28 fevereiro 2006

Uma Mulher Contra Hitler



Nota: 9

O filme é um relato claro e intenso dos últimos seis dias na vida de Sophie Scholl (nome original do filme), membro da resistência ao regime nazista na Alemanha de 1943. Para fazer o filme, os produtores aproveitaram a descoberta de documentos há muito tempo engavetados nos velhos arquivos da Alemanha Oriental, e de entrevistas recentes com testemunhas ou parentes e amigos dos envolvidos no episódio histórico.

O filme é compreensivelmente estático, já que seu teor se baseia nos interrogatórios de Sophie administrados pelo oficial da Gestapo Robert Mohr. Mas é uma estática elétrica. O filme tem uma energia nervosa no duelo verbal dos dois protagonistas sobre questões de vida e morte.

Interpretações sólidas dos alemães Julia Jentsch como Sophie e de Alexander Held (de "A Queda - Os Últimos Dias de Hitler") como Mohr, em conjunto com um excelente elenco de atores coadjuvantes, garantem que o filme não seja tomado erroneamente por um filme dramático sem vida.

Uma Mulher Contra Hitler teve seu maior impacto, é claro, nos territórios de língua alemã. Mas com o interesse naquela época recentemente avivado por A Queda, o filme também pode ser sucesso em muitos outros países. Na verdade, por tratar de um tema global, que até hoje gera bons filmes e discussões - o nazismo, o filme interessa a todas as pessoas minimamente criticas, que não querem que algo como o nazismo, volte a aparecer. Por isso filmes como esse, servem de alerta, para que práticas e discursos, como os adotados pelos nazistas, que podem muito bem serem vistos nos dias atuais, sejam eliminados da política. Realmente assusta se observarmos os discursos nazistas de mais de cinquenta anos atrás e os compararmos com os discursos dos políticos hoje (leia Bush e Tony Blair). Dizem que o nazismo acabou e que aquele momento (2ª Guerra) apenas maculou a história da humanidade, mas temos que prestar muito atenção na sociedade atual e nos discursos de nossos políticos, pois o nazismo não foi algo isolado à Alemanha e inclusive teve apoio de outras nações "democráticas". Resumindo, é um filme global e atual, que serve para constatarmos certas práticas absurdas dos homens no poder e dos governos eleitos, e para que impossibilitemos a volta dessas práticas.

Sophie pode ser uma grande heroína na história alemã, mas Jentsch a interpreta como o que ela era - uma jovem comum que, em uma época extraordinária, encontra a coragem para fazer o que é certo. Ela e seu irmão Hans (Fabian Hinrichs) são membros da resistência Rosa Branca, um grupo já retratado em outros filmes alemães, principalmente no A Rosa Branca, de Michael Verhoeven.

Uma tola decisão de distribuir panfletos anti-nazistas na Universidade de Munique resulta na prisão de Sophie e de Hans em 18 de fevereiro de 1943. A partir daí, o diretor Marc Rothemund e seu frequente colaborador, o escritor Fred Breinersdorfer, deixam os eventos falarem por si mesmos.

Separada dos outros, Sophie é torturada por Mohr durante horas. Inicialmente, ela nega o envolvimento, e é tão convincente que quase é libertada. Aí aparece uma prova contra ela, encontrada em uma busca no apartamento do irmão. Quando Sophie vê a confissão de seu irmão, ela também admite culpa - e o faz com orgulho. Agora começa a dança verbal de Sophie com Mohr para proteger amigos e colaboradores. Mais tarde, Mohr oferece a Sophie uma chance de receber uma sentença mínima se ela renunciar a seus ideais. Ela recusa.

Mas a parte mais interessante do interrogatório é quando algoz e vítima debatem os objetivos e métodos do governo nazista, e a questão de como a posteridade vai se lembrar dos pontos de vista diferentes de ambos. Mohr era um homem que, em 1943, deveria saber como as coisas estavam indo errado na guerra - que é o ponto principal dos panfletos dos estudantes - e também conhecer as façanhas atrozes do governo nazista. Mas o Mohr de Held não usa expressões de sentido duplo e não aceita o ponto de vista de Sophie.

E ainda assim ele desenvolve uma crescente admiração por ela, e luta para responder algumas de suas questões. Certamente, sua oferta de salvar a vida da moça é curiosa, se ele realmente acredita no que diz que acredita. Pode ser sua última tentativa de ganhar a discussão. E aqui está o valor dramático e moral do filme: o argumento de ambos transcende a época nazista. Tem a ver com a coragem civil, produto em falta mesmo nos dias de hoje .

Rothemund escolheu cenários, figurino e um trabalho de câmera simples, para que o espectador se concentre nos protagonistas e no jogo de palavras. Ele e Breinersdorfer se recusam a sentimentalizar quaisquer decisões de Sophie sobre esses poucos dias. Mas eles mostram sua luta contra a tirania como uma declaração dramática do desejo dos seres humanos por liberdade, não importa qual seja o seu custo.

Boa Noite e Boa Sorte



Nota: 9,5

George Clooney é uma espécie de Robin Hood de Hollywood: rouba dos ricos (leia-se bobagens que aceita fazer para grandes estúdios por cachês que batem nos US$ 20 milhões) para dar aos pobres (filmes independentes que financia ou viabiliza por meio da produtora que divide com o amigo Steven Soderbergh, diretor e pioneiro do cinema independente contemporâneo). Assim, é mais do que justo que finalmente tenha sido reconhecido pelo Oscar, prêmio que o ignorava sistematica e metodicamente em suas mais de duas décadas de carreira. O ator foi agraciado com três indicações e deve subir ao palco pelo menos uma vez, a primeira de sua vida.

Se pode alienar o espectador médio local por tratar de um episódio excessivamente norte-americano, merece o ingresso pelos valores universais que defende, como a liberdade de imprensa e o direito de discordar, e pelo resgate histórico que faz para as novas gerações da história dos Estados Unidos na década de 50, ponto de partida para a implantação de ditaduras nas Américas.

O filme ganha mais importância quando se leva em conta o desastre democrático que é a administração de George W. Bush, com sua própria caça às bruxas, desprezo pela imprensa livre e independente e diminuição consentida das liberdades individuais em nome de uma "guerra ao terror" duvidosa. Qualquer semelhança entre o período atual com o de cinquenta anos atrás, não é mera coincidência.

Boa Noite e Boa Sorte trata da história verídica do jornalista Edward R. Murrow (1908-1965), que no começo dos anos 50 apresentava o programa semanal "See It Now" (Veja Agora) na CBS, então uma das três principais emissoras de TV norte-americanas. À época, com poucas exceções, a grande imprensa norte-americana em geral, mas a televisiva principalmente, pisava em ovos na cobertura do senador republicano Joseph McCarthy (1908-1957), do Estado do Wisconsin, que, via Subcomitê Permanente de Investigações do Senado, promovia uma verdadeira Inquisição contra o que ele chamava de "ameaça vermelha".

Murrow foi um dos que teve coragem de desafiá-lo, de maneira séria e objetiva, contrapondo fatos às maquinações do celerado político. Isso acabou custando seu emprego, mas deixou uma boa história e um bom exemplo, que agora Clooney resgata.
Um dos motivos é que seu pai, que também sofreu por ser um jornalista combativo na mesma época de Murrow, o considerava o paradigma da imprensa livre.

Pois tem futuro o menino. No comando do filme, ele só toma decisões acertadas. Uma delas é optar pelo preto-e-branco, em vez do colorido, o que confere a desejada sobriedade que o diretor queria. Outra é a escolha do elenco, raras vezes tão acertada. Destacam-se principalmente o personagem principal, interpretado pelo grande e freqüentemente injustiçado ator David Strathairn, e seu chefe, William Paley, vivido pelo veterano Frank Langella, sempre contido. Outro trunfo do filme é usar cenas de arquivo do verdadeiro Joseph McCarthy nas seqüências em que o senador aparece, em vez de optar pelo caminho fácil de um ator que provavelmente não resistiria à tentação de fazer um vilão caricato de cinema mudo. McCarthy em ação, McCarthy como McCarthy, é mais caricato e mais vilão do que supúnhamos nós, espectadores, familiarizados com o político apenas de leituras.

Não há como não tirar o chapéu para George Clooney. Ator egresso da televisão - onde ganhou fama ao viver o médico bonitão da série E.R. -, planejou sua carreira como poucos e, ao lado do cineasta Steven Soderbergh, fundou a produtora Section Eight, que tem um currículo invejável de boas produções - sejam elas blockbusters ou obras autorais.

O segundo filme de Clooney como diretor - o primeiro foi o bacana, mas um tanto pretensioso Confissões de uma Mente Perigosa - tem arrancado elogios e indicações para os principais prêmios da indústria. Merecidos, vale dizer. Boa Noite e Boa Sorte (Good night, and Good Luck, 2005) é uma produção ousada, que passa ao largo - e com enorme louvor - de todos os aspectos dito "comerciais" da Hollywood moderna. A começar pela opção estética do preto e branco, para a qual a maioria das pessoas torce o nariz.

A história nos situa nos anos 1950, quando o senador Joseph McCarthy (imagens de arquivo no filme) empenhou-se numa caça às bruxas buscando supostos comunistas no seio da nação. É por esse cenário de insegurança que o filme passeia, mostrando o âncora de TV Edward R. Morrow (David Strathairn), o produtor Fred Friendly (o próprio Clooney) e sua equipe de repórteres desafiando o governo em sua luta para apresentar os dois lados da nebulosa questão. Em seu programa, Morrow - que usa o bordão "boa noite e boa sorte" como frase de encerramento - revela o jogo sujo de McCarthy e torna-se alvo do senador, iniciando um acalorado debate pela liberdade de expressão e conseqüente queda de McCarthy.

Da escolha de seus protagonistas aos enquadramentos e à fotografia estonteante de Robert Elswit (Embriagado de amor), Clooney obtém enorme sucesso em fazer sua fita exalar integridade. Strathairn se entrega de tal forma ao seu personagem que a luta e a idoneidade dele ganham um ar sexy. Claro que a fumacinha do cigarro subindo em todas as cenas e sendo cruzada pelas luzes do estúdio também ajudam nessa construção... e muito. É o glamour do film noir vivo e muito bem empregado com mãos firmes.

Mas não se apresse em pensar que toda essa construção artística existe para ocultar falhas no roteiro ou algo assim. Boa noite e boa sorte é excepcional também nesse aspecto. Com extrema segurança, sem recorrer jamais à saída fácil da explicação didática, os diálogos são disparados com tanta velocidade e veemência que parecem extrapolar o filme, não cabendo nele.

E se o falatório já era relevante em 1950, parece ainda mais importante hoje, tempos em que a integridade na mídia e na política rareia a cada eleição, a cada renovação editorial. Clooney tem plena consciência disso e a mensagem está lá pra quem quiser - ou puder - pegar. Sai o macartismo, entra o Bush do Patriot Act, a Fox News... Tudo implícito, mas o cutucão é incisivo. Talvez com isso - e alavancado pelas indicações ao popular Oscar - o filme até consiga abrir alguns olhos... quem sabe? Boa noite e boa sorte para todos nós.

Capote



Nota: 7

Perto de Truman Capote, Edward R. Murrow era um Cid Moreira.

