27 março 2007

O Cheiro do Ralo



Nota: 6

O Cheiro do Ralo, filme baseado no livro de mesmo nome do quadrinista Lourenço Mutarelli, tem dividido as opiniões do público e da crítica por seu humor negro e quase escatológico, com um personagem escroto e capitalista ao extremo, que só pensa no poder que o dinheiro lhe dá, desde sua primeira exibição, há seis meses, no Festival do Rio.

Ainda assim, o longa dirigido por Heitor Dhalia (Nina) vem colecionando prêmios e uma série de elogios, inclusive no Festival de Sundance, onde foi exibido em janeiro.

Com roteiro do diretor e do escritor Marçal Aquino (O Invasor), o filme é centrado na vida do esquisito Lourenço (Selton Mello), que tem uma loja em São Paulo que compra e vende quinquilharias.

Ali, transitam pessoas estranhas, assim como o dono, tentando sempre vender algo: uma embalagem de cigarro com autógrafo de Steve McQueen, uma caneta, uma arma, um olho de vidro e antigüidades.

Todos esses indivíduos são uma desculpa para Lourenço satisfazer seu ego, exercendo seu poder momentâneo sobre elas. Ele tem prazer em explorar as pessoas, que geralmente estão passando por dificuldades financeiras.

Lourenço se contenta com seu jogo sádico, enquanto explica para cada um de seus clientes que o cheiro ruim que toma conta da loja é do ralo do banheiro no fundo de sua loja. Ao mesmo tempo, ele se apaixona por uma parte específica do corpo de uma garçonete (Paula Braun).

Lourenço é um personagem desagradável, interpretado com muita competência por Selton Mello, que nunca pede que se tenha maior simpatia por esse sujeito um tanto quanto bizarro. As pessoas que entram e saem de cena são ora dignas de repugnância, ora de piedade.

Alguns críticos defendem que representar o mal, em cinema, seria algo impossível. A câmera só realizaria bem o seu trabalho se aquilo que estivesse posto diante dela fosse algo conhecido e amado pelo diretor. De fato, representar o mal ou aquilo que se despreza é uma questão complicadíssima, mas reduzir o problema a uma espécie de vocação do cinema para o bem é uma idéia simplista e que só reforça tabus. A maior parte dos filmes que propõem encarar esse desafio, no entanto, não colaboram. As soluções fáceis são tentadoras demais.

O Cheiro do Ralo, por exemplo, se apresenta como o retrato de um cara "escroto". Esse ponto de partida pode até garantir ao filme o mérito da audácia e um diferencial em meio ao panorama inodoro do cinema brasileiro recente, mas não o exime de seus problemas.

A questão fundamental não é só retratar a escrotidão, mas como fazê-lo. Mil filmes poderiam ter sido feitos partir da obra de Lourenço Mutarelli, e o de Heitor Dhalia escolhe o caminho da pseudo-subversão.

Dhalia pode até ter sido corajoso no que tenta dizer, mas, na forma, assume uma posição um tanto medrosa. O humor, por exemplo, está mais para um cinismo vazio do que para uma ironia crítica, como num simulacro de um filme independente americano à moda de Tarantino. Assim, as características centrais da "escrotidão" do personagem principal -a detenção de um certo poder mesquinho e o abuso sádico desse poder - são esvaziadas de seu sentido crítico em nome de um jogo de sedução do espectador.
Há ainda outros aspectos formais que comprometem o filme. Se Dhalia demonstra talento para a composição do quadro, falha no ritmo, ao investir tempo e energia em situações repetitivas. E o pior, faz uma certa apologia ao escroto espírito capitalista que reina em nosso tempo.

A Leste de Bucareste



Nota: 8,5

Com aval do regime soviético, Nicolae Ceausescu (1918-1989) presidiu a Romênia com a mão pesada do Partido Comunista de 1965 a 1989, ano de sua destituição e sua execução. Na época, movimentos de libertação irradiavam de Berlim, onde o Muro caíra meses antes, no sentido do Leste da Europa. Na cidade romena de Timisoara, no dia 17 de dezembro, manifestantes anticomunistas foram recebidos a tiro pela Securitate, a polícia de Ceausescu. O povo reagiu em diversas cidades. Cinco dias depois, quando a rebeldia chegou à capital Bucareste, o ditador entregou o posto. 22 de dezembro de 1989 é lembrado na Romênia como o dia da revolução que derrubou Ceausescu.

A questão principal da comédia A Leste de Bucareste (A Fost Sau n-a Fost?, 2006) é de ordem historiográfica. No décimo-sexto aniversário da revolução, um programa de debates na TV de uma pequena cidade a leste da capital quer saber: eles participaram ou não do movimento? Porque, veja bem, a rede nacional televisionou a queda de Ceausescu às 12h08. Se não havia ninguém na praça principal protestando antes desse horário, a cidadezinha só participou da festa da derrubada, depois das 12h08. Portanto, pela conta, não fez parte da revolução.

A discussão está no clímax do filme de estréia do roteirista e diretor Corneliu Porumboiu. Antes disso, somos apresentados aos três personagens que, mais adiante, farão o debate na televisão. Jderescu (Teodor Corban) é o apresentador, que passa a manhã inteira no telefone, tentando agendar a participação de seus entrevistados, e na hora vaga sai escondido com a produtora do programa, sua amante. Manescu (Ion Sapdaru) é o professor de história alcoólatra que passa o dia contraindo e ajustando dívidas financeiras. E o velho Piscoci (Mircea Andreescu), que está mais pensando se vai ou não reutilizar a roupa de Papai Noel para as festas deste ano, acaba escalado de última hora por Jderescu quando o entrevistado titular dá o cano.

Porumboiu estrutura o filme com um rigor quase matemático. Na primeira metade de projeção, a apresentação da situação, sua câmera não se aproxima mais do que um metro de distância dos personagens. O tripé é fixo frequentemente da porta pra fora, enquanto capta a ação que ocorre dentro de uma sala. É assim, filmada de maneira quase descompromissada, enganosamente burocrática, que a pasmaceira generalizada da vida dessas pessoas chega até nós. Piscoci reclama dos moleques que estouram bombinhas no corredor, Manescu desculpa-se com o comerciante chinês que ele havia xingado na outra noite, Jderescu briga com a banda juvenil da emissora que insiste em tocar músicas latinas.

De revolucionado, de transformado, aquele lugar não indica ter nada. Parece, sim, enterrado numa profunda crise de identidade, a meio caminho de largar o comunismo e abraçar o capitalismo. Filiar-se à história do país - "participamos ou não da revolução?" - seria uma tentativa não de resgatar, antes disso, de encontrar uma razão, um valor, por aqueles lados.

À discussão, portanto. A estrutura da narrativa se altera dentro do carro de Jderescu, no caminho para o estúdio. É como uma passagem, o sinal que divide no meio a equação de Porumboiu, um movimento de câmera para encontrar a perspectiva definitiva de olhar. A parte do debate toma o quarto final do filme, ou mais. Não há muito movimento cênico - a câmera fica fixa diante do três homens, voltados para ela. E é naquele espaço exíguo, com margem mínima de manobra tanto espacial quanto dramatúrgica, que A Leste de Bucareste cresce e nos ganha. Numa espécie de papo direto entre os personagens e o espectador, quando pela primeira vez temos os close-ups dos protagonistas, é que eles se revelam.

Porumboiu faz mágica. Flerta com a caricatura musicada, típica de um Kusturica, mas mantém a humanidade dos personagens - em especial, Manescu, protagonista formidável em sua complexidade, agarrando-se num último fio de dignidade. O diretor adere à comédia textual e do absurdo, mas deixa brechas para o humor físico. E insere seus comentários políticos sem panfletarismo, também no limite entre o registro da realidade pura e a licença poética.

