não exclui nem um, nem outro. Pois, no filme dos irmãos franceses Jean-Marie e Arnaud Larrieu, ambos estão sujeitos ao predomínio da natureza. É a natureza o que mais salta aos olhos na história. Primeiro, como espaço livre, onde a beleza não precisa estar codificada para encantar. Depois, como espetáculo das forças, em particular o desejo, que impõe sua lei de atração a seres e corpos. A proeza dos Larrieu é transformar um típico filme francês de costumes, uma crônica leve e gentil, num trabalho em que a física e a metafísica não mais se distinguem, em que transcendência e imanência passeiam de mãos dadas.

O ponto de partida é um casal de meia idade (Sabine Azéma e Daniel Auteuil, irresistíveis), que alcançou a estabilidade do relacionamento e vê nisso mais uma ameaça que um ganho. Pintora amadora, em um dia ela pratica seu hobby no campo, quando é abordada por um homem. Ele lhe propõe conhecer uma casa, que a encanta. Logo ela convence o marido a deixarem os confortos urbanos e se instalarem fora da cidade. Com esse tom prosaico o filme avança de surpresa em surpresa. O cicerone é cego e reponde pelo nome Adam. Ele tem uma companheira cujo nome é Eva. Tal referência, em vez de ser mero exibicionismo intelectual, é de fato uma escolha "naïf", um modo de reiterar uma origem, que vai dominar os qüiproquós sexuais nos quais o casal urbano se envolverá na segunda parte do filme. É como se o casal Madeleine/William encontrasse neles um paradigma, nesse primeiro amor de todos representados pelo par Adão e Eva, antes que o pecado e o castigo divino caíssem sobre suas cabeças.

O tal conflito do título, surge também na atmosfera de normalidade efêmera, daquelas prontas a se desmanchar, que os irmãos diretores imprimem ao começo da história. Seja a inércia de William, seja a curiosidade com que Madeleine se aproxima da debilidade de Adam, seja o embaraço da nova amizade e da nova vizinhança... A verdade é que se anuncia com o vento uma mudança das grandes na vida dessas pessoas.

O fato de Adam dominar o seu terreno, esse Jardim do Édem, valendo-se dos apurados sentidos que lhe restam, e de ter uma esposa chamada Eva já o coloca na condição de catalisador das descobertas. A citação bíblica vem de brinde, para arredondar o simbolismo. Mesmo sem essa facilidade não seria complicado entender o personagem do prefeito como símbolo das transformações, de um tempo que se abre aos frutos proibidos da vida. O "deus" que breca a mudança, no caso, são os preceitos sociais vigentes não apenas na França, mas em todas as bem estabelecidas sociedades ocidentais, burguesas e monogâmicas, que podem se ver representadas em Pintar ou Fazer Amor.

Não é fácil, aqui ou na França, livrar-se do "deus" impregnado nos nossos costumes. E é essa ruptura que se apresenta diante de Madeleine e William e que norteia boa parte do filme.

Se à certa altura, lá pelos dois terços da duração, os irmãos Larrieu desmontam o conflito, isto é, adiantam uma resolução, isso não significa, exatamente, que todas as respostas foram encontradas. Especialmente pela maneira apaziguante com que os dilemas se resolvem - diluindo o suspense, anulando as diferenças, enfim, encontrando a saída mais ao alcance da mão. Do jeito que tudo se soluciona, parece escapismo. Muito próximo, exacerbando um pouco, da fuga que Auteuil experimenta em Caché. E não deixa de ser um escapismo confortável, ainda mais quando falamos de um mundo repleto de problemas como Paris e arredores: o escapismo idílico.

Fica a sensação de uma esquiva, como se Jean-Marie e Arnaud Larrieu evitassem bater-se contra aquilo que propuseram. Fecham a fatura com um filme despudorado, e só.

Pintar é aproximar-se da natureza, buscar nela algum segredo, mas, sobretudo, comungar sua beleza. Fazer amor é uma maneira ainda mais completa de se devolver à natureza, deixar que ela imponha sua necessidade e seus ritmos. O filme parte dessas duas formas de reencontro para alcançar de forma indireta aquilo que está no seu centro: a natureza como epifania. Mas como representar essa experiência mágica no cinema, que sempre impõe seus limites realistas, sem precisar recorrer ao artifício e, assim, quebrar o encanto? A natureza não é apenas registrada pela câmera, ela impregna a imagem graças a um trabalho atencioso dado à luz. A predominância da luz natural nas cenas, capturada em sua atmosfera aérea, sem efeitos fotográficos, torna ainda mais impressionante seu esforço de buscar instantes perfeitos, sobretudo quando eles registram a luminosidade do crepúsculo, aquele momento em que luz e sombra se conciliam da mesma maneira que dois corpos na união sexual.

Dália Negra



Nota: 7

Em 15 de janeiro de 1947, o corpo de Elizabeth Short, 22, foi encontrado em um terreno baldio de Hollywood. Aspirante a atriz, ela teria sido assassinada no dia anterior, com requintes bárbaros. Jamais solucionado, o crime da Dália Negra gerou um punhado de versões, que ajudaram a vender livros e a alimentar a mística sobre a sujeira dos bastidores da indústria americana de cinema. O corpo estava cortado ao meio pela cintura, suas vísceras tinham sido removidas, o sangue tinha sido drenado, e o cadáver carregava as marcas de torturas grotescas e cruéis. A descoberta levou ao início da maior caçada a um criminoso da história de Los Angeles, mas o assassino nunca foi encontrado. O livro foi um marco na carreira de Ellroy, que atribuiu o assassinato medonho não a um psicopata demente, mas à corrupção policial, às tramóias políticas, a gângsteres implacáveis e empresários diversos. Em outras palavras, para o escritor, foi Los Angeles quem matou Elizabeth Short.