Por um desígnio do mercado, temos em cartaz nos cinemas e na disputa do Oscar, duas facetas opostas do jornalismo. Murrow é a sala de visitas, Capote é a boca do fogão. Em Boa noite e Boa Sorte, o diretor George Clooney e o ator David Strathairn fazem de Murrow um modelo de engajamento: leal, justo, aprumado, o repórter que muda o mundo com seus ideais, um tipo utópico perdido em algum momento dos últimos vinte e tantos cínicos anos de História. Ok, no filme Murrow fuma como uma chaminé, mas eram idos de 1950, isso faz parte da mitificação.

O Truman que o diretor Bennett Miller e o ator Philip Seymour Hoffman recriam em Capote (2005) também fuma demais - de resto é humano, demasiado humano. Egoísta, melindroso, efeminado de voz fina, repórter que vai a campo provar que sabe tirar o suco de uma boa história, que sabe arrancar confissões de um eremita. A isso se chama vaidade, de resto todo jornalista a tem, e é evidente que Murrow nutria sua dose também. O caso é que sobreviver dela, sofrer por ela, ver-se entre sucesso e cobrança moral a ponto de se anular, era particularidade de Capote. Ele é o tipo de jornalista que faz de tudo para arrumar um matéria e tirar o que quer de seu interlocutor. Finje caras, gestos, personalidades, representa o tempo todo. Sendo um personagem com amigos, outro com conhecidos e outro com aqueles que pretende extrair alguma coisa. Falso, persuasivo, hábil com as palavras. Em um momento do filme o xerife da cidade, que foi também usado pelo reportér, pergunta se "à sangue frio" tem a ver com o assassinato em si, ou com o próprio Capote, que faz de tudo, para conseguir o que quer. Difícil descobrir.

Indicado a cinco Oscars - melhor filme, diretor, roteiro adaptado, ator para Hoffman e atriz coadjuvante para a serena Catherine Keener - o filme recria as condições em que Capote gestou sua obra-prima literária, À Sangue-Frio, um dos maiores romances do século XX. Sim, porque não faz sentido ser um atormentado se não for pra virar gênio. Revolucionário, o texto inaugurou em 1966 a era dos livros-reportagens. Ajudou a consolidar o New Journalism crescente na época: investigação acurada da imprensa misturada com manhas da literatura. Sem ele não haveria A luta de Norman Mailer, nem Notícia de um sequestro de Garcia Marquez. Sem ele não existiria a seção de "não-ficção" dos best-sellers da semana.

Tudo começa em 15 de novembro de 1959, quando os quatro membros da família Clutter são encontrados mortos em seu rancho em Holcomb, Kansas. Então colaborador da revista The New Yorker, já conhecido na metrópole por seu relato que viraria o filme Bonequinha de Luxo em 1961, Capote recorta a nota policial do jornal e embala as malas para lá. Há uma bela imagem que metaforiza esse momento do filme: o trem negro que atravessa, como numa violência física, os campos de trigo dourados, típicos do Sul. Capote nasceu no Arkansas caipira, mas no momento representa o trem, o novaiorquino desabalado atrás de alguém que lhe escancare os detalhes sangrentos da tragédia.

Vale já comentar o talento do diretor Miller para condensar idéias em poucos diálogos. Com apenas um documentário no currículo, de 1998, Miller faz deste seu primeiro filme de ficção um baita exercício de concisão. Uma única passagem é necessária para (começar a) entender Truman Capote. Ele quer entrevistar a garota que achou os corpos, mas ela se fecha ao sujeito afetado que fala fino. Capote a examina e quase não abre a boca. E eis que então nota o ponto fraco da menina, solta a frase mortal, aquela que dosa compaixão pelos outros e piedade por si mesmo. Reverter seus próprios fardos em confiança é a primeira das complexas características do repórter-escritor.

Aos poucos Capote se dá conta de que tem ouro em sua frente, convence o editor a transformar a reportagem em livro. Ganha meses, anos para escrevê-lo - e não cabe aqui explicar muito mais do que segue na tela. Que o filme cometa algumas licenças em relação à história original de À sangue-frio, como negligenciar a relação homossexual entre os dois assassinos (embate de poder que acaba determinando o desfecho do crime), até que não prejudica tanto. O que importa salientar é que o dilema da vaidade pontuará toda a história, e Miller sabe muito bem trabalhá-lo sem esgarçar o tema.

Conta a seu favor, obviamente, o fato de ter pedido a Philip Seymour Hoffman que encarasse o papel. Depois de vencer a dificílima composição do personagem, que na mão de qualquer outro estancaria na caricatura, o ator predileto de Paul Thomas Anderson embarca na proposta de Miller de poucas palavras e muitos significados com esmero. Pode até não levar o merecido Oscar de melhor ator, mas de qualquer maneira já recebe finalmente reconhecimento por sua carreira. E Hoffman chora como ninguém as verdadeiras lágrimas de crocodilo. Crítica e público estarão de olho na brilhante metamorfose de Philip Seymour Hoffman no escritor norte-americano já morto.

Capote é um homem fácil de imitar, mas difícil de entender, um demônio na arte do engodo que assumiu um disfarce atrás do outro para encobrir a solidão de sua natureza e seu gênio. Hoffman consegue entender isso.

Capote baseia-se na biografia que Gerald Clarke fez do escritor, mas o foco é deliberadamente estreito: o período de tempo coberto é de 1959, quando Truman percebe o potencial da história sobre os assassinatos da família Clutter em Holcomb, Kansas, no New York Times, até a execução dos assassinos, em 1965.

A publicação de seu livro sobre os assassinatos transforma Capote no escritor mais famoso da América. Isso em uma época em que escritores importavam, e best-sellers nem sempre eram volumes de auto-ajuda e thrillers esperando para virarem filmes.

O roteiro estabelece cuidadosamente a época e o lugar e situam seu herói em duas Américas diferentes. Uma é a formada pela sociedade literária de Nova York, com seus coquetéis e gracejos inteligentes, na qual ninguém supera Truman Capote, um escritor sulista e gay assumido com uma voz de soprano, maneiras excêntricas e uma ambição inconfundível de obter sucesso em sua escrita. A outra América é a do Meio-Oeste, onde Truman não é apenas um peixe fora d'água, mas um peixe de outro mundo.

Ninguém sabe o que fazer quando ele aparece ali acompanhado de sua amiga de infância, Harper Lee (Catherine Keener), que logo vai ganhar fama por conta própria com seu livro "To Kill a Mockingbird." Mas, nesse projeto, ela serve mais como pesquisadora de Truman e, como o próprio diz, como seu "guarda-costas."

Aos poucos, a dupla ganha a confiança de Alvin Dewey (Chris Cooper), um engomado agente do FBI de Kansas e, dos assassinos quando eles são pegos, Perry Smith (Clifton Collins Jr.) e Dick Hickock (Mark Pellegrino). O status de outsider de Truman, tão peculiar para toda essa gente, algumas vezes funciona em seu favor.

Mas lidar mental e espiritualmente com os assassinos deixa uma marca nele, aumentando ainda mais sua já grande dependência do álcool, abalando sua relação com o amante Jack Dunphy (Bruce Geenwood) e perturbando a sua mente.

23 fevereiro 2006

Roma, Um Nome de Mulher



Nota: 9

Se um extraterrestre pousasse de repente aqui na América Latina e assistisse a uma dúzia de bons e populares filmes produzidos na Argentina e no Brasil nas últimas décadas, teria a seguinte sensação: os brasileiros gostam de falar do sertão; os argentinos, das cidades. O nosso cinema é mais sexual e mitológico; o dos nossos vizinhos, mais sentimental e psicanalítico. E, enquanto nós nos alimentamos do "lúmpen", eles são totalmente obcecados com a classe média.

Nos filmes do veterano Adolfo Aristarain, 62, a mistura desses ingredientes que compõem a essência da cinematografia argentina encontra sua mais perfeita síntese -basta reparar em como foram construídos Lugares Comuns ou Martín. Conseqüentemente, o foco do diretor aponta quase que para o sentido oposto daquilo que buscam seus pares brasileiros.

Afinal, é difícil imaginar que um diretor dos nossos expusesse tanto a própria intimidade como faz Aristarain em Roma - Um Nome de Mulher, dirigido e escrito por ele.

Trata-se de uma espécie de autobiografia romântica que traça, por meio da história do exílio de um homem, a nostalgia por uma Argentina que ainda não havia conhecido o pesadelo militar.

A trama tem início em Madri nos dias de hoje, quando um velho escritor argentino é incumbido de fazer, por encomenda, um livro sobre si próprio. Como se trata de um idoso beberrão, seu editor envia um jovem para ajudá-lo no trabalho e, ao mesmo tempo, vigiá-lo para que cumpra os prazos. Tratado inicialmente com rispidez, o rapaz acaba conquistando o velho escritor por sua aptidão literária e pelo interesse que demonstra ter pela infância e adolescência do homem, vividos na Buenos Aires dos anos 50 e 60.

A relação de mestre e aluno que se forma entre os dois gera uma novela espetacular sobre a Argentina daquela época. "A idéia de transmitir o conhecimento é algo que me interessa. Gosto de mostrar o quanto uma geração mais velha, que está de saída, pode transmitir aos mais novos e o quanto sofre na tentativa de se fazer compreender", disse Aristarain à Folha.

Só que o diretor não pode reclamar por não se fazer ouvir pelos jovens. Aristarain começou a fazer filmes nos anos 60, bem antes do hype do "novo cinema argentino" - de meados dos anos 90 para cá. Ainda assim, é fácil ver sua influência em produções como O Filho da Noiva (Juan José Campanella, 2001) e Esperando o Messias (Daniel Burman, 2000).

É curioso que Roma, a obra mais completa de Aristarain, esteja saindo das mãos do cineasta agora, ao mesmo tempo em que os talentosos cineastas jovens, cuja produção é conhecida pelo simpático apelido de "buena onda", dão um passo à frente e põem no mercado e nos festivais filmes mais maduros. "É um momento muito bom, apesar da crise que vive o país."

Entretanto, Aristarain vê com preocupação o atraso nas trocas culturais entre Brasil e Argentina e a demora na estréia de filmes brasileiros lá e vice-versa. "Aqui, em outros tempos, se exibiam filmes europeus, brasileiros, poloneses e de vários países, mas a indústria americana se apoderou do mercado", diz o diretor, que defende um maior intercâmbio. "Tive filmes que passaram por festivais europeus e nunca foram exibidos no Brasil. Não faz sentido."

A Roma do título enigmático do filme não é a capital italiana, muito menos a sede do catolicismo ou a casa do papa. Trata-se, isso sim, do nome da mãe do protagonista (e da mãe do próprio diretor), dado pelo pai anarquista (de ambos). "Quando meu avô assim chamou minha mãe, ele se referia à Roma livre que queria ver no futuro, com o anarquismo, era um idealista."

Boa parte da ação se passa num período turbulento do passado argentino. Ainda assim, a história é observada com a distância e de maneira difusa. "É impossível construir personagens sem a época em que viveram. Não se pode fugir da história, mas também não se pode parar a narrativa para explicar o contexto. As coisas acontecem juntas e há diferentes níveis de intensidade na relação do homem com os fatos. A queda de Perón, os levantes, a ditadura, tudo isso está lá. Mas também estão os momentos mais ou menos neutros, em que a política influencia menos e parece não existir. Afinal, assim é a vida."