É difícil explicar como um filme tão espartano em seu método e em suas imagens consegue nos passar a impressão de ser tão livre, improvisado, até. Para uma estréia (devidamente agraciada com a Camera D'Or em Cannes), a confiança de Porumboiu nas suas escolhas é notável.

26 março 2007

Amarcord - Fellini (1973)



Nota: 9

Mais um fantástico filme de Fellini, que mescla mundo real e mundo dos sonhos, mundo onírico e percepções pessoais, de um momento difícil da história da Itália: a ascensão do facismo em pequenas cidades italianas.

Mas o que Amarcord tem de tão especial? Primeiro é preciso dizer o que NÃO tem. Porque se temos um certa intimidade com a narrativa cinematográfica, já sabemos, por exemplo, que um bom filme tinha que ter: (a) artistas talentosos, conhecidos, quase sempre bonitos, muitas vezes deuses e deusas que desciam do Olimpo apenas para filmar nos estúdios; (b) uma história com começo, meio e fim, capaz de emocionar ao espectador segundo uma progressão cuidadosamente planejada; (c) personagens fortes, divididos entre "mocinhos" (para quem torcíamos) e "bandidos" (a quem odiávamos). Amarcord não tem atores conhecidos. Mais do que isso: tem vários não-atores, gente comum, escolhida na rua pelo seu tipo físico.

Amarcord não tem história linear, com começo, meio e fim. Mais do que isso: além de fragmentada, a narrativa nem sempre é realista, pois está baseada em lembranças esparsas, imaginações, sonhos. Amarcord não tem mocinhos nem bandidos. Mais do que isso: o personagem principal, um adolescente chamado Titta, não está envolvido em nenhuma ação espetacular, a não ser que consideremos sua incursão entre os seios enormes da bilheteira uma ação espetacular. Amarcord não segue a cartilha do cinema americano. Segue a cartilha de Fellini.

Em contrapartida, Amarcord tem uma coleção completa de signos cinematográficos da mais alta qualidade. Tem um roteiro que "amarra" a trajetória de Titta com total segurança, criando nexos entre as cenas e dando a cada novo personagem (e são muitos) uma significação única e sempre forte. A mulher mais gostosa da cidade (La Gradisca), o vendedor ambulante, o acordeonista cego, a imensa charuteira, a freira anã, todos eles, mesmo com pouco tempo na tela, estão vivos, palpitantes, verdadeiros. Os roteiristas Tonino Guerra e Fellini sabiam que simplesmente "listar" lembranças não seria suficiente: era preciso criar um encadeamento lógico, em que a passagem do transatlântico funciona como um clímax, um orgasmo coletivo dos habitantes da pequena vila costeira.

Amarcord também tem uma das mais belas trilhas da história do cinema. Não estou falando de uma música, de um momento específico do filme. Estou falando da trilha original inteira, criada por Nino Rota, que, ou estava inspirado por Deus, ou fez um pacto com o diabo. Todas as músicas, além de apoiarem a imagem com total eficiência, funcionam independente do filme. E isso é muito raro, quase inexistente. Amarcord também tem fotografia inspirada, montagem sensível, direção de arte irrepreensível.

Amarcord é, à primeira vista, um filme simples, quase singelo, mas, na verdade, é um concerto sinfônico, em que cada um dos instrumentos cumpre modestamente seu papel. É a soma de todos esses timbres que fornece a essência mágica do produto final. Finalmente, não dá pra esquecer que Amarcord, ao mesmo tempo que é um filme intimista, sobre um garoto que descobre a si mesmo, também é um filme político, sobre a Itália fascista, sobre a alienação de um povo, sobre a preguiça latina, sobre a acomodação dos seres humanos a regras estúpidas, formuladas por seres humanos igualmente estúpidos, mas muito poderosos, capazes de criar os eficientes signos fascistas e gerar líderes monstruosos como Mussolini.

Amarcord não será esquecido jamais, nunca sairá de moda, nunca parecerá velho (o que aconteceu com Oito e Meio, por exemplo). Eu lembro de Amarcord. Eu lembro que os seres humanos são capazes de criar emoção com pedaços de plástico e sal de prata. E gerar artistas geniais como Fellini.

Terra em Transe - Glauber (1967)



Nota: 10

À Beira do Abismo

Brasil, 1967.

O filme anterior de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, havia sido concebido e filmado ainda em 1963, antes do golpe militar que derrubou João Goulart e que pouco a pouco ia minando boa parte dos sonhos de sua geração. A conversa agora era outra. O mundo a mudar não estava escondido no interior distante, o mundo estava mudando para pior em todos os lugares, em plenas metrópoles, o mundo estava mudando bem debaixo das fuças dos idealistas que achavam que estavam mudando o mundo. Terra em Transe é sobre isso, é sobre essa paulada na cabeça que foi ver suas ilusões indo por água abaixo após a violência institucional.

Como é dito no filme, pelo seu protagonista, Paulo Martins:

"Não anuncio cantos de paz, nem me interessam as flores do estilo."

Esclarecendo depois:

"Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace"

Nem todo "movimento cultural" merece ser classificado como tal. Não raro, não há pontos em comum entre seus produtos, além de serem produzidos na mesma época e/ou pela mesma geração. Mas há algo que une claramente filmes e idéias daquilo que chamamos Cinema Novo: todos os filmes procuravam definir o país, todos os filmes procuravam mostrar um olhar sobre o Brasil, fosse por singularidades, analogias ou alegorias.

Depois de uma primeira fase, uma fase de "mergulho no país", os cineastas estavam voltando o seu olhar para si. Mais do que meramente urbana, aquela que chamamos de segunda fase do Cinema Novo acabava sendo uma análise do papel deles mesmos e da sua geração. Só que isso não se restringiu aos cinemanovistas.

Lembrando o intelectual interpretado por Paulo Goulart em Rio Zona Norte, já dá para notar a descrença que o cinema daquela época tinha na ação dos "sábios", mesmo olhar descrente que também aparecia em algumas cenas do filme de Diegues, A Grande Cidade. Foi em O Desafio que Paulo César Saraceni se colocou como um agente do seu tempo, e percebeu como questão central o papel que eles, cineastas dispostos a "mudar o mundo", tinham naquilo tudo. Foi o primeiro de uma onda, numa série de filmes em que quem fazia cinema se viu no espelho, a si e à sua geração. É dessa fase, além dos citados Terra em Transe e O Desafio, também O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, As Amorosas, de Walter Hugo Khouri, A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite, El Justicero, de Nelson Pereira, e mesmo os filmes de Domingos de Oliveira, entre outros. Com todas as imensas diferenças que têm, são filmes que retratam a geração a que pertenciam os cineastas. E vale lembrar que é dessa época o documentário que Joaquim Pedro de Andrade fez para uma rede de Tv alemão, Cinema Novo, mostrando seus amigos produzindo e apresentando seus filmes, mostrando inclusive parte das filmagens de Terra em Transe, no Teatro Municipal.

Terra em Transe é um filme especial. Será que isso é uma obviedade? Deve ser, mas é preciso reafirmar. No início da década passada, foi contestado por um célebre dramaturgo televisivo, que repetia os mesmos argumentos de que zombava Glauber no artigo que publicamos nessa edição. Ninguém entende o filme, dizem alguns. A resposta do cineasta ponderava sobre o cinema equivalente à poesia de Rimbaud ou à pintura de Cézanne ou Van Gogh. É preciso entender tudinho?