O filme tem todo o visual, a inteligência e a atitude de um clássico suspense noir. Durante a primeira hora de filme, a esperança de que o diretor encontrou um caminho realmente grandioso se intensifica a cada minuto. Mas então, aos poucos, a imaginação febril de James Ellroy, em cujo romance Josh Friedman baseou o roteiro, acaba alimentando o lado sombrio de De Palma. A violência ganha tons absurdos, as emoções são exageradas, e o filme carrega demais no retrato da velha Los Angeles corrupta e decadente. Sua segunda metade parece pesada e não realizada, e a grandeza potencial se reduz, resultando num filme bom mas que tem vários problemas.

É natural que o episódio volte a despertar interesse no momento em que seriados de TV como C.S.I. popularizam a ciência forense. Dália Negra corre nessa raia de mercado, ao reconstituir a tragédia de Short com atenção especial às circunstâncias violentas de sua morte e à investigação policial que jamais solucionou o caso. Arquivos abertos constituem o filé mignon da ficção que se inspira na criminalidade da vida real.

O diretor Brian de Palma e o roteirista Josh Friedman (Guerra dos Mundos) se basearam no romance homônimo de James Ellroy. Personagens ficcionais são trabalhadas em torno do episódio verídico, com destaque para uma dupla de policiais-boxeadores (Josh Hartnett, de Xeque-Mate, e Aaron Eckhart, de Obrigado por Fumar) e para uma loira ambígua que se mantém perto deles (Scarlett Johansson, de Ponto Final - Match Point). Lee, viciado em benzedrina, desenvolve uma obsessão pela Dália Negra e quer descobrir tudo sobre ela. Bucky também é seduzido pelo encanto fatal da vítima, especialmente quando sua investigação solitária o conduz a bares de lésbicas, onde ele cai sob o fascínio de uma bissexual sedutora chamada Madeleine Linscott (Hilary Swank), filha do maior construtor da cidade.

A ambientação lembra a de Los Angeles - Cidade Proibida (97), também baseado em romance de Ellroy, com a desvantagem do déjà-vu: embora a costura da trama e o desenho dos personagens respeitem a melhor tradição do filme policial de inspiração noir, paira no ar a incômoda sensação de que essa história já foi contada antes, em partes - com perdão pelo trocadilho macabro.

Da última vez em que um filme de Brian De Palma seria exibido em um festival, ele preferiu não comparecer. Foi em Cannes, em 2002, e o filme, Femme Fatale, sua penúltima produção, era um thriller corretamente descrito por um crítico como "uma forma de dejeto que só De Palma poderia criar". Já que esse trabalho se seguiu ao desastroso Missão Marte, ficção científica lançada em 2000, havia muitos críticos dispostos a crucificar o diretor, que ganhou fama na mesma época em que Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, com clássicos como Scarface (1983) e Os Intocáveis (1987).

Mas no Festival de Veneza deste ano, De Palma estava muito presente e entusiasmado, talvez porque seu novo filme, uma adaptação de A Dália Negra, romance do escritor de mistério James Ellroy, é seu melhor trabalho em anos. Mas isso não quer dizer muito. Até mesmo os ávidos fãs de De Palma precisam admitir que pelo menos desde 1993, com O Pagamento Final, o diretor não oferecia um bom filme.
Curiosamente, a recente perda de qualidade do trabalho de De Palma coincide com seu afastamento de Hollywood. Em 2000, ele decidiu que viveria na França e morou em Paris por dois anos. Foi lá que ele escreveu o roteiro de Femme Fatale. "Eu simplesmente tinha de sair dos EUA. Queria saber como era a vida do outro lado do Atlântico. Transferi-me para lá, morando em um hotel, para ver o que acontecia." O que aconteceu foi um grande números de críticas cruéis e bilheteria de míseros US$ 6 milhões.

De Palma, 65, é uma sombra do homem que foi no passado. Aparentemente, Hollywood o demoliu. "Eu já estive dentro e fora do sistema muitas vezes", admite. "Ninguém está fazendo filmes muito interessantes nos grandes estúdios de Hollywood. Os filmes interessantes em geral são produções independentes ou financiadas por investidores europeus."

Bancado completamente por capital europeu, e com orçamento de US$ 45 milhões, Dália Negra talvez seja um dos filmes "independentes" mais caros de todos os tempos. "É a espécie de filme que eles não gostam de fazer", resmungou De Palma sobre os estúdios norte-americanos. Assim, não surpreende que, a despeito de ser estrelado por Josh Hartnett e Scarlett Johansson, o filme tenha demorado mais de três anos para ser completado. O resultado final é elegante, trabalho de um diretor que parece ter redescoberto um pouco de seu toque, bem como o número de telefone do lendário diretor de câmera húngaro Vilmos Zsigmond, com quem havia colaborado pela última vez em A Fogueira das Vaidades, em 1990.