Um belo filme, sensível, comovente, que consegue tratar os homens e suas desvenduras, de uma maneira formidável e humana. Em poucos filmes conseguimos nos identificar tanto com os personagens e suas relações: o amor completo da mãe pelo filho, a procura do filho por um amor que nunca vai encontrar, pois tem como modelo o amor paterno, as suas incessantes buscas, suas alegrias e tristezas, amores e perdas, tudo ali, como um grande mosaico da vida do homem, que acerta e erra, mas que no final fica com a balança equilibrada, com saldo nulo, pois curtiu as felicidades e incorporou as tristezas em sua personalidade. O cinema brasileiro deveria parar de ser tão alienado, e criticar mais a miséria que acomete o povo brasileiro. Ao invés de meramente constatar que existe a pobreza, de uma maneira bela, poética, deveria colocar o microfone na mão do miserável e deixa-lo gritar seus problemas, como os argentinos fazem com a classe média

A Pantera Cor-de-Rosa



Nota: 1

A última vez que vimos o inspetor Clouseau, a marca Pantera Cor-de-Rosa passava por momentos difíceis, com o ator (agora diretor de TV) Ted Wass tentando preencher o lugar vago após a morte do formidável Peter Sellers em A Maldição da Pantera Cor-de-Rosa, de 1983.

Esse título também cairia como uma luva neste atual remake, que foi simplesmente chamado de A Pantera Cor-de-Rosa (The Pink Panther) e que finalmente chega aos cinemas nesta sexta-feira após ter sua estréia anunciada diversas vezes.

Mesmo com a inspirada escolha de Steve Martin no papel de Clouseau, o filme é mais desajeitado e atrapalhado do que o desastrado inspetor.

O resultado é dolorosamente sem graça - algumas exceções, como uma mordida num "hambúrguer", já começam a perder a graça devido à propaganda. E mesmo com o acréscimo da tentadora cantora Beyounce, há um gosto de requentado em toda a produção.

Embora Martin e o diretor Shawn Levy tenham trabalhado juntos antes no primeiro remake de Doze é Demais, eles não conseguem fazer as tiradas cômicas necessárias.

O resultado desperdiça uma série de talentos, incluindo o de Kevin Kline como o pomposo superior de Clouseau e Jean Reno como o estóico assistente do inspetor, além de Emily Mortimer e Kristin Chenoweth. Apesar de ser filmado em Nova York, Paris e Praga, o filme poderia muito bem ter sido rodado todo em estúdio.

Para alguns, Pantera Cor-de-Rosa foi um personagem de desenhos animados produzidos até a década de 90. Para outros, trata-se do valioso diamante cobiçado pelo ladrão de codinome Fantasma até os anos 80. Agora, as novas gerações recebem uma outra interpretação para a franquia, muito fraca, sem graça, enfadonha, maçante e ridícula em muitos momentos.

A nova versão pouco tem a ver com a história filmada por Blake Edwards, em 1963, que lançou a Pantera Cor-de-Rosa para o mundo e inspirou a criação do personagem rosado mais famoso da TV. Na verdade, apenas o inspetor e o diamante foram trazidos para este novo filme. Ao que parece, o humor também preferiu ficar no passado. Onde está o humor? Nem Clouseau acha.

Jacques Clouseau (Steve Martin), um desprestigiado inspetor francês, recebe o caso mais importante de sua carreira. Ele precisa descobrir quem é o assassino do famoso treinador de futebol Yves Gluant (Jason Statham), e o mais importante: quem roubou a valiosa jóia de Gluant, conhecida como Pantera Cor-de-Rosa.

A morte acontece após uma partida entre a França e a China (numa cena forçada, e mais produto de merchandising, do que qualquer outra coisa). Da cena do crime restaram apenas um dardo envenenado, a sexy e famosa esposa do treinador (Beyoncé Knowles), o ex-namorado da moça (William Abadie) e alguns desafetos chineses.

Resolver esse caso significa receber a cobiçada Medalha de Honra, muito almejada pelo inspetor chefe Dreyfus (Kevin Kline), que apenas escala o desastrado Clouseau a fim de ter o caminho livre para resolver o caso e levar as glórias.

O diretor Shawn Levy foca no público apreciador de humor mais físico e menos verbal. Não há pessoa ou objeto que passem ilesos pela falta de habilidade de Clouseau. Quedas, pancadas e esbarrões se repetem para preencher os 93 minutos de fita.

Steve Martin, cabelos brancos, bigode negro à la comédia pastelão, dá um novo tom ao Clouseau imortalizado por Peter Sellers a partir da década de 60. Seu personagem monopoliza a tela e, mesmo rendendo algumas risadas, torna a trama limitada. Martin também é responsável pelo roteiro do filme.

Como um protagonista trapalhão não pode deixar de ter seus escudeiros, o eterno tipo francês Jean Reno faz a vez do sóbrio Gilbert Porton. Emily Mortimer ( do recente Ponto Final) é a secretária Nicole. Para a atriz, foi "assustador" fazer a personagem. "Contar uma piada da qual ninguém ri em um cinema é muito mais vergonhoso que estar em um palco", disse Emily.

Já Beyoncé encontra sérias dificuldades em fazer o papel de... Beyoncé. Sua personagem, "Xania", deveria encarnar a "popstar, milionária e sedutora". Mas a texana parece ter entrado em crise de identidade durante as filmagens. "Em muitas cenas com Steve foi realmente difícil ficar no personagem, porque ele era tão engraçado e eu nunca sabia o que ele ia fazer", justificou a cantora, após a produção. O único instante em que a ex-Destiny's Child está confortável acontece numa apresentação musical - curiosamente, é no momento em que o filme fica parecido a um clipe de música pop.

Pantera Cor-de-Rosa é um caso comum da indústria cinematográfica. Sua música tema faz mais sucesso do que a própria história. A composição, de Henry Mancini (1924-1994), tornou-se um dos sons mais requisitados para toques de celular - um sinal de nossos tempos.

Da apresentação do cast à última cena do filme, a canção surge em todos ritmos imagináveis. Lá pelas tantas, o que antes soava simpático começa a cansar. Qualquer semelhança com as piadas não é mera coincidência.

Bem provável que, ao sair da sala, o espectador saque seu celular e troque de ringtone para a 5ª Sinfonia de Beethoven ou fique com aquela da corrida de cavalos ("William Tell Overture", de Rossini).

20 fevereiro 2006

Match Point (Ponto Final)



Nota: 7,5

Uma parte de Woody Allen, todos sabem, bem que gostaria de ser européia. Essa parte, que ocupa uns 75% de seu ser, nos últimos anos tem tido de se contentar com Nova York e o "nova-iorquismo" do cineasta.

Em Ponto Final - Match Point, Woody, como que voltando aos anos 80, encosta a comédia de lado e recupera a ambição - com vantagens e desvantagens. Ele vai a Londres, isto é, a uma série de signos de cultura e finesse que, ali, nem parecem essas idéias fora do lugar que o autor costuma atribuir aos intelectuais americanos (e um tanto pedantes) de seus filmes.

A história de Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) tem Dostoiévski, ópera, museus e galerias - até cinema. Nascido pobre e em Dublin, Chris é o sujeito tenaz que prosperou como tenista profissional menos do que o necessário para se tornar uma estrela, mas o suficiente para, hoje, na condição de ex-tenista, ser aceito na alta roda londrina e aproximar-se de Chloe (Emily Mortimer), a herdeira rica, simpática e um tanto insossa com quem vai casar.

Mas a origem parece chamá-lo na pessoa de Nola Rice (Scarlett Johansson), americana sensual, um tanto grosseira e muito atraente, que realmente o inflama. E Nola é, quando o filme começa, a futura cunhada de Chris - está noiva de Tom Hewett (Matthew Goode), irmão de Chloe.

A história é um tanto intrincada, desigual, comporta vários tons, evoluindo com franqueza para o filme policial "noir" no terço final - a parte mais bem-sucedida do filme. E por que será ela a parte mais bem-sucedida? Talvez porque nesse momento entre num registro bem americano e deixe a Europa e sua cultura um pouco sossegadas.
Essa parte policial amarra os grandes temas do filme, como a idéia manifestada por Chris de vivermos num mundo trágico, em que o acaso é peça central da existência.

Ele é também o homem que procura proteger a família de todos os males que possam atingi-la. É ainda, operisticamente, alguém que corre em busca de sua perda e corteja o mal com a mesma intensidade que busca ascender socialmente. (Fora isso, como em alguns Woody Allens, está envolvido num triângulo amoroso um tanto incestuoso).

Tamanha amplitude de personalidade curiosamente não beneficia o conjunto do filme, por uma série de razões, a começar pelo fato de que os demais personagens parecem antes de tudo apêndices parciais de suas contraditórias ambições e só vivem o indispensável para gravitar em torno dele. Em segundo lugar porque, à força de ser tentacular, o caráter de Chris oscila entre a frieza demoníaca e a paixão adolescente, conforme convenha ao roteiro.

Talvez por isso mesmo, é quando o filme se torna um franco policial, em que essas coisas perdem importância, que Allen coloca o espectador em posição de torcer pelo personagem sinistro - assim como um Billy Wilder fizera em Pacto de Sangue -, e o faz com desenvoltura e graça.

Mesmo quem notar alguma falta de rigor no fechamento da trama não lhe poderá condenar por falta de coerência: tudo está nas mãos do acaso, como sustenta o cínico Chris Wilton. E, no fim das contas, mesmo que o lado europeizante o atrapalhe, Allen faz um filme que se assiste com prazer -como é, aliás, de seu feitio.

A vida é trágica ou cômica? A pergunta que se faziam os amigos no bar era respondida em tom de farsa na história de Melinda e Melinda, filme anterior de Woody Allen. Diante da mesma questão, o tenista Chris Wilton não vacila - escolhe a primeira opção.

De fato, o que Allen propõe e demonstra neste seu último filme, é que tudo o que parece ser uma escolha, não é. Sorte, acaso e jogo são algumas das metáforas que transitam ao longo da narrativa. Mas ele reitera, sempre voltando à questão de Melinda e Melinda, que, numa partida, para ganhar é preciso perder e que nem um jogo de dados abolirá o acaso. Como jogador, Chris é uma criatura mimada pela vitória. Só um fator essencial o poupa da soberba: ele acredita na sorte.

O personagem vai dar a Allen a oportunidade de retomar um tema arqueológico da literatura, do teatro e do cinema -a paixão como força trágica, destruidora das seguranças racionais, reiterada aqui com as árias de ópera, que acentuam a emoção e substituem a ligeireza do jazz de outros de seus filmes. Paixão daquela espécie que, no cinema, Truffaut foi grande especialista, como em As Duas Inglesas e o Amor e A Mulher do Lado, que repercute intensamente em Ponto Final.

Com uma ambigüidade certeira, o diretor decide a partida. No tênis, Chris está em campo seguro, controla as forças, sabe manipulá-las e é tão regulado que pode desempenhar a função de mestre.

No tênis, ele conhece os irmãos Tom e Chloe, exemplares de uma civilização da sociabilidade sem arestas. Mas é numa mesa de pingue-pongue que seu caminho vai ser bloqueado pela atriz Nola, personagem cujas origens são obscuras e que se aferra a uma ilusão. Numa palavra, instável. Ambos conjugam um só verbo (to play, em inglês). A diferença é que o jogo de Nola a condena ao fracasso, e Chris, para vencer, se for preciso, vai até o fim.