Em Eldorado, capital de um país de mesmo nome, Paulo Martins é um poeta que trabalha como jornalista e "ghost-writer" de políticos, um sujeito que, com suas ambições poéticas, pretende conciliar a ética e a estética. Quer ser poeta, mas quer falar de temas... políticos! Não tendo espaço para isso em Eldorado, abandona sua namorada arranjada e seu protetor, o senador eleito Porfirio Diaz, e, e vai para a província de Alecrim, onde conhece Sara, descobre a pobreza de seu povo e passa a assessorar Felipe Vieira, candidato a governador. A impostura populista de Vieira logo se revela, e um golpe é tramado para lhe tirar do poder. Diante da covardia de Vieira, Paulo se desespera e prega a luta armada. Foge, e acaba sendo baleado.

O filme é contado quase todo num imenso flash-back, onde Paulo, às portas da morte, relembra toda a história. Através desse mote, de uma história relembrada por um homem agonizante, aparece uma trama que enlaça um sujeito que, a despeito de seu temperamento impetuoso e das pequenas maldades que comete, permanece ligado aos seus ideais até o fim, até o ponto em que for necessário.

Parece que todo o filme se sintetiza na percepção amarga de Sara: "A política e a poesia são demais para um só homem". Paulo Martins diz ter "A fome do absoluto", busca até o fim conciliar os extremos, e fracassa.

Dom Porfirio Diaz é um inimigo odiado e admirado, é quem perdeu todos os pudores em busca do poder pelo poder, capaz de trocar de aliados ao sabor dos ventos. Tem um discurso totalmente fascista, é talvez o mais claro vilão dos filmes de Glauber. É elite desde Pedro Álvares Cabral, e de lá não sai por fazer política com competência. Política dessas que se faz nos escritórios. Diaz tem horror do povo e das ruas. Foi radical de esquerda na juventude, e agora seu discurso é pela família e por Deus.

Felipe Vieira é o aliado-símbolo, o líder político que acaba por se mostrar frágil, covarde, populista, ineficiente. É o fascínio pelo papel desempenhado por João Goulart, o líder que não existiu. Paulo, o ideólogo de Vieira, se vê traído pelo seu patrão, o magnata das comunicações Julio Fuentes. Fuentes, que se considera um "homem de esquerda", é convencido do perigo que corre com a ascensão de projetos populistas, e acaba se unindo a Diaz e à multinacional Sprint, fabricante de armas, para impedir a vitória de Vieira na eleição presidencial que se aproxima. Diante de um acontecimento fortuito, em que Vieira vacila diante da necessidade de sacrificar um leão-de-chácara aliado (referência a Vargas e Fortunato? Ou profetização do Riocentro?), os acontecimentos se precipitam, e os militares tratam de tirar Vieira do poder. Diaz nos informa, zombeteiro, que a luta de classes existe, e pergunta a cada um da platéia, você sabe a que classe pertence?

O que é mais triste, a sordidez do projeto elitista e autoritário? Ou a fragilidade mentirosa do projeto populista? Vieira vai ao populacho, abraça todo mundo e não resolve nada, ao contrário, só faz cagadas. Já Diaz nem cogita em chegar perto do povo. (teria medo de perder o Rolex, talvez).

E o povo? O povo é representado por José Marinho, numa cena famosa e antológica, em que ele, presidente de sindicato, é instado a se manifestar, e inicia um discurso óbvio e despreparado. É interrompido por um irritado Paulo, que nos diz:

"Este é o povo: Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado".

Não há esperança nas ações do povo. Não há esperança na fibra dos políticos honrados. Muito menos no discurso reacionário. Terra em Transe é amargurado, é um filme que termina destruído como seu protagonista. Vai até as raias da loucura por seu idealismo, e termina desiludido e abandonado, partindo numa tentativa desesperada, que nada mais seria do que o encontro com seu fim. A luta por ideais justifica a vida, e é preferível o fim da vida a continuá-la sem seus ideais. É o destino reservado aos mártires.

Logo no início, diz um letreiro, com parte do poema de Mário Faustino que inspirou o filme:

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmo sangrento e a alma pura

Gladiador defunto, mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)

22 março 2007

Maria Antonieta



Nota: 5

Depois de vários adiamentos e até ameaças de um lançamento direto em DVD, a Sony leva aos cinemas brasileiros o terceiro longa da cineasta Sofia Coppola, Maria Antonieta, que apesar de manter o mesmo estilo cru de filmagens, está mil anos luz de seus antecessores.

A estréia do filme foi no Festival de Cannes, em maio de 2006, quando concorreu pela Palma de Ouro. Depois da primeira exibição, o longa chegou a ser vaiado, dividindo as opiniões da crítica por onde tem passado.

Maria Antonieta está longe de ser uma cinebiografia tradicional, e aqui está problema em se tratando de um personagem de tal envergadura. E o pior é que esse nem é o objetivo da diretora, que aqui está mais preocupada com as pessoas e seus sentimentos do que com o processo histórico no qual estão envolvidos. É uma opção difícil (e alienada?), o que, logo de cara, desagrada a muitos. Principalmente por ser tratar de uma rainha que só queria consumir, e pelo fato de a monarquia ter caído exatamente nesse episódio retratado.

O universo que a diretora Sofia Coppola procura retratar é o mundo da nobreza francesa do século 18, que se sustentava na superficialidade. E ela foi superficial ao extremo. Os figurinos de Milena Canonero (premiada com o Oscar) e a direção de arte dão a tudo a aparência de doces de uma finíssima confeitaria.

O roteiro, assinado pela diretora, é baseado na biografia revisionista da rainha escrita por Antonia Fraser, mas não segue uma linha narrativa. Sofia está mais preocupada em criar momentos, climas. Assim, o filme vai sendo construído em cima de elipses. As baladas, as curtições, os momentos engraçados. Como vários adolescentes ricos, que não tem onde gastar dinheiro e resolvem curtir o tempo todo, a diretora escolheu esse caminho apolítico, em detrimento do que realmente acontecia na época. De vilã, Copolla a transformou em uma menininha rica norte-americana.

O segundo trabalho de Sofia, Encontros e Desencontros, era a história de uma jovem inteligente presa a um casamento infeliz que a anulava. Maria Antonieta é sobre o mesmo assunto, mostrando uma moça cheia de vida e planos (interpretada por Kirsten Dunst) que estranha o fato de estar presa a uma sociedade cheia de normas. Claro que isso é logo contornado, e ela desfruta (e muito) da vida da realeza francesa.

Esse é um filme sobre o mundo de Maria Antonieta. Nele, política e povo praticamente não têm espaço. Só vamos ver a reação popular bem no final do filme, quando o rei Luís 16 (Jason Schwartzman) estava a um passo da degola.

Essa cena é o momento em que a tal bolha cor-de-rosa (no caso, Versalhes) onde a rainha vive estoura e ela percebe que o mundo não é coberto de glacê real, como ela até então pensava.

Ao optar por trazer Maria Antonieta como uma jovem bem próxima das adolescentes de hoje, Sofia faz um diálogo entre passado e presente. Quer com isso dizer que os tempos mudam, mas os anseios, medos e prazeres, nem tanto. A juventude sempre alienada (e a diretora idem) frente aos problemas do mundo.

A trilha sonora, por sua vez, é composta por clássicos e música pop dos anos 1980, o que causa um estranhamento a alguns. Para outros, permite uma aproximação com a personagem em seu mundo. Entre as bandas escaladas estão New Order, Siouxsie and the Banshees, e Bow Wow Wow - ao lado de mestres como Vivaldi e Scarlatti.