Em outro momento, quando a paixão abre de vez as portas, Allen antecipa para o espectador a chave do que lhe interessa nesta história. No primeiro beijo sob a chuva, será a vez de Nola interrogar Chris: "Você não tem culpa?".

Ora, estamos postos a partir daí no atalho da paixão que conduz ao crime, mas cuja resolução passará longe das ficções apaziguadoras. Pois o que interessa a Allen não é a solução de um mistério. Solucionado ou não, punido ou não, resta, como uma cicatriz, seu efeito: a culpa.

O Segredo de Brokeback Mountain



Nota: 2

Tudo o que você sempre imaginou sobre os personagens de John Wayne e Montgomery Clift no clássico do faroeste Rio Vermelho (1948) é revelado candidamente em O Segredo de Brokeback Mountain, do diretor Ang Lee. O filme é um épico sobre o amor proibido.

O conto que Anne Proulx escreveu em 1997 para a revista New Yorker foi habilmente expandido pelos roteiristas Larry McMurtry e Diana Ossana, dando ao diretor taiwanês a chance de mostrar seu trabalho mais aplaudido desde Razão e Sensibilidade, de 1995.

Com imagens filmadas nas Montanhas Rochosas canadenses e com um bom elenco liderado por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, Brokeback Mountain acaba sendo tendencioso demais, investindo muito em um amor homossexual, mostrando que o resto nada vale. Querendo chamar a atenção e chocar, o diretor resolve mostrar um amor gay, proibido, enquanto que as relações heterossexuais com suas mulheres, são tratadas com displicência e descaso no filme. Pouco importando a relação de amor dos homens com suas mulheres e filhas, o diretor nos leva por um caminho de irresponsabilidades e tentações do amor, onde mais vale o sexo e o prazer, do que a vida em família. Não sei para que eles resolveram casar e ter filhos se só queriam ficar os dois juntos. Sendo hetero ou homossexual a relação, você tem que pelo menos ter responsabilidades pelos seus atos. O diretor nos mostra dois homens, que durante cerca de vinte anos se mantiveram como adolescentes, rejeitando o mundo ao seu redor, mesmo usando o mesmo, sendo egoístas e egocentricos.

O filme, que ganhou o Festival de Veneza de 2005, foi indicado para 8 categorias do Oscar, incluindo melhor filme, melhor diretor e melhor ator (para Ledger). A trama segue dois homens, Ennis Del Mar (Ledger) e Jack Twist (Gyllenhaal), e o amor que sentem um pelo outro, mas que devem manter escondido do mundo conservador e fechado do Oeste americano, temendo não apenas o escândalo como também por suas próprias vidas.

Ennis e Jack se encontram pela primeira vez no verão de 1963, quando buscam trabalho em uma fazenda de Brokeback Mountain, Wyoming, de propriedade do rancheiro Joe Aguirre (Randy Quaid). Não há nada muito romântico em tocar enormes rebanhos de gado pelos campos. Ao contrário, tocar o gado sempre foi mostrado como um trabalho duro nos velhos faroestes, mas Ennis e Jack conseguem se divertir com ele, mesmo quando suas dietas consistem apenas em feijão.

Os dois não conversam muito, mas Ennis deixa a entender que foi criado por seus irmãos depois que seus pais morreram em um acidente de automóvel. Ele fala sobre uma mulher chamada Alma com quem pretende se casar. Jack conta sobre seus pais rígidos e sobre o trabalho no circuito de rodeios do Texas. O cenário é de tirar o fôlego, embora a rotina dos vaqueiros seja dura, com ursos e coiotes ameaçadores, além do frio da montanha. Logo, os dois passam a confiar um no outro totalmente.

Certa noite, Ennis decide dormir perto do fogo em vez de sozinho em seu posto, mas durante a madrugada, com a fogueira apagada, ele começa a congelar. Jack então grita para que ele entre em sua tenda. Um simples gesto humano que leva a uma transa frenética, que à luz fria da manhã os dois rapidamente ignoram. O verão termina e chega o momento de Ennis se casar com Alma (Michelle Williams), enquanto Jack se casa com Lureen (Anne Hathaway), e os dois têm filhos.

A paixão entre os dois homens continua, e a afeição e a necessidade que um sente pelo outro crescem. Conforme passam os anos, eles planejavam passar um tempo juntos em Brokeback Mountain. Mas há sempre a ameaça de se expor e o medo que isso alimenta. Os roteiristas McMurtry e Ossana, que se debruçaram sobre o projeto durante oito anos, usam uma ampla tela para o que na verdade é uma história muito íntima.

Eles desenvolvem os personagens secundários com grande compaixão e discernimento. As mulheres nas vidas de Ennis e Jack recebem toda a atenção, e a atuação, principalmente de Williams, Hathaway e Kate Mara, como a filha de Ennis de 19 anos, é profundamente comovente. Mas elas são tratadas exatamente como secundárias no filme, como mulheres que serviram a sua finalidade: entreter os homens. Eis o paradoxo: mais machista impossível.

Orgulho e Preconceito



Nota: 7

Uma das mais conhecidas comédias românticas dos últimos anos, O Diário de Bridget Jones (2001) presta uma homenagem dupla a uma obra muito maior: o romance Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice), de Jane Austen. Primeiro quando a escritora Helen Fielding decide batizar de Mark Darcy o seu "homem ideal", em referência ao Sr. Darcy, personagem do clássico livro e que recentemente foi eleito pelas mulheres britânicas o par perfeito para um encontro, deixando para trás James Bond e o Super-Homem. E depois quando a diretora Sharon Maguire escolhe Colin Firth para interpretar o personagem, brincando com o fato de que Firth viu sua carreira deslanchar quando deu vida ao Sr. Darcy na minissérie televisiva Orgulho e Preconceito, em 1995.

Se ainda não entendeu a importância da obra para os ingleses, basta dizer que os súditos da Rainha elegeram Orgulho e Preconceito o segundo livro mais importante de sua literatura, atrás apenas de O Senhor dos Anéis.

Se ainda não entendeu a importância da obra para as comédias românticas, basta dizer que no fim do século 18, Austen criou a história de uma jovem inteligente, sincera e teimosa que conhece um homem aparentemente inacessível, vê o relacionamento entre os dois passar por problemas que separariam qualquer casal para sempre e termina tudo com declarações de amor eterno.

Esta adaptação que surge agora pelas mãos de Joe Wright, estreante no cinema, nada tem a ver com os filmes de meg ryans e hugh grants. Os cenários bucólicos, as incessantes reverências e a linguagem mais pomposa retratam a época em que o livro foi escrito. Dias em que o primeiro trabalho de uma mulher era arranjar um marido rico e assim não precisar trabalhar mais. Um período em que casamentos eram arranjados com bebês ainda nos seus berços.

Sem homem algum em casa além do seu marido, a Sra. Bennet (Brenda Blethyn) está desesperada para ver suas cinco filhas casadas e seguras. As meninas, por sua vez, sabem da importância de conseguir um marido que lhes garanta um lar, pois quando seu já velho pai (Donald Sutherland) falecer, as mulheres não terão direito aos seus bens, que serão todos herdados por um primo distante, Sr. Collins (Tom Hollander).

Por isso, a chegada do solteiro Sr. Bingley (Simon Woods) à região causa alvoroço na família. No baile de apresentação, ele não demora para se encantar pela mais velha das Bennets, Jane (Rosamund Pike). Enquanto as três mais novas pulam e dançam de um lado para o outro, Elizabeth (Keira Kightley) tenta - em vão - puxar conversa com o amigo do Sr. Bigley, o sério Sr. Darcy (Matthew Macfadyen).

A forma como o aristocrático Sr. Darcy rejeita Elizabeth e toda aquela experiência no meio do "povo" é uma das características da obra de Austen, que mostra a barreira de castas, geralmente caricaturizando membros das classes altas e dando aos menos abastados a missão de fazê-los descer dos seus pedestais, humanizá-los.

Não imagine, porém, um parado drama de época. Orgulho e Preconceito tem elementos cômicos e ótimo ritmo de narração, com os personagens sendo construídos ao longo da história, o que fazem os minutos passarem muito rápido. Em uma das mais belas passagens, o baile no palacete dos Bingley, a câmera sem cortes passa por vários aposentos, acompanhando diversos personagens, interessante técnica como mostrado no recente Soy Cuba. Ótima também é a cena de dança entre Elizabeth e Darcy, quando as trocas de olhares e concentração dos dois "esvazia" o salão.

Se as mulheres suspirarão com Sr. Darcy, os maridos, namorados e acompanhantes também não terão muito do que reclamar. A ex-bond girl Rosamund Pike está muito bem fotografada e Keira Knightley enfim prova que não é apenas a "it girl" (ou garota da vez), como dizem os norte-americanos. Muito mais charmosa do que realmente bonita, a inglesa conseguiu com este filme sua primeira indicação ao Oscar. Há um certo exagero aqui, mas como todos sabemos que a Academia não premia apenas a atuação, mas também a popularidade, Knightley não deixa de ter os seus méritos.

A versão exibida no Brasil, com 127 minutos, segue o puritanismo do livro e não contém uma cena que nossas mulheres modernas (mas ainda bastante românticas) adorariam ver. Para não correr o risco de perder audiência no importante (leia "rico") mercado norte-americano, que não aceitaria um final tão "europeu", foi exibido nos cinemas do Canadá e Estados Unidos uma versão 8 minutos mais longa e com um final, digamos, mais açucarado, algo que os fãs de Austen condenam.

Não é à toa que grande parte da publicidade em torno da nova versão filmada de Orgulho e Preconceito discorra sobre os belos cenários e a fotografia, já que essas são de longe as melhores coisas em um filme que consegue transformar a ágil sátira de Jane Austen em um romance gótico pesado.

O diretor Joe Wright e a roteirista Deborah Moggach parecem ter confundido Austen com as irmãs Bronte, com suas tramas recheadas de amantes desafortunados em um cenário de paisagens selvagens e tempestades rudes. Ao tirar da história a intrincada moldura de observação social do fim do século 18, o romance vira um melodrama romântico, com pouca crítica social.

Várias das cenas mais conhecidas do livro foram incluídas nesta versão filmada, mas os romances entre Jane e Bingley e entre Elizabeth e Darcy não têm ritmo nem razão, já que o tema da sátira de Austen - o sistema de classes inglês, principalmente como as mulheres eram tratadas - é reduzido ao mínimo.

A imperiosa Lady Catherine de Bourg, interpretada por Judy Dench, recebe mais espaço na tela do que o necessário, enquanto pouco é dado a Donald Sutherland, que faz o papel do sr. Bennet, e que consegue apenas mostrar-se dócil. Sem os insights sutis e espertos de Austen, deve haver uma razão para Darcy se apaixonar por Elizabeth, só que neste filme não se pode imaginar qual seja ela.

Syriana



Nota: 6

Filho de jornalista e opositor do governo Bush, George Clooney fez a Section Eight, sua produtora montada em parceria com o cineasta Steven Soderbegh, trabalhar bastante no último ano em temas caros ao seu xará do mal. Primeiro foi a liberdade de expressão em Boa Noite e Boa Sorte, que o próprio Clooney dirigiu. Agora são os meandros econômicos e políticos de Syriana - A Indústria do Petróleo, produzido e protagonizado pelo astro.

Ambos os filmes são palavrosos, o que não é de se espantar. Tratam de assuntos incomuns ao grande público; há uma grande carga de didatismo aí, de cerimônias para inteirar o espectador do que se passa na tela. No caso de Boa Noite e Boa Sorte, isso se encaixa à linguagem: a palavra é a própria matéria-prima do âncora de TV. No thriller tenso Syriana, a narrativa embola com a quantidade de personagens e informações. Muita gente fala rápido, discursa e discute demais. Prepare-se para apurar os ouvidos ou então para não desgrudar os olhos da legenda.

Não por acaso, quem assina a direção é Stephen Gaghan (Sem Pistas), mais conhecido como o roteirista de Traffic. Adaptação livre de See No Evil: The True Story of a Foot Soldier in the CIA's War on Terrorism, livro de memórias do operativo de baixo escalão da CIA Robert Baer, Syriana é o típico caso de um texto caudaloso que tem dificuldades em se traduzir em imagens. E como Traffic, painel completo do mercado de drogas, Syriana tenta tocar todas as extremidades do negócio petrolífero. Vai das fusões de megacorporações à luta pelos poços, passando por conchavos políticos e atividade da agência de espionagem, até a catequese de um homem-bomba e o processo de coroação e derrubada de um emir.

A sinopse dá uma idéia da complexidade do roteiro. Clooney vive Bob Barnes, espécie de alter-ego de Bob Baer. Especialista em Oriente Médio há duas décadas, herói do famoso e intrincado seqüestro terrorista de um avião no Líbano em 1985, Bob não é um santo. Troca arsenal com terroristas em favor de cooperação. Numa de suas ações, porém, uma arma vai parar em mãos erradas. A CIA vira alvo do noticiário. Bob é colocado de molho. Até que surge uma nova tarefa: caçar um principe árabe, futuro emir, que tem idéias antiimperialistas.

Enquanto isso, o advogado Bennett Holiday (o ótimo Jeffrey Wright, de Flores Partidas) é escalado em Washington para analisar a fusão entre duas companhias petrolíferas. A menor, texana, dirigida como uma família por Jimmy Pope (Chris Cooper), acaba de encontrar poços no Golfo Pérsico onde ninguém suspeitava que existiam. É evidente que a empresa abusou da corrupção e da troca de favores com os árabes - e cabe a Holiday passar a limpo essa negociata. O problema é que ele foi contratado só para posar de eficiente, ninguém quer ver nada esclarecido.

Também leva uma carreira sem manchas Bryan Woodman (Matt Damon), técnico de uma consultoria suíça especializada em fontes de energia. Em decorrência de uma fatalidade, Woodman acaba prestando assessoria ao Príncipe Nasir Al-Subaai (Alexander Siddig), primogênito do velho emir de uma nação árabe fictícia. Reformista, quando assumir Nasir vai querer para si o controle do petróleo, dispensando acordos com os Estados Unidos - é a sua maneira de sonhar com um país muçulmano mais justo, menos explorado. O governo estadunidense não pensa assim, nem a CIA, muito menos as multinacionais dos barris.

Muito abaixo dessas intrigas de alto escalão, o jovem paquistanês Wasim Khan (Mazhar Munir) acaba de perder, junto com o pai, o emprego em uma refinaria - corte de despesas feito justamente por conta da fusão. Não há perspectiva para Wasim, e é nessas horas que adolescentes não tão chegados no islamismo acabam cooptados por fanáticos suicidas em nome da causa. Pronto, está montada a teia. E o ponto de intersecção - o encontro de armas desviadas, agentes traídos, políticos rebeldes, peões desesperados - é dramático.

Esse encadeamento todo caberia muito bem numa aula de geopolítica. Ainda que nomes e nações sejam fictícios, é fácil achar um correlato real para cada um deles - o emirado, por exemplo, pode muito bem ser a Arábia Saudita onde os EUA mandam e desmandam. Syriana é também uma lição formidável de teoria econômica marxista, sobre como o dinheiro sustenta e rege todos os fatores de nossas vidas. São os petrodólares que decidem a sucessão de um governo árabe e, indiretamente, incentivam o terror.

O problema do filme, paradoxalmente, é essa sua vocação para ensinar. Faltam, em meio ao didatismo, situações que sejam apenas sugeridas, que forcem o espectador a desvendá-las. O maior e melhor exemplo de mensagem implícita é o retrato da relação entre o advogado Holiday e seu pai alcoólatra. Em meio à verborragia dos outros, os dois só trocam meias palavras. Por quê? Seria a vergonha do pai diante do emprego nada honroso do filho? O esforçado Holiday, negro, estaria disposto a quê para se fazer notar entre os brancos que dão as ordens? São questões que somos forçados a responder.

Aliás, outra das poucas indagações que ficam inexplicadas no ar é o significado do título. O termo "syriana" não é mencionado em momento algum. Segundo o próprio Baer, este é o nome usado dentre os analistas de Oriente Médio para designar uma localidade fictícia na região, mítica até, com fronteiras redesenhadas de acordo com os interesses dos ocidentais. A mensagem, no fundo, é que não importa que nome leve - Irã, Arábia Saudita, Iraque - alguém mais poderoso tratará de manipulá-lo. Se tem ouro negro debaixo do solo, é Syriana.

Assim como O Jardineiro Fiel fazia com a indústria farmacêutica, O Senhor das Armas com a Indústria bélica, e o próprio Traffic com as drogas, esse filme escolhe o petróleo para criticar. O modo com que o roteirista lida com as questões é similar nos dois filmes que escreveu. A trama vai para frente e para trás em meio a várias histórias envolvendo a indústria mundial do petróleo, a política do Oriente Médio e o terrorismo. A certa altura, todos os enredos se encontram.

Dessa vez, no entanto, os saltos geográficos e de personagens deixam o espectador confuso. Pior, os diálogos densos com significados nas entrelinhas são rápidos demais. Por isso, Syriana dá a impressão de ser uma minissérie televisiva condensada em duas horas.

Talvez Syriana devesse ser uma minissérie. Com a necessidade de correr contra o tempo, Gaghan reduz cada história e seus personagens a clichês. Bob, por exemplo, é uma figura bem familiar na ficção de espionagem. Ao engordar e deixar a barba crescer, Clooney dá ao espião alguma credibilidade, mas o personagem precisa de um filme só para ele para deixar transparecer sua personalidade.

O mesmo acontece com os outros personagens. Bennett é o caso clássico do homem que está pronto para colocar a ambição pessoal acima da ética e da moral. A briga entre Bryan e sua mulher não é convincente, já que o filme não tem tempo para mostrar esses personagens além do nível superficial. E o homem-bomba quase nem aparece. Na verdade, todos os personagens islâmicos não conseguem sair do estereótipo.

E mesmo com um enredo confuso e com muita informação despejada em cima do telespectador, o ponto positivo é que o cinema está novamente se politizando e fazendo filmes políticos como nas décadas de 60 e 70. Por mais que o filme não se sustente devido à enorme quantidade de informações, é sempre ótimo ver filmes que critiquem o imperialismo e a maneira de se fazer política nesses tempos obscuros.

09 fevereiro 2006

Munique



Nota: 9

Um dia, Steven Spielberg - na forma de seu alter-ego Roy Neary em Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) - decidiu trocar a família por um passeio numa nave extraterrestre. Provavelmente ele não faria essa escolha hoje. Com os anos, seus filmes amoleceram, se impregnaram da apologia do lar ou, inversamente, mostravam o peso que a falta de laços de sangue provoca. Munique (Munich, 2005) fala de identidade, de raízes - e fala de família.

O filme se inspira livremente em um trauma histórico. Retrata o ataque do movimento islâmico Setembro Negro que resultou na morte de onze atletas da delegação israelense durante os Jogos de 1972. A ofensiva à vila olímpica também custou a vida de cinco dos oito terroristas palestinos. Três foram presos. A trama se concentra na caçada assassina liderada pela polícia secreta de Israel, o Mossad, aos idealizadores do Setembro Negro. É uma história de vingança.

O agente do Mossad Avner Kaufman (Eric Bana, de Tróia e Hulk) estava ao lado da mulher grávida quando soube pela TV do atentado. Avner é filho de um herói israelense, e a primeira-ministra Golda Meir (Lynn Cohen) faz questão de lembrá-lo disso quando pede ao agente que lidere o contra-ataque. Na vida real, Golda Meir é uma heroína santa do sionismo; Spielberg a retrata como uma mulher de raciocínio pontiagudo. "Você é filho de um herói, mas tem as feições da sua mãe", provoca ela. Até aquele momento, Avner vacilava em aceitar a missão. Mas se ele tinha algum desejo freudiano de superar o legado do pai, foi despertado na hora.

Começa então a caçada pela Europa atrás de onze cabeças árabes - mas, para isso, Avner precisa deixar de existir. Publicamente o Mossad não pode pôr em risco seu nome. O agente é desligado da instituição, tem eliminados seus direitos de cidadão (seguro, previdência, pensão) e passa a agir clandestinamente, financiado por fora pela polícia secreta. Avner segue judeu, mas não mais israelense, oficialmente. Juntam-se a ele cinco homens: o perito em explosivos Robert (Mathieu Kassovitz, de A Isca Perfeita), o brutamontes Steve (Daniel Craig, o novo Bond), o contador Hans (Hanns Zischler) e o meticuloso Carl (Ciaran Hinds, o César de Roma), espécie de Mr. Wolf do grupo.

Spielberg se esforça para fazer, a partir daí, um thriller que faz pensar, mas sem dispensar o espetáculo. Seu lado blockbuster aflora no perfeccionismo das cenas movimentadas, no planejamento de um ataque, na explicação dos gatilhos de uma bomba, no corre-corre e no tiroteio. Mas nos intervalos tudo isso parece ter valido nada: na televisão (sempre com imagens reais de arquivo), o noticiário informa sobre novos atentados terroristas. Para cada árabe que Avner mata, outro o substitui, mais rancoroso, mais brutal e ainda morrem muitos judeus em atentados pelo mundo. Acossado, o judeu começa a questionar tudo.

A opção do diretor pela reflexão, mais do que pela ação, fica muito clara no belo pôster. Aquele enquadramento, do personagem no escuro do primeiro plano, diante do fundo iluminado, se repete bastante ao longo do filme. O que se vê, em boa parte das 2h40 de duração, são vultos. Do mesmo modo, outro recurso recorrente de câmera é captar cenas através de vidros e espelhos, pelo retrovisor de um carro, a janela de um avião ou a vitrine de uma loja. Avner é uma mera sombra (do israelense tornado clandestino, do pai) e é um mero reflexo (da violência cíclica). Ou seja, ele não é alguém.

Não é, mas procura ser. Há mais de uma maneira de se perseguir uma identidade. Para os árabes, essa busca acabará no dia em que a Terra Santa for conquistada. Muitos dizem que o filme é bonzinho com os terroristas (na verdade, a comunidade judaica fez um estardalhaço desmedido a respeito), mas o diretor de A Lista de Schindler não faz mais do que reconhecer o desejo dos palestinos, o desejo de criar raízes, ter uma pátria, ter fronteiras.