Pecados Íntimos



Nota: 8,5

Ah, os subúrbios dos Estados Unidos... cidades pequenas, paraísos para a criação de filhos loirinhos, onde o cidadão de classe média progride feliz e inadvertidamente serve de material para autores ávidos por mostrarem sua superioridade intelectual e honestidade moral num sem-fim de romances, séries de televisão e filmes. O que seria do cinema autoral e independente por lá não fossem os road-movies e essas cidadezinhas pacatas?

Pecados Íntimos
(Little Children, 2006) não é diferente nesse aspecto. Tem sua cota de casais infelizes, segredinhos e traições. Mas tem também um diretor acima da média (o sumido Todd Field, que não dirigia desde Entre Quatro Paredes, de 2001), uma ótima seleção de elenco e material de base competente, o livro Criancinhas, de Tom Perrotta, que assina o roteiro, indicado ao Oscar de texto adaptado, ao lado de Field. O resultado é intrigante e dúbio.

A história acompanha Sarah (Kate Winslet, também indicada ao Oscar pela atuação), mãe de família e inativa intelectual, e sua filha. Todos os dias as duas vão ao parquinho, onde encontram-se com as outras mães - superprotetoras, superfofoqueiras, superchatas -, que têm como ponto alto de seu dia a chegada do "Rei do Baile", Brad (Patrick Wilson), um sujeito bonitão que leva o filhinho para brincar enquanto a esposa e provedora, Kathy (Jennifer Connelly), faz documentários para a TV. Não demora para que Sarah e Brad, depois de uma brincadeira que dá errado, desenvolvam uma afeição mútua.

E se tudo parece normal demais, surgem dois elementos externos às histórias de subúrbios que tornam a história intrigante e potencializa suas discussões. Volta à cidade, depois de cumprir pena, um pervertido, preso por exibir-se para uma criança. É como se um tubarão (a cena da piscina é poderosíssima para gravar essa imagem) entrasse numa pacífica laguna. A outra é a entrada de Brad para uma liga amadora de futebol americano, atendendo aos apelos de um amigo antigo e ex-policial (Noah Emmerich), cujo hobby é incomodar o ex-presidiário e sua mãe todas as noites.

A história do pervertido, vivendo com a sua preocupada mãe (tão superprotetora quanto às do parquinho), é a melhor. Seria ele um sujeito realmente perigoso - seu ato o primeiro de uma série - ou alguém que errou uma vez, pagou o preço, e está de volta reabilitado? O personagem é vivido por Jackie Earle Haley, um antigo astro-mirim da década de 1970, que entrega-se totalmente ao trabalho. Não é pra menos - ele amargou algumas décadas de subempregos e papéis ínfimos desde que perdeu as graças da infância - e soube aproveitar a oportunidade de ouro que teve. O resultado é uma mais que merecida indicação ao Oscar de ator coadjuvante, que renderia por si própria um típico filme de superação.

O desfecho tem um certo tom conformista, de aceitação, que inicialmente incomoda. Mas conforme passam as horas ele cresce e transcende o óbvio, respeitando seus personagens. Field e Perrota sugerem que eles são todos cheios de falhas, mas o pervertido é o único a conhecer as suas. De certa forma, é a única pessoa honesta na hipócrita comunidade - e a única capaz de amar de verdade e fazer sacrifícios em nome desse amor.

A história mostra o subúrbio como espaço perfeito para a representação de um universo bem maior. O parquinho infantil, por exemplo, é um lugar de convivência, brigas, inveja, dissimulação e intrigas. E não se trata obviamente das crianças, mas de suas mães, que levam uma vida sem perspectivas, aparentemente não ligando muito para isso.

Mas ao menos uma delas não está conformada com sua vida. "Sou uma pesquisadora estudando o comportamento de suburbanas chatas de classe média alta. Mas não sou eu própria uma suburbana chata de classe média alta", pensa Sarah (Kate Winslet). Realmente, ela foge do padrão mãe suburbana. Um caso com Brad vai tirar a sua vida do marasmo e a dele também.

Ele, por sua vez, é um tipo imaturo. Formado em direito, ainda não passou no exame da Ordem e se prepara para prestá-lo pela terceira vez, sem muita chance de aprovação. Passa as noites a observar adolescentes skatistas ao invés de estudar, desejando poder participar da brincadeira. Quem sustenta a casa é sua mulher Kathy (Jennifer Connely), uma documentarista que passa mais tempo trabalhando do que com o filho.

A relação entre Sarah e Brad guia a narrativa. Ele, um sujeito que sempre foi paparicado graças à sua perfeição física. Já a moça se veste mal e não está nem aí para nada, a não ser cuidar da filha. O casamento com um homem mais velho também já se estagnou. O caso extraconjugal a transforma.

Mas a vida é mais complicada para Ronnie (Jackie Earle Haley), um exibicionista que cumpriu pena de prisão por se exibir nu a crianças. A volta dele ao bairro causa uma verdadeira neurose coletiva. O ator consegue dar humanidade a este personagem polêmico. Ronnie é um ser atormentado que não entende nem aceita a si mesmo. Sua única amiga é sua mãe idosa, que já o perdoou e tenta ajudá-lo a fazer o mesmo.

Sarah é uma espécie de "Madame Bovary" contemporânea. Não por acaso, numa das cenas um grupo de mulheres discute esse livro do francês Gustave Flaubert, e a moça acaba sendo uma ferrenha defensora da personagem, engaja-se numa discussão com outra mulher, uma das mães que freqüentam o parquinho, sobre fidelidade. Claro que, a certa altura, já nem falam mais do livro, mas de Sarah e Brad.

O grande acerto de Pecados Íntimos é transitar entre a sátira e o drama de maneira delicada e sensível.

20 março 2007

Sonhos com Xangai



Nota: 8

Ser jovem em Guyitang, na China, em 1983, não era das coisas mais fáceis. Além da ditadura, do choque de gerações com os país criados nos tempos de Mao, que impunham uma restrita censura de costumes, eles tinham de enfrentar o clima tradicional e conservador do país que estava engatinhando para a modernização.

Sonhos com Xangai, de Wang Xiaoshuai (autor do roteiro e também do festejado Bicicletas de Pequim), em cartaz nos cinemas, vai direto nesse tema. O filme, que ganhou Prêmio do Júri em Cannes, mostra uma China pouco vista nas telas. Guyitang é uma cidadezinha do interior dominada pelas metalúrgicas que para lá foram levadas nos anos 60, quando os chineses, temendo uma invasão russa, decidiram transferir fábricas que seriam algo chamado de "Terceira Linha de Defesa".

Operários que trabalhavam nas grandes cidades foram arrebanhados para esse lugar sem atrativos; os resultados econômicos da mudança começam a se mostrar desfavoráveis e muitas famílias pensam em voltar para Xangai, onde há empregos e oportunidades. Mas os jovens querem, sobretudo, livrar-se do ambiente estreito. Vendo o que acontece com seus pais que se estiolam e definham no mundinho limitado da cidadezinha, eles sonham com, digamos, as luzes da cidade grande onde, imaginam, são aguardados para transformar o mundo e marcar presença.

Esse é um tema que a ficção e o cinema não se cansam de explorar, com melhores ou piores resultados. Em Os Boas-Vidas (I Vitteloni), Federico Fellini mostra um grupo de rapazes, já não tão jovens, que sonham com a utopia da cidade grande, enquanto passeiam pelas ruas e bares de Rimini, sem muito o que fazer. Eles se divertem um pouco, mas sofrem com a falta de horizontes e,mais que tudo, com a subjacente certeza de que o tempo está passando e eles dificilmente escaparão da prisão provinciana.