Que se abra um espaço aqui para elogiar a colaboração no roteiro do estreante em cinema Tony Kushner, ganhador do prêmio Pulitzer e do Tony Award por Angels in America. Desde já um dos melhores escritores de diálogos em atividade em Hollywood, Kushner impregna as situações mais triviais de duplos sentidos. Como ótimo exemplo, o momento em que o informante de Avner, Louis (Mathieu Amalric, o Ismaël de Reis e Rainha), diante de uma loja de artigos de cozinha, aconselha o agente a não perder a cabeça: "Junte dinheiro, compre a cozinha, ela é cara, mas casa é uma coisa cara mesmo". Casa, terra, preço, luta, tudo envolve uma mesma simbologia.

Acontece que para Avner a busca de uma identidade já deixou de envolver a questão da terra, da pátria. Uma vez renegado por Israel, uma vez desenraizado, o judeu se vira - finalmente - para a família. Ela o acompanha, sem que ele perceba. São recém-casados hospedados no mesmo hotel dos agentes. São crianças, por todo lado. É a fidelidade conjugal que, a certa altura, lhe salva a vida. É ouvir o choro da filha pela primeira vez, mas no telefone. É a família no sentido fraterno, do "papa" que não vende o alvo por enxergar ali um segundo filho. Aparentemente banal, a cena redentora da semeadura do jardim, quase no final do filme, é emblemática. Avner enfim aprende que a casa não é uma bandeira. A casa é onde o coração está.

Não que isso baste, não que isso resolva o conflito entre muçulmanos e judeus, mas para começo de conversa - neste que é o melhor filme de Spielberg na última década, talvez o mais contundente e maduro da sua carreira - já é um grande alento.

Crime Delicado



Nota: 7

Conhecido e respeitado pelos policiais Os Matadores (1997), Ação Entre Amigos (1998) e O Invasor (2001), o paulistano Beto Brant surpreende outra vez em Crime Delicado (2005).

Apesar do título do filme, no entanto, a surpresa da vez não é pela seqüência de sua trilogia de dramas policiais. Brant apresenta em seu quarto longa-metragem uma equilibrada e autoral exploração da arte, do fetiche, e amplia de forma sensível seu espaço e relevância no cinema nacional. Trabalhando em cima de temas como corpo, beleza, estética, arte, o diretor vai além do que se esperava dele. Vemos um Brant flertando com outros tipos de cinema, como outras estéticas, o que acaba deixando o filme bem interessante.

Crime Delicado é também o primeiro filme de Brant que não é baseado em uma história de Marçal Aquino, escritor de todos os seus filmes anteriores. Apesar de co-adaptado por Aquino, o longa tem como base o romance de Sérgio Sant'Anna. A idéia de levá-lo para o cinema partiu do produtor e protagonista Marco Ricca, que comprou os direitos e convidou o cineasta, com quem havia trabalhado pela primeira vez em O Invasor, a realizá-lo.

O resultado é excepcional. A história se inicia com um crítico de teatro famoso (Ricca), que se apaixona pela musa de um artista plástico (Lilian Taublib). Mas ao tentar conhecê-la melhor e ser apresentado à obra do pintor (Felipe Ehrenberg), o jornalista - dono de um conhecimento meramente teórico sobre o amor, obtido através das peças que critica - entende que a mulher é prisioneira de uma relação exploratória. O artista aproveita-se da deficiência física dela para pintar suas obras, algo que o crítico considera pornográfico e decide impedir que continue.

É extremamente prazeiroso descobrir como o longa direciona o público, ora a compactuar a visão da arte do crítico, ora a condená-lo. A reflexão é inevitável aos que caem na armadilha do cineasta e extremamente bem-vinda.

Soma-se ao roteiro mordaz a impecável direção de arte: a fotografia (Walter Carvalho, excelente), a iluminação, os cenários, tudo evoca uma montagem teatral, a especialidade do personagem principal, colocando-o como um ator dentro de sua própria peça. As atuações seguras de Ricca e dos desconhecidos - e corajosos - Lilian Taublib e Felipe Ehrenberg também devem ser exaltadas. Brant os conduz com enorme naturalidade, apesar do início um tanto forçado por parte dela.

Primeiro existe Antonio, severo crítico teatral, e as peças que vê. Há o olhar, primeiro, e o juízo, em seguida. Antonio é, em seu negócio, um homem poderoso, na medida em que de seu olhar depende o destino não só de espetáculos como de carreiras.
Mais consciente do seu poder que de seus limites, esse homem descobre que o olhar pode ser recíproco. No espetáculo que se transporta do palco para um bar, enquanto observa o mundo, também é observado.

Inês diz que Antonio a olhava. Antonio diz o inverso. Quem olhava para quem? Seus olhares se cruzam para dar origem à estranha aventura que o envolve com essa mulher, cuja característica mais marcante é não possuir uma das pernas.

Já no primeiro encontro ela pergunta a Antonio o que ele primeiro observa nas mulheres. Ora, uma perna a menos não é coisa que se deixe de observar. Antonio deixa-se fascinar. O que o arrasta para ela, precisamente? Existe a hipótese de que, em busca da perfeição estética, esse homem se deixe encantar pelo seu contrário: pela falta, pela impossibilidade. Inês não deixa de ser como essas estátuas antigas, cuja perfeição imaginamos com maior desenvoltura quanto lhes faltam braços.

Ou ainda Inês introduz a ruína e a desordem na vida desse homem cerebral, porém amputado do mundo. O que é a beleza, afinal? Ou seja, o novo filme de Beto Brant nos fala de estética e pode mesmo ser visto como uma apaixonada discussão sobre a arte e seu significado neste mundo. Ora, o mundo que Antonio é dado a percorrer parece todo o tempo contrapor-se ao ideal de beleza. A começar pelos quadros de que Inês é modelo, sem dúvida, passando por vernissages, conversas de boteco, discussões judiciais - tudo indica que estamos diante de um mundo em decomposição, ruínas que a cada passo vão marcando o rosto a princípio quase angelical do crítico.

É claro, críticos não pairam acima das obras - e de certa forma Antonio deverá pagar por sua soberba de intelectual. Afinal, sua obra - seu amor por Inês, que embute provavelmente o desejo de reconstruí-la - revolta-se contra esse desejo tirânico, preferindo entregar-se ao pintor que a quer tal qual, que compreende seu corpo, que sabe vê-la, enfim.

A vida, porém, é em preto-e-branco. Real é o que o palco ilumina. Se o crítico também é vítima dessa paixão, por que é patético e indevido seu desejo pela musa, enquanto que a promiscuidade entre diretor e atriz, ou pintor e modelo, é celebrada como compartilhamento sagrado da criação?

É que o crítico chega tarde demais. Apaixonado pela falha, e não pela perfeição, é um invasor que estupra a musa em sua própria casa, já no fim da jornada, não com seu desejo, mas com suas dúvidas. E, no entanto, só ele traz o olhar de fora, polinizado pelos improvisos bêbados da vida cotidiana. E se acaba misturando o que vê com o que vive, perdendo a objetividade, isso depõe a seu favor: não se pode falar do amor sem se apaixonar.

Mesmo que Beto Brant acabe soltando os fios da trama, como nos filmes de Lynch, propondo o depoimento direto para sair desse labirinto de espelhos, é sempre pelos olhos de fechadura do crítico que o público vê o filme, e nos planos cuidadosamente estáticos pode se contagiar pelo deslumbrante desempenho de Matheus Nachtergaele, de Maria Manoela, de Zecarlos Machado.

Um estranho e complexo filme, o mais desenvolto de Beto Brant, cuja imagem final se propõe como um enigma surrealista. O "corpo divergente" de Inês, um pouco à maneira dos filmes de Cronenberg, não deixa de ser esse corpo mutante que põe em parafuso essa ordem de que a arte, afinal, é uma parte significativa.

08 fevereiro 2006

O Sol de Cada Manhã



Nota: 8

No Brasil, a profissão de homem ou mulher do tempo é reservada para rostos bonitos em busca de uma vitrine, um trampolim em suas carreiras. Afinal, quase ninguém leva o assunto a sério por aqui. Na verdade, não são poucas as vezes em que se ouve brincadeiras como "vi na TV que vai fazer sol, por isso trouxe meu guarda-chuva". Mas nos Estados Unidos e Europa, o tema é encarado com seriedade e, por incrível que pareça, eles geralmente acertam as previsões.

É isso que faz de David Spritz (Nicolas Cage) um cara tão conhecido em Chicago. Ele é o homem do tempo de um canal de TV local e faz parte do seu cotidiano ser abordado na rua com perguntas do tipo "qual a previsão para hoje?" ou "qual será o dia mais frio desta semana?". O detalhe que seus telespectadores não entendem é que apesar do sorriso quilométrico exibido na telinha, ele não está satisfeito com o seu trabalho. Aliás, ele não está satisfeito com a sua vida e este é o tema central de O Sol de Cada Manhã (The weather Man, 2005).

Sondado por uma grande rede de TV sediada em Nova York, David passa seus dias lamentando as chances perdidas. Ele falhou como marido e hoje tem que aturar um gordinho almofadinha ao lado da sua ex-esposa (Hope Davis). Deixou a desejar também com seus dois filhos. O mais velho (Nicholas Hoult, de Um Grande Garoto) foi pego com maconha e agora passa parte do seu tempo livre em um programa de reabilitação. A menina (Gemmenne de la Peña, "filha" de Julia Roberts em Erin Brockovich) está claramente acima do seu peso e sofre de depressão.

David também não se sente nem um pouco à vontade ao lado de seu pai (Michael Caine), famoso escritor ganhador de um prêmio Pulitzer, mas é o velho quem vai guiá-lo neste delicado momento de sua vida. Caine interpreta Robert de uma forma bastante serena, dizendo suas frases em um baixo tom que torna seu personagem numa espécie de sábio. Já Cage consegue como poucos construir em menos de duas horas um personagem com quem você poderia realmente esbarrar na rua, alguém que sofre com os diferentes humores normais na vida real. Indo do carente e atencioso ao nervoso em poucos segundos.

Cabem também méritos ao roteirista Steven Conrad e, claro, ao diretor Gore Verbinski. Além de falas - ou pensamentos, já que o filme tem bastante narrações vindo direto da cabeça de David - afiadas como os frios ventos que cortam Chicago, o roteiro contém uma sutil crítica à cultura americana, que tanto presa a força bélica, quanto o consumismo, a gana de fazer muito dinheiro, mesmo que isso custe a sua felicidade.

Este filme, aliás, é uma interessante aposta do trio Verbinski-Cage-Caine, que vêm de blockbusters do naipe de Piratas do Caribe, A Lenda do Tesouro Perdido e Batman Begins, respectivamente. Uma pausa obrigatória para recarregar as baterias com um filme pequeno e inteligente antes de voltar a ganhar dinheiro com mais blockbusters - ou neste caso, seqüências, já que os três filmes acima ganharão novos capítulos em breve. Como diz David no começo do filme: "revigorante".

Maldito Coração



Nota: 7,5

Asia Argento poderia ter uma carreira confortável só por herdar o nome de um dos mais notáveis diretores de terror do planeta, o lendário Dario Argento. Ele é um dos criadores do giallo - em italiano, "amarelo", a cor da capa dos livros de mistério por lá, que têm uma enorme ênfase em crimes bizarros com visual barroco e perversão sexual. Da mesma forma que o Western Spaghetti de Sergio Leone brincava com os tradicionais westerns americanos de John Ford, o giallo de Argento flerta com os filmes de suspense do mestre Alfred Hitchcock.