Qing Hong, uma garota de 19 anos (Gao Yuanyuan, que parece uma Audrey Hepburn chinesa) se apaixona por um rapaz, Fan Gen. Mas o namoro deles, em termos ocidentais é estranho. Ele segue a moça pelas ladeiras da cidadezinha, mas não tem coragem de se declarar. Usa, para esse efeito, um par de reluzentes sapatos vermelhos que dá de presente a ela, com os previsíveis resultados no interior da família.

Ao lado da história de amor, o filme passeia pelos points da moçada do lugar. Os rapazes mesclam James Dean e Elvis; a escola censura costeletas e calças boca-de-sino. Numa cena imperdível, um bailinho tem menino dançando com menino, enquanto as garotas ficam pelos cantos, trocando olhares com os galãs que dançam ao som de baladinhas à anos dourados.

Guardadas as proporções, é impossível não lembrar de Loucuras de Verão ( American Graffitti), de George Lucas. Os americanos usavam hot rods cruzando sem parar as ruas da cidadezinha de começos dos anos 60, com seus topetões e jaquetas. Na China de 1983, o bad boy mais notório usa bicicleta para levar uma garota inexperiente para um lugarzinho reservado.

Mas a explosão de hormônios é igual e a vontade de escapar do ambiente acanhado também. Mas, lembre-se, o filme de Lucas mostra que um dos jovens vai pegar o trem para a faculdade e, também, um outro deles, um pouco mais velho (interpretado por Harrison Ford), que está resvalando sem escapatória para uma vida estagnada como mecânico, após ser um ídolo do futebol e líder da garotada local.

No filme chinês, a miragem é Xangai. Após um desenlace inesperado da história de amor de Qing Hong e Fan Gen, finalmente o pai da moça resolve partir para a cidade grande com a família, em busca de um emprego melhor.

Ele é, ao que se imagina, a vanguarda de muitos outros da sua geração. A mulher e os filhos acompanham-no para a viagem final.

O filme de Xiaoshuai não tem a grandeza de Os Boas-Vidas nem mesmo de Loucuras de Verão, mas revela um olhar penetrante sobre o pano de fundo político e social e uma bem-vinda ternura para com os ingênuos protagonistas, e seus sonhos com Xangai.

Aos cinzas dos espaços interiores e aos marrons enlameados dos exteriores, o diretor contrasta o elemento rebelde através dos coloridos das roupas e de um simbólico vermelho de um par de sapatos, que dispara o conflito na família.

Mas é na construção e no desenvolvimento quase subterrâneo dos afetos que Xiaoshuai conquista o espectador. O filme, narrado de forma tradicional, registra em pequenas situações cotidianas todo o processo de repressão, traduzido na contenção dos gestos, que, por sua vez, vai constituir válvulas de escape sob a forma de rebeldia juvenil (nas roupas, cabelos e atitudes).

Com base numa situação de conflito melodramático, Xiaoshuai traduz o desenraizamento vivido por seus personagens na perspectiva da intimidade. Em sua narrativa aparentemente neutra e objetiva, focalizada na passagem do tempo através da crônica das horas e dos dias, Sonhos com Xangai enxerga com profundo pessimismo a crença no progresso.

Sombras - Cassavetes (1959)



Nota: 8

No fim dos anos 50, Hollywood já era a capital do cinema. Detinha o monopólio das convenções cinematográficas e de um modo (custoso e, então, deficitário) de produzir filmes. Talvez por ser ator em Hollywood, John Cassavetes compreendeu com precisão esse mundo e o quanto sua qualidade de sistema podia afastar os filmes da verdade.
Professor de atores em Nova York, é lá - e com eles - que inicia uma das mais fascinantes aventuras pessoais da história do cinema. Sim, porque se em Paris a nouvelle vague começava um movimento amplo de renovação, isso se dava após muita reflexão -e em grupo. Nos EUA, Cassavetes avançará praticamente só com este Sombras, seu primeiro filme.

No centro da história, existe uma garota negra (Lelia Goldoni), seu amor por um rapaz branco (Anthony Ray) e suas relações com os irmãos. Não há muito mais história do que isso, na verdade. O filme se organiza a partir de algumas situações de base -como esse amor e as relações interraciais-, mas não evolui de modo tradicional.
Ao contrário, o filme parece vagar pelas ruas, pelos bares, pelos apartamentos de Nova York, muito mais interessado no que cada um desses lugares possa revelar do que em contar uma história.

Da mesma forma, quando se trata dos personagens, é a verdade de cada situação que Cassavetes parece perseguir obstinadamente. O improviso é o que dá o tom ao filme -como aconteceria ao longo da carreira de Cassavetes como diretor -, mas é preciso compreender o improviso, aqui, como uma disciplina desenvolvida pelos atores, por esses atores em quem Cassavetes confiava infinitamente.

Do improviso deriva esse frescor que ainda hoje (melhor dizendo: hoje - reinado da indústria cultural - mais do que nunca) impressiona. Quando Lelia e Tony vão para a cama (primeira relação sexual dela) não parecem dois atores, parecem dois amantes. Os lugares públicos não têm cara de estúdio, são lugares vivos.

Cassavetes começava a criar aqui, neste filme sintético (diferente da maior parte de sua obra, Sombras tem menos de 90 minutos), essa forma de realismo vertiginoso e de certa forma inimitável que caracteriza seus filmes: nada é símbolo, nada remete a outra coisa ou outro lugar, tudo é afirmação de um aqui e agora inescapável.

Um realismo inimitável, mas que acaba marcando o cinema, especialmente o americano. Nem falemos dos cineastas da "geração das escolas" ou dos chatos independentes (que reduziram o improviso realista a uma codificação acadêmica).

Mas em certas cenas onde se manifestam os intelectuais nova-iorquinos, podemos perceber de onde vem o melhor de Woody Allen: não vem de Bergman, nem de Fellini. Vem de Cassavetes. Seria muito bom se, em vez de olharmos esse filme como um monumento, o víssemos como ele é, uma lição de algo que, a cada filme, precisa ser reencontrado: a verdade que está nas aparências.

Faces - Cassavetes (1968)



Nota: 9

Pouco dinheiro, muita liberdade e ousadia. Com essa fórmula de trabalho, o diretor americano John Cassavetes (1929-1989) tornou-se, nos anos 60 e 70, um dos pioneiros do que hoje se conhece como cinema independente.

Sua obra, que circulou muito pouco no circuito comercial brasileiro, está sendo redescoberta a partir de um miniciclo de cinco títulos, realizado no início de fevereiro no Cinesesc de São Paulo, incluindo Uma Mulher sob Influência, Faces, A Morte do Bookmaker Chinês, Noite de Estréia e Sombras. Todos os filmes estão entrando em cartaz sucessivamente na mesma sala.

Faces (1968), quarto filme do diretor, que lhe valeu uma indicação ao Oscar de roteiro original e que é uma verdadeira síntese de seu estilo.

Filmando com diversas câmeras e criando uma atmosfera de aparente improvisação - que na verdade era obtida pela realização de muitos ensaios prévios do elenco -, ele conta uma história de busca e desencontro a partir da vida de alguns casais.

Um deles é formado por Richard (John Marley) e Maria Forst (Lynn Carlin), ele mais velho, ela jovem, ambos mergulhados numa intensa crise. Por conta do estranhamento entre eles, ambos buscam outros relacionamentos.

Ele com a prostituta Jeannie (Gena Rowlands, mulher e musa constante de Cassavetes). Ela, numa noitada com amigas num bar, conhece um rapaz de programa, Chet (Seymour Cassel).

A partir desse casal central, o filme incorpora diversos outros personagens e situações que vão compondo um círculo de relacionamentos, de onde o diretor e roteirista extrai um ritmo que procura semelhança com a própria vida.