Asia começou a sua carreira artística substituindo sua mãe, Daria Nicolodi, esposa e uma espécie de musa das idéias sanguinolentas de Dario em suas fitas de terror. Como atriz, chegou a recusar papéis em 007 – O Mundo Não é o Bastante e Missão: Impossível 2 para seguir uma carreira independente das concessões do sistema. E segundo ela, a bobagem Triplo X foi uma experiência, uma forma de aprender como funcionava o esquema de superprodução nos Estados Unidos. Mas ela ainda disse na época que poderia voltar a fazer filmes-pipoca contanto que o diretor ou o companheiro de cena a interessassem.

Mas sempre inquieta e assombrada por seus próprios demônios, preferiu seguir também a carreira de diretora. Depois de ter dirigido alguns trabalhos na Itália e curtas, ela fez seu primeiro longa-metragem, Scarlet Diva (2002). Uma produção que até parecia ser autobiográfica, por retratar uma atriz completamente ensandecida por sexo e drogas. Da mesma forma que na vida real, a personagem ficava grávida de um músico e aprontava muito. Mas em vez de mostrar uma mulher vítima do meio em que foi criada, ela nos apresentou uma figura dramática auto-destrutiva e detestável. Infelizmente o público ficou mais interessado na polêmica e nas loucuras, do que os planos ousados, a câmera voyeur e a forma simbólica que o filme foi realizado.

Agora nos chega Maldito Coração (The Heart is Deceitful Above All Things, 2004), mais um filme que vem amparado na descoberta de que o livro em que foi baseado não contava uma história verdadeira, como prometia. Um dos fatos mais comentados nesse começo de ano, é que J.T. Leroy na verdade é uma mulher e não o homem que foi sodomizado e teve que se prostituir desde a infância para sobreviver. Polêmicas à parte, isso não diminui em nada o filme de Asia. Pelo contrário, ela vai fundo nessa viagem ao inferno que só poderia ter sido realizada por alguém que conhecesse esse universo tão asqueroso, mas que consegue atrair a atenção do público por seu conteúdo profano e repugnante.

O nome do filme original foi tirado de uma passagem da Bíblia, Jeremias capitulo 17, versículos 9 e 10: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; Quem o conhecerá? Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos; e isso para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas ações”. Daí, já se percebe quais eram as intenções de Asia. Tentar mostrar que até em atos asquerosos, pode existir amor, e ainda questionar se a existência desse sentimento pode perdoar as atrocidades cometidas.

O estilo de filmar de Asia é muito interessante. A cada momento aparece uma metáfora visual na construção do enredo. Isso colabora na criação de um mundo surrado e reprimido. As imagens rebuscadas e repletas de signos pontuam as mudanças de ritmo do roteiro. Esses recursos são necessários para suavizar uma história polêmica.

Se o livro no qual se baseia era composto por 11 histórias, o roteiro escrito pela própria diretora amarra todas elas muito bem, mostrando a infância do narrador com sua mãe problemática e seus avós religiosos fanáticos. No filme, Jeremiah é filho de Sarah, menina rebelde que foi expulsa de casa aos 15 anos. O garoto acaba indo parar num orfanato. Aos 7 anos ele é resgatado pela mãe, que não tinha mudado em nada a sua maneira de ser. A partir daí, ele entra em contato com o mundo apocalíptico dela: drogas, prostituição e abusos de todas as formas e maneiras, chegando até a ser violentado pelo namorado da mãe e travestido de menina para se passar como sua irmã.

Durante a trama, Jeremiah é interpretado por três atores durante a projeção. Aos 7 anos por Jimmy Bennett e aos 10 anos pelos gêmeos Dylan e Cole Sprouse. Vale ressaltar o trabalho de Asia com os três garotos que interpretam Jeremiah, principalmente os gêmeos, que o público só percebe que eram dois atores ao final da sessão, quando começam os créditos.

Asia interpreta de forma realista Sarah, a mãe. Em certos momentos ela parece um clone da roqueira e "atriz" Courtney Love, esposa do falecido Kurt Cobain, do Nirvana. Os outros personagens são preenchidos por vários rostos conhecidos pelo público. Certas escolhas foram ótimas, devido ao assunto tratado. Ver Winona Ryder, depois dos problemas judiciais, no papel de uma terapeuta pública maluca é, no mínimo, irônico. Peter Fonda teve seus motivos para entrar no projeto. Ele lidera uma instituição que ajuda crianças molestadas. O cara foi hippie e contestador nos anos 1970 e participou do road movie Sem Destino (1969). Assim, vê-lo interpretar o avô religioso é inusitado. Completando o elenco temos ainda Ornella Mutti no papel da avó e as participações de Jeremy Sisto, Jeremy Renner, Matt Shulze, Ben Foster, Kip Pardue, e do roqueiro Marilyn Manson como os homens na vida de Sarah. Michael Pitt também faz uma pequena, mas boa participação. A ótima trilha sonora é composta por Billy Corgan, ex-líder do Smashing Pumpkins.

Para muitos o filme será encarado como um desfile de grosserias e abusos inimagináveis a uma criança. Mas quem tiver o cuidado de ir além, perceberá que todos os personagens não são monstros, mas sim adultos perdidos, que precisam de ajuda médica. Seus atos são cometidos por doença e não maldade. Asia está soberba no papel de Sarah. Seu amor por Jeremiah é o ponto alto do filme. Um sentimento que será o combustível de tanta maldade. Vemos isso numa cena em que Sarah desmaia num jardim. Jeremiah a abraça e diz que irá protegê-la. Exausta, Sarah o beija e aceita esse carinho. A imagem é ao mesmo tempo afetuosa e aterradora. É um momento de conexão entre mãe e filho, mas sabemos que Sarah não irá se modificar. Eles têm uma relação simbiótica que é tudo, menos saudável, mas é a única que possuem.

O talento de Asia é grande na direção. Ela conta a história com metáforas, simbolismos e uma ousada edição. Por nenhum instante ela apela para imagens nojentas, mas mesmo assim ficamos nauseados com as situações apresentadas. É um grande soco na boca do estômago, mas realizado com muita maturidade. Asia ainda abusa das gelatinas coloridas e cria uma atmosfera rústica com a câmera de Eric Alan Edwards. Em alguns momentos traumáticos ela usa dois passarinhos animados, numa forma de homenagear Terror na Ópera, uma das obras-primas de seu pai. Ao mesmo tempo é uma substituição empírica dos brinquedos que Jeremiah nunca teve ou terá.

Maldito Coração irá despertar reações de amor e ódio por seu conteúdo perverso. Mas será impossível não refletir ou debater sobre o filme. Seja pela farsa criada em torno de J.T. Leroy ou pelo brilhante trabalho de direção de Asia Argento.

02 fevereiro 2006

O Assassinato de Richard Nixon



Nota: 9,5

Quem poderia imaginar que um ator que era conhecido como o marido nervosinho de Madonna se tornaria um dos maiores intérpretes dos Estados Unidos. Sim, Sean Penn é um verdadeiro diamante raro que é lapidado a cada novo personagem que encara na telona. Seu mais novo trabalho é O Assassinato de Richard Nixon (The Assassination of Richard Nixon, 2004) um filmaço que promete chegar à lista dos melhores no final do ano.

A trama é baseada na história verdadeira de Samuel Bickie (o sobrenome foi mudado para resguardar a família) que tinha como objetivo seqüestrar um avião para atirá-lo contra a Casa Branca. Bickie é um vendedor que detesta mentir. Ele acredita que o consumidor não pode ser enganado, e que tudo deve ser dito. Uma incoerência por si só, para quem segue essa profissão. Essa atitude o leva a ser despedido da loja de pneus de seu irmão. Ele também está perto de perder seu trabalho numa loja de venda de móveis. Um certo dia, seu chefe, Jack Jones, comenta que o maior vendedor do planeta é o presidente norte-americano Richard Nixon, que nas duas vezes que se elegeu presidente, fez a mesma promessa: acabar com a guerra do Vietnam. Além de continuar o confronto, ainda mandou mais 100 mil soldados para as selvas asiáticas.

Bickie tem um sonho de ter o seu próprio negócio. Uma maneira de tratar o consumidor com respeito. Ele tenta um empréstimo no banco para tocar uma idéia esdrúxula de uma loja de pneus dentro de um ônibus. A loja iria até ao consumidor. Seu parceiro na empreitada é Bonny Simmons, um negro que tem uma mecânica de automóveis. Ele acaba não conseguindo o empréstimo por causa da raça do seu sócio. Para completar a desgraça, Bickie está separado de sua mulher e filhos. Ela trabalha num bar usando um vestidinho curto por exigência da gerência. Isso incomoda bastante Bickie. Mas o pior, é que Marie está saindo com outro homem. Uma pessoa bem mais abastada financeiramente que ele.

A vida de Bickie afunda cada vez mais. A todo instante que ele está vendo televisão, em completo estado de depressão, surge Nixon falando sobre a guerra e se explicando sobre os escândalos do seu governo. Nessa época, o presidente aparecia muito na TV, por causa do escândalo Watergate. Bickie conclui que a única maneira de mostrar ao país que tudo está errado, é matando o maior mentiroso da nação. No caso, Nixon.

Ele começa a planejar o assassinato. Suas idéias e o plano nos são apresentadas numa série de fitas que Bickie grava com intento de enviá-las para o músico Leonard Bernstein. Isso acaba servindo como uma espécie de narração do que estava acontecendo dentro de Bickie. Ele queria provar que até um perdedor como ele, poderia fazer a diferença. De um completo zé ninguém, que entraria para a história como alguém que tirou a vida do homem mais influente do mundo Mas até nisso, ele acaba falhando e se torna uma referência de pé de página nos casos de assassinatos da história norte-americana. Uma vez perdedor, sempre um perdedor.

E conseguirmos acreditar em tudo isso, por causa da performance fantástica de Sean Penn. Ele constrói todas as nuances do personagem. A cada novo soco que Bickie recebe, Penn vai se transfigurando. O crescimento da loucura do protagonista vai sendo demonstrado com mínimos detalhes, por meio dos vários recursos técnicos que Penn leva na manga. Sua postura e modo de andar - com os ombros caídos e o peito encolhido - durante toda a projeção impressionam.

O resto do elenco não está menos formidável. Jack Thompson, como Jack Jones, também é de tirar o fôlego. Vê-lo em cena com Penn é uma obrigação para quem almeja algum dia seguir a carreira de ator. Don Cheadle interpreta Bonny Simmons também de forma magnífica. Sua atuação é baseada no naturalismo. A única que não desenvolve seu trabalho da maneira que poderia é a talentosa Naomi Watts no papel de Marie, esposa de Bickie. Mas isso não quer dizer, que esteja ruim, só é engolida por Penn em todas as cenas em que aparecem juntos. Bem diferente de 21 Gramas, trabalho anterior da dupla. Michael Wincott completa o grupo. Ele está ótimo e irreconhecível na pele do irmão judeu de Bickie.