Não há flashbacks para explicar o passado de ninguém, não há discursos morais. Cassavetes filma todos, homens e mulheres, numa eterna procura, em eterno movimento.

Essa característica dá ao filme, apesar de ter sido feito há quase 40 anos, uma vitalidade e energia notáveis. À parte os figurinos e penteados, nada parece datado aqui - nem mesmo a bela fotografia em preto e branco, que contribui para a dramaticidade buscada no drama.

O ritmo ágil do filme deve muito à montagem, que demorou um ano e meio para ser completada. Toda a produção de Faces, aliás, foi bem demorada: seis meses de filmagem e dois anos e meio entre montagem e pós-produção.

O controle de custos só foi possível porque a maior parte dessas etapas eram realizadas na própria casa de Cassavetes e Gena, em Los Angeles, com a estreita participação de todos no elenco e na equipe técnica.

Ator e diretor que se rebelou contra Hollywood - onde teve problemas como a montagem a sua revelia de seu filme Minha Esperança É Você (1963) por ordem do produtor Stanley Kramer -, Cassavetes também se tornou conhecido por algumas de suas interpretações.

Uma delas foi o papel do indisciplinado Victor Franco em Os Doze Condenados (1967), de Robert Aldrich -- pelo qual teve indicação ao Oscar de ator coadjuvante-, e outra o intermediário do diabo no terror O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski.

Não é difícil notar que John Cassavetes escreveu Faces, como uma peça teatral cujas longas cenas parecem intermináveis e só encerradas, tem-se a impressão, porque a montagem as interrompe.

Resta sempre aos personagens algo em suspenso, que ainda é preciso dizer, fazer ou tentar consertar -e a derradeira imagem do filme, de simbolismo extraordinário, representa como levar esse procedimento às últimas conseqüências, deixando o público na expectativa do que poderá ocorrer.

Na primeira versão, que foi exibida em festivais, Cassavetes usava a conclusão como um prólogo e contava, em flashback, o que havia levado o casal de protagonistas àquela situação de aparente bonança. A montagem definitiva, sem o prólogo, caminha linearmente até o final, agora em aberto.

Com essa opção, que o aproxima ainda mais de seu duplo na obra de Cassavetes, Uma Mulher sob Influência (1974), o filme acentua a força dramática produzida a partir do trabalho de improvisação com os atores. Não são eles que atuam para a câmera; é a câmera que os procura enquanto expõem sua vulnerabilidade.
Como o cineasta faria outras vezes, um casamento que passa por uma situação-limite funciona como microcosmo da sociedade. Richard (John Marley), executivo bem-sucedido, e Maria (Lynn Carlin), sua mulher, já não cabem mais na vida burguesa e infeliz que levam em Los Angeles.

Para o marido, a turbulência emocional é potencializada por uma garota de programa bem mais jovem (Gena Rowlands); para a esposa, por um nova-iorquino também mais jovem (Seymour Cassel). Outros personagens giram em torno deles, trazendo mais desconforto.

Já seria, apenas pelo argumento, uma experiência anti-hollywoodiana. Cassavetes reforça esse aspecto ao rodar o filme em 16 mm e em preto-e-branco, com a câmera quase sempre na mão e um emprego diversificado de película e luz.

Entre as filmagens (no primeiro semestre de 1965) e o lançamento, houve Maio de 68. Faces é uma antevisão da crise de valores que explodiria.

A Pele



Nota: 7

Se você parar para pensar meio minuto, dá para elencar uma série de motivos pelos quais A Pele (Fur - An Imaginary Portrait of Diane Arbus) teria tudo para se tornar queridinho dos críticos e um grande candidato ao Oscar deste ano. Vejamos: trata-se de uma cinebiografia de um personagem polêmico e já falecido (no caso, a fotógrafa Diane Arbus), dirigida de maneira quase indie por um sujeito do meio alternativo e conhecido por seus filmes pouco digeríveis e ortodoxos (como é o caso de Steven Shainberg, do amado/odiado Secretária) e estrelada por uma bela atriz hollywoodiana em um papel no qual não é vista costumeiramente (aqui representada pela namoradinha da América, Nicole Kidman). Estava feita a soma perfeita.

Mas aconteceu que A Pele não convenceu os críticos norte-americanos (que não massacraram a película, mas tampouco lhe deram qualquer destaque) e não comoveu a Academia, que nem ligou para a performance de Kidman - "ei, ela já ganhou mesmo por As Horas, melhor esperar mais um pouquinho até que a moça volte a concorrer...". E se não deu certo, diabos, o que poderia ter dado errado? Ninguém sabe. O que você precisa saber, por enquanto, é que Shainberg se foca muito mais nos aspectos lúdicos da trama, desenvolvendo uma história sutil e subjetiva de visual estranho e ao mesmo tempo sedutor, com toques de Alice no País das Maravilhas e seu non-sense colorido. O resultado final é anticomercial, bem esquisito e pouco atrativo para quem esperava apenas e tão somente um romance apimentado entre os protagonistas. Mas ainda assim, muito legal.

Bom, na verdade, A Pele não é uma cinebiografia no sentido literal da palavra. Deixa só eu tentar explicar, começando pela história da tal Diane Arbus. Nascida Diane Nemerov, a garota nova-iorquina era a herdeira de uma riquíssima família judia, na qual acabou sendo obscurecida pelo talento de seu irmão mais velho, o poeta Howard Nemerov. Aos 14 anos, se apaixonou pelo fotógrafo e futuro ator Allan Arbus, com quem se casaria ao completar 18 anos - contra a vontade dos pais. Quando Allan começou a treinar fotografia para seus trabalhos no exército norte-americano, ensinou parte do que sabia para a jovem esposa. Juntos, ele se tornaram uma força poderosa no mundo da moda, com Allan por trás das lentes e Diane trabalhando como estilista. Estavam felizes e tiveram duas filhas: Amy e Doon. Mas ela queria mais. Começou a aprender sozinha e a tirar suas próprias fotos. Apesar de manter o sobrenome, se separou de Allan em 1959 e iniciou uma carreira como fotojornalista para revistas como a Esquire e a The New York Times Magazine. Logo desenvolveria o estilo que a tornaria a mais famosa, deixando as modeletes de lado e optando por clicar pessoas com deformidades físicas, internos de hospícios, prostitutas, anões e gigantes, entre outros - transformando sua obra em um verdadeiro freakshow.

O fato é que este A Pele, apesar de ser estrelado por uma personagem real, é uma espécie de alegoria, um conto de fadas que tenta imaginar que tipo de acontecimento poderia ter transformado tanto a cabeça de Arbus a ponto de fazê-la tornar-se de uma dona de casa submissa, amável e dedicada em uma verdadeira porra-louca independente, cheia de estilo e com um legado histórico muito mais importante do que aquele deixado por seu ex-marido. É, portanto, uma história fictícia. Mas com alguns pedaços de uma história real.

Na história contada por Shainberg, a mudança é sintetizada e cristalizada no papel de Lionel, interpretado de maneira magistral por Robert Downey Jr.. Este estranho vizinho que se muda para o mesmo prédio dos Arbus desperta desejos em Diane que a moça jamais esperou sentir antes. Ela se aproxima dele, se sente viva e com uma lacuna finalmente preenchida em sua existência. Os dois começam a ter um caso, e a futura lenda da fotografia finalmente enxerga o seu potencial até então amortecido e desperdiçado. O charmoso e provocante Lionel, no entanto, não é um sujeito comum: ex-atração de circo, ele sofre de uma doença raríssima de nome hipertricose, que recobre seu corpo inteiramente de pêlos e o faz parecer-se com uma espécie de lobisomem. Não é lá o estereótipo mais apaixonante, pelo menos à primeira vista... mas Downey defende o personagem com tanta graça que se torna absolutamente adorável e irresistível.

Não espere nada do tipo Reencarnação, como talvez o clima do trailer possa sugerir. Não se trata de uma história de amor, mas sim de libertação. Assim como no recente Pecados Íntimos, A Pele trata de uma mulher comum, presa a uma vida miserável e medíocre na qual ela se afunda cada vez mais em um casamento infeliz, perdendo totalmente a noção de quem ela é de verdade - até que vem uma virada. A diferença é que, apesar de ser o retrato de uma mulher que realmente existiu, a protagonista de A Pele passa por sua transformação em um mundo surreal, quase onírico, enquanto a protagonista de Pecados Íntimos encara um verdadeiro banho de mundo real e poderia muito bem ser a sua vizinha do apartamento da frente. Ah, sim: e foi indicada ao Oscar. Mas Nicole Kidman não.

12 março 2007

Motoqueiro Fantasma



Nota: 2

Faltou combustível para transformar o filme do herói da Marvel numa aventura à altura do personagem

Lembra-se de quando a notícia de que estavam levando um personagem dos quadrinhos para a telona deixava todos os fãs empolgados? Bem, graças a filmes como este Motoqueiro Fantasma (Ghost Rider, 2007), já começamos a receber esse tipo de notícia com uma certa desconfiança. E pensar que o pobre Nicolas Cage, que tenta há anos interpretar um personagem de quadrinhos (ele quase foi o Superman, ficou interessado no Homem de Ferro e queria adaptar Hard Boiled – À Queima-Roupa, entre outros), foi acabar num filme que, infelizmente, deixa muito a desejar.

O filme começa de forma interessante, mostrando um caubói que, 150 anos atrás, carregava a mesma maldição que irá recair mais tarde sobre o herói do filme. Mesmo montado o tempo todo a cavalo, a legenda nacional insiste em chamar esse homem misterioso de “Motoqueiro” Fantasma, sendo que ainda demoraria mais meio século até surgirem os primeiros “cavalos de aço”. Em seguida, o filme dá um salto para vermos a origem do Motoqueiro da nossa época, modificando apenas um ou outro elemento dos quadrinhos. Johnny Blaze e seu pai, Barton, se apresentam em circos fazendo acrobacias perigosas com motos. Sabendo que o pai está com câncer, o jovem Johnny (interpretado por Matt Long, do seriado cancelado Jack & Bobby) faz um pacto com Mefisto para salvar a vida de Barton, apenas para vê-lo morrer logo em seguida num acidente durante uma apresentação. Mefisto, então, explica a Johnny que ele deveria ter lido as letras miúdas do contrato e que, de qualquer forma, agora está em débito com o senhor das trevas. Johnny fica amargurado com a situação (sejamos justos: quem não ficaria?) e cancela os planos de fugir para longe com sua namorada, Roxanne Simpson.

Anos depois, Johnny (agora na pele de Nicolas Cage) é o mais famoso acrobata motorizado dos Estados Unidos, arriscando sua vida em façanhas perigosas. Prestes a realizar a apresentação mais arriscada de sua vida, Johnny é surpreendido pelo reaparecimento de Roxanne, agora repórter de TV (e interpretada por Eva Mendes, de Era uma Vez no México). Mas as tentativas de reatar o romance terão um complicador: o maligno Coração Negro (o insosso Wes Bentley) aparece no deserto e, após matar todos os clientes de um bar de estrada, invoca três companheiros das profundezas do inferno para, juntos, acharem um pergaminho que lhes dará o poder de dominar o mundo. Como Coração Negro é o filho rebelde de Mefisto, seu pai se sente na obrigação de colocá-lo no devido lugar e convoca Johnny Blaze para a missão, conferindo-lhe o poder de usar o fogo do inferno e usar a moto mais cool do mundo. Há, claro, o problema de se transformar numa caveira em chamas enquanto o poder está em uso, mas Johnny não parece se importar muito com isso, pois logo sai por aí enfrentando ladrõezinhos baratos, destruindo propriedade alheia e enfrentando os capangas super-poderosos de Coração Negro.

Quem assistiu à bomba, o Demolidor, estrelado por Ben Affleck, escrito e dirigido pelo mesmo Mark Steven Johnson, já sabe o que esperar. Ou melhor, o que NÃO esperar: roteiro coerente, cenas emocionantes, piadas divertidas e boas interpretações. Quer exemplos?

O acidente no qual o pai de Johnny morre é tão simplório que fica difícil acreditar que tenha sido fatal; dá impressão que ele morreu mesmo foi de tédio. Não se explica direito porque o tal pergaminho, ao qual estão presas mil almas condenadas, é importante para a dominação do mundo. O salto teoricamente perigoso e emocionante do herói em sua última apresentação é dado com uma facilidade quase leviana. As lutas do Motoqueiro com as entidades malignas são pouco ou nada emocionantes. A edição do filme peca constantemente, deixando algumas seqüências com conclusões apressadas demais e iniciando outras do nada, sem mostrar uma ligação com o que estava sendo mostrado. E Cage, geralmente um ator competente, está careteiro e exagerado no papel. E o penteado estranho que ele usa para tentar esconder a careca também não ajuda.

Apesar de tudo, há coisas positivas. Os efeitos especiais são bacanas e dão vida àquilo que sempre pudemos ver apenas nos quadrinhos, inclusive nos momentos em que o personagem passa de moto à alta velocidade, causando danos a carros estacionados e derretendo o calçamento. O roteiro parece tentar seguir uma estrutura de faroeste, não apenas colocando o Texas como cenário do filme, mas também mostrando vilões vestidos com longos capotes, um mocinho tentando vingar a morte do pai, um mentor mais velho que ajuda o herói antes do duelo final e outras coisas, que acabam conferindo um certo charme ao filme. Também foi bacana a idéia de colocarem, como Mefisto, o ator Peter Fonda, que se tornou ele próprio um ídolo dos motociclistas do mundo todo quando estrelou o clássico Sem Destino, em 1969. Outra presença que acaba emprestando alguma nobreza ao filme é a de Sam Elliot, de O Incrível Hulk e Obrigado por Fumar, como um coveiro misterioso que aparenta saber mais do que deveria.

O Motoqueiro Fantasma nunca foi um herói do primeiro escalão da Marvel (já teve sua série descontinuada mais de uma vez), mas tem uma grande quantidade de fãs e um universo interessante. Por isso mesmo, merecia um destino melhor nos cinemas. Contudo, apesar das críticas negativas generalizadas, o resultado nas bilheterias tem sido bom o bastante para o diretor começar a falar numa continuação. Quem sabe na próxima eles acertam já que, fato incontestável, o Motoqueiro é melhor que Demolidor e muito, muito melhor do que a Elektra, que Johnson também roteirizou. Talvez, se ele vender sua alma ao diabo, consiga fazer um bom filme um dia.

Borat



Nota: 8,5


Ainda que não tenha visto nenhum dos esquetes de Borat que se multiplicaram na web em 2006, é muito provável que você conheça, nem que seja de ouvir falar, o personagem do comediante Sacha Baron Cohen. O repórter do Cazaquistão que viaja pela Inglaterra e pelos EUA atrás de intercâmbio cultural já se tornou ícone da cultura pop. Mas vamos evitar a redundância e deixar de lado a unanimidade para começar a falar do filme, Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006).

A melhor comédia do ano passado (com a estréia tardia, a melhor de 2007 no Brasil) surge como uma revolução no gênero não só por sua aberta incorreção política, nem só por conta do talento de Cohen para se manter dentro do personagem, sem se abalar, enquanto expõe à câmera os preconceitos alheios. Borat é um divisor de águas porque consegue encaixar na linguagem do cinema, terreno da mise-en-scène, uma característica que só víamos nas suas pegadinhas da televisão, a entrega ao acaso.

São, pra começo de conversa, dois denominadores inconciliáveis: a encenação pressupõe direção, controle, enquanto a aventura do esquete só funciona apostando no incerto, na liberdade dentro da "cena". O truque de Cohen - e do diretor do filme, Larry Charles - é mascarar os pontos de contato dos dois extremos. Em forma de pergunta: onde termina o improviso e começa a mise-en-scène em Borat?

No seu programa de TV, Da Ali G Show, depois de uma excursão de reportagens pela Inglaterra, Cohen encontrou nos Estados Unidos a mina de ouro para a proposta de Borat. No país do politicamente correto, o comediante fazia comentários anti-semitas e homofóbicos, em tom de folclore do Leste Europeu, e acabava arrancando dos seus entrevistados declarações que revelavam o próprio antisemitismo e a homofobia entranhados nos EUA. A princípio, o que o filme pretende é encadear esse humor-de-constrangimento em longa-metragem.

Para tanto, exige-se uma premissa, um moto dramático. A solução encontrada foi Baywatch. Recém-chegado aos EUA, Borat assiste na TV a uma das reprises da série de Malibu e se apaixona por Pamela Anderson. "Paméla", o novo amor de sua vida, está na Costa Oeste, então Borat cruzará o país atrás dela. No caminho, desempenhará seus números-entrevistas. Essa é a justificativa do filme, rasa e frouxa o suficiente para levar a metragem adiante.

A coisa começa a ficar interessante - e aí a direção de cena e o acaso começam a se confundir - quando as situações que surgem na viagem passam a servir não só como piada, mas como elemento dramático. O exemplo maior é o culto evangélico: uma cena que evidentemente foi pensada, em sua origem, como esquete independente, passa a fazer parte de uma construção ficcional maior. Em entrevista à Rolling Stone, Cohen disse que o material bruto de filmagem chegava a 50 horas. É um segredo de decupagem, portanto, conseguir formatar os esquetes numa estrutura de ficção.

Mas daí vem a pergunta, novamente: já que tudo isso está servindo a uma "proto-mise-en-scène", o imprevisto deixa de ser imprevisto? Dá para perceber que deixa - pelo menos nos momentos de fragilidade da montagem. É evidente, no contracampo, que as meninas que se assustam com o urso no caminhão de Borat foram dirigidas: quando gritam para a câmera elas não estão diante do urso de verdade. A cena da liquidação de garagem é semelhante. A câmera já estava postada no jardim quando o caminhão de Borat se aproxima. Será que aquilo não foi combinado para que o personagem encaixasse sua clássica piada de cigano?

Quanto mais somos absorvidos pelo lado ficcional, mais desconfiamos da espontaneidade documental. A magia de Borat é nos enganar com essa linguagem híbrida. Não digo isso para desqualificar o filme, pelo contrário. Uma piada não deixa de ser engraçada porque foi ensaiada.

À Margem do Concreto



Nota: 8

Documentarista mais prolífico em atuação no Brasil, Evaldo Mocarzel (Do Luto à Luta) chega à metade da sua tetralogia da exclusão paulistana. Depois de À Margem da Imagem (2002), que detalha a vida dos moradores de rua da metrópole, agora chega À Margem do Concreto, sobre o movimentos de ocupação do Centro da cidade. É uma evolução não só temática como política: dos sem-teto desorganizados, o enfoque documental passa para os sem-teto atuantes.

O nível de organização dos "invasores", como a mídia trata os ocupantes de prédios abandonados, fica evidente na quantidade de associações: Movimento dos Sem-Teto do Centro, Fórum dos Cortiços, Movimento de Moradia do Centro, Movimento Leste A, Unificação das Lutas de Cortiços... Mocarzel dá voz a todos eles e adota abertamente o discurso e o ponto de vista do documentados. A idéia do filme - e da tetralogia como um todo - é descobrir as pessoas e as idéias por trás das estatísticas e dos estereótipos reproduzidos no caderno de Cidades e no telejornal.

De forma um tanto mais dispersa do que em À Margem da Imagem, o documentário começa colhendo histórias de vida. Uma mulher lembra as condições em que deixou o Sul do país para se aventurar em São Paulo; um dos líderes de organização, gay, conta como foi difícil superar o preconceito para chegar onde chegou. O relato começa a ficar mais interessante à medida que a câmera interna-se na rotina de um prédio ocupado e no modo de operação de uma associação de sem-teto.

Conhecer a ordem vigente em um espaço criado em poucos meses, normas essas frequentemente mais sólidas do que as que vigoram cidade afora, é um interessante ponto de discussão. Como nos abrigos da Prefeitura mostrados em À Margem da Imagem, a conduta de todos é fiscalizada. Em um caso específico de À Margem do Concreto, um casal briga, se ameaça, e a esposa chama a polícia - ato condenado na reunião do Conselho dos ocupantes, já que envolver a polícia em um assunto interno é visto como a pior das infrações.

Respeitosamente, Mocarzel estrutura os seus filmes em um crescendo. Começa observando, colhendo depoimentos, embrenhando-se naquele mundo, e só começa a expor as idiossincrasias dos seus documentados quando o espectador já possui informações para julgar por conta própria. Normalmente isso se dá na metade do filme - e em À Margem do Concreto a apreciação é personificada na figura messiânica de Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê. Líder do Movimento de Moradia do Centro, frequentemente preso em confrontos, tido como cabeça ideológica dos sem-teto, Gegê só crê na revolução social por meio da tomada armada do poder. Simboliza, como nas altas fileiras do MST, a mistura complicada de ação social com manobra política.

Como em Dia de Festa, documentário de Toni Venturi sobre o mesmo tema, o clímax é a ocupação. Mais escolado no gênero do que Venturi, Mocarzel planta uma câmera na rua (reproduzindo as cenas de confronto, batalhão de choque, bomba de efeito moral) e outra dentro do prédio. O ponto de vista interior, inusual, faz todo o sentido dentro de À Margem do Concreto: se acompanhamos a vida dos sem-teto, nada mais justo do que seguir a tensão da incerteza, desocupa ou não desocupa.

Mocarzel crê na demolição de estereótipos não por meio de discursos, mas de imagens. Como já virou clichê particular, o cineasta exibe para os seus entrevistados algumas reportagens. Ele nem precisava perguntar o que os sem-teto pensam sobre a imagem que deles é feita na TV... Claro que há um descompasso entre as duas visões. E basta seguirmos o enfrentamento climático pela ótica dos sem-teto para percebermos como as "invasões" não são apenas uma provocação, como a mídia transmite frequentemente. Ver cômodos improvisados, erguidos dos escombros, serem desmontados de um minuto para o outro é impactante. É como se famílias precisassem remobiliar sua vida dia sim, dia não. E não se cria um cidadão sem que ele tenha a sensação de pertencer a um lugar.

Os dois últimos filmes da tetralogia são À Margem do Lixo (sobre a rotina de catadores de papel e materiais recicláveis) e À Margem do Consumo (a visão dos favelados sobre o mercado de consumo paulistano). Este último deve ser mais interessante, já que oferece a chance de expor o próprio cinema, na sua "digestão" de temas sociais, como um produto de consumo. Discutir não apenas a realidade e a imagem como o seu próprio ofício, a validade do cinema como retrato da realidade, coisa que Mocarzel consegue fazer muito bem.