Mas o destaque não está só nas interpretações. O diretor Niels Mueller faz sua estréia de maneira arrebatadora. Ele não cai na armadilha de tentar fazer uma fita contemporânea passada nos anos 70. Ao focar Penn em toda a projeção ficamos com a impressão de estarmos assistindo a um filme realmente produzido nos anos 70. Podemos notar uma influência de Um Dia de Cão (1975), de Sidney Lumet, A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola, ou mesmo Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, nas tomadas lentas e na própria cadência do ritmo.

Uma outra característica de Mueller é não tentar glorificar as ações de seu protagonista, nem forçar uma empatia com seu ato terrorista. Ao acompanharmos todos os estágios de sua depressão, ele acaba se tornado real. Por nenhum instante conseguimos condenar seus atos. Bickie pode até ser comparado ao personagem Willie Loman da A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. O cansado trabalhador que se torna impotente e invisível diante da máquina do progresso. Ambos são vendedores, ofuscados por um irmão bem sucedido e planejam seu próprio destino. Com uma pequena diferença. Pelo menos Loman conseguiu atingir o seu quando acertou seu carro numa árvore. Bickie manteve a sua incompetência até o último momento. A câmera de Mueller vai se tornando instável no mesmo momento e proporção que a atuação de Penn.

O roteiro foi escrito em 1999 por Mueller. No primeiro rascunho era uma ficção sobre um homem perdido, em que seu ato de violência passa despercebido numa sociedade cada vez mais acostumada a agressão. Durante sua pesquisa, ele encontrou a história de Bickie e notou a semelhança no argumento. Optou em contar a história da tentativa de assassinato. Tanto que nas últimas cenas ele usa as notícias da época e relatos do FBI para demonstrar o verdadeiro ataque aéreo. Os telejornais que aparecem no final, são os próprios que foram levados ao ar sobre o ocorrido. O trabalho de edição é tão perfeito que parece ter sido feito para concluir o filme.

Ao término da sessão é impossível não refletir sobre as intenções de Mueller. Ele nos apresenta uma perversão do sonho americano. Bickie acreditava que seus problemas acabariam se ganhasse muito dinheiro. Desta forma, ele conseguiria recuperar sua família e seu auto-respeito. Muitas pessoas também pensam assim e isso faz parte do "sonho americano". Ao se sentir incapaz de conseguir riquezas, Bickie resolve deixar sua marca na sociedade de maneira abominável. Ele tinha certeza que essa era a única maneira de acabar com a corrupção da América. E foi com essa mesma visão totalitária que os seqüestradores realizaram os ataques de 11 setembro em 2001. Infelizmente, esse tipo de ação está longe de acabar. Pois a semelhança que o governo Bush vem tendo com o de Nixon, resultará no surgimento de muitos "Sam Bickie" pelo mundo.

O interessante é que esse filme e mais dois que estreiaram na mesma época (Paradise Now e As Aventuras de Dick & Jane) apesar de serem tão distintos e com histórias tão diferentes, se completam. O discurso do rico engolindo o pobre, da terra da prosperidade, da abundância, da alienação, da exploração, da loucura, estão presentes nos 3 filmes. No primeiro um homem enlouquece por ter sido jogado à margem da sociedade, no segundo, dois palestinos entre a cruz e a espada, por terem vivido a vida toda à margem dos colonos ricos e exploradores, no terceiro, um casal resolve roubar, pois foram jogados à margem do mercado de trabalho. As estréias foram quase que simultâneas aqui no Brasil, o que nos faz pensar: será que o cinema está começando a criticar mais, a questionar esse mundo de aparências e mentiras onde vivemos? Será que o papel subversivo do cinema, finalmente vai começar a ser mais explorado? É o que espero. Longa vida ao cinema crítico e questionador desse grande teatro da vida que vivemos, nessa nossa representação diária.

Paradise Now



Nota: 9

Ao acompanharmos as notícias sobre os conflitos entre judeus e muçulmanos na região de Israel que envolvem os famigerados homens-bomba, imediatamente nos questionamos sobre os motivos que levam alguém a explodir-se por uma causa.

"Fanatismo" é a primeira palavra que vem à cabeça, geralmente seguida por imagens estereotipadas de osamas-bin-ladens genéricos, segurando explosivos numa mão e uma AK-47 na outra, enquanto gritam "Alá" e pressionam o botão da bomba. Paradise Now (2005), filme do israelense Hany Abu-Assad, acaba com tudo isso.

Assad escolheu uma forma interessante de abordar o conflito, quase que exclusivamente visto pelos olhos endinheirados dos israelenses judeus: através do ponto de vista dos próprios homens-bomba. Não se trata, no entanto, de um filme que promove o ódio. Pelo contrário. Tenta explicar como pessoas tão normais quanto você e eu podem sujeitar-se ao martírio.

Na trama, Said (Kais Nashef) e Khaled (Ali Suliman) são dois palestinos amigos de infância, escolhidos, quase que sem aviso, para um ataque suicida. Eles aguardavam sua hora há vários anos e, quando ela chega, ambos têm tempo apenas para passar a última noite com as respectivas famílias. Mas seus instrutores terroristas avisam que ninguém pode desconfiar do fato. Assim, os agradecimentos são deixados para um vídeo. Durante suas últimas horas de vida, os rapazes mudam de sentimentos e intenções algumas vezes. Um aceita de imediato e fica muito feliz com a tarefa recebida (um presente de Alá), mas depois mergulha em dúvidas sobre a ação. Já o outro, filho de um colaborador executado como traidor, não pretendia perder a vida tão cedo, mas depois não hesita em seguir seu destino.

A produção não toma partido, mas mostra que a causa terrorista está ultrapassada. Retrata os suicidas com humanidade, mas introduz personagens que os fazem pensar, como Suha (Lubna Azabal) uma ativista da luta pacífica que percebe o que vai acontecer e tenta dissuadi-los debatendo. Ela é filha de um famoso suicida, que depois da morte do pai, vai morar na Europa, conhecendo outras realidades, outras vidas. Seu ponto de vista é meio ocidental, meio bom senso, enquanto que os rapazes acabam sendo mostrados como jovens ignorantes. Eles não sabem o que fazem, as lideranças escolhem por eles seu destino, e a palestina-ocidentalizada acaba sendo a voz da sabedoria, que diz que isso não leva a nada. Importante também é a figura da mãe de Said (a maravilhosa Hiam Abbass, de A noiva da Síria e Free Zone), que dá ao filho uma nova visão sobre os chamados "traidores". O filme não mostra os suicidas como pessoas loucas, más, mas mostra-os como pessoas comuns, que tem boas intenções, (acabar com o colonialismo judeu sobre a palestina) mas que são usadas por terceiros.

Algumas imagens são especialmente emblemáticas na produção. Partindo da pequena e devastada cidade fronteiriça de Nablus, com fachadas e edifícios destruídos, Said e Khaled chegam à moderna metrópole de Tel Aviv para cumprir sua missão. De dentro do automóvel que os transporta, observam pessoas inocentes nas praias e ruas. O contraste das ruas destruidas e da vida pobre dos palestinos, com a riqueza e a ocidentalização dos judeus, é muito forte. É algo que nos faz pensar. Impossível demonizar seu inimigo assim de tão perto.

Um pequeno e poderoso filme, que prova que libelos pacifistas podem vir das fontes mais improváveis possíveis. Afinal, criatividade é necessária para mudar este planeta e a imagem da pombinha branca já deu no saco. Prega a paz sem demonizar o tradicional inimigo e sem impor suas condições.

A Dama de Honra



Nota: 8

O parisiense Claude Chabrol terá eternamente seu nome gravado no mármore da sétima arte.

Como crítico da influente revista francesa Cahiers du Cinéma, abriu os olhos do mundo para a genialidade de cineastas até então considerados meramente bons realizadores de produções comerciais, como Howard Hawks e Alfred Hitchcock. Como cineasta, deu o pontapé inicial, às vésperas dos anos 1960, para o revolucionário movimento Nouvelle Vague ao lado dos também colaboradores da publicação François Truffaut, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard e Eric Rohmer.

A partir daí, Chabrol trabalhou em mais de cinqüenta produções, incluindo os sucessos Um Assunto de Mulheres (Une Affaire de Femmes, 1988) e Mulheres Diabólicas (La Cérémonie, 1995). Neste último, adaptou o romance A judgment in stone, da inglesa Ruth Rendell. Em 2004, aos 73 anos, voltou a utilizar uma obra da escritora como base para um de seus filmes, A Dama de Honra (La Demoiselle d'Honneur, 2004). Nele, prova que a passagem das décadas parece incapaz de nublar seu talento ou a estética que o motiva.

A ironia, as relações entre o indivíduo e a culpa e a idéia de assassinato herdados do mestre Hitchcock continuam presentes no trabalho de Chabrol. É fantástico notar como um filme que parece comum - sobre a normalidade de uma família qualquer - é conduzido pela mão do velho mestre em direção a situações incômodas, improvavelmente plausíveis. Suas sutis pistas sobre o passado dos personagens são quebra-cabeças cuja montagem é um deleite, algo necessário para o perfeito entendimento da trama e as motivações dos protagonistas. Nada é dado, jogado. O espectador é convidado a pensar e, com isso, participa do jogo de suspense proposto.

A dama de honra do título é a bela Senta Bellange (Laura Smet - belíssima, melhor dizer), prima do cunhado do pacato Phillipe (Benoît Magimel). Ambos se conhecem durante o casamento da irmã dele e a atração é imediata. Mas enquanto os corpos conversam, brigam as mentes. As excentricidades de Senta tornam-se cada vez mais insólitas e Phillipe fica dividido entre a paixão e seu senso de responsabilidade. Ao mergulhar na vida da desconhecida, ele coloca a idéia da vida que criou para si em perigo. A incerteza das intenções dela aumentam conforme o suspense cresce, culminando num inusitado ato final que certamente provocará discussões na saída do cinema (sem falar nos protestos de alguns).

Magimel e Smet fazem um trabalho excepcional como o casal protagonista, mas o cineasta também extrai ótimas interpretações do elenco de apoio, especialmente de Aurore Clément (a mãe de Phillipe) e da jovem Anna Mihalcea (a irmã rebelde). Destaque também para a trilha sonora de Matthieu Chabrol, filho do cineasta, que parece saída diretamente de um filme de Hitchcock.

Vale lembrar ainda que um momento decisivo da película, quando Senta diz que uma pessoa não terá vivido sua vida plenamente até ter completado algumas tarefas. No cinema também é assim. Um cinéfilo não é completo até ter assistido a certos filmes. E os de Chabrol estão certamente entre eles.

As Loucuras de Dick & Jane



Nota: 7

Clyde Barrow arrastou Bonnie Parker para o mundo do crime porque a vida na Grande Depressão não estava fácil pra ninguém. No ano 2000, quando a übertransnacional em que Dick Harper trabalha vai à falência por fraudes contábeis, assim, de repente, só lhe resta pegar sua esposa pela mão e também se aventurar pela bandidagem.

O contexto econômico de 1930 era um dos protagonistas do clássico Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, 1967). De igual maneira, o cenário de quebradeira que marca o início do governo Bush é o catalisador d'As Loucuras de Dick e Jane (Fun With Dick and Jane, 2005), do diretor Dean Parisot (telessérie Monk). Não é preciso aguardar os irônicos créditos finais, que "agradecem" às finadas Enron e WorldCom, para perceber que as corporações e o presidente da nação que as legitima são o alvo da comédia.

Não foi assim no Fun With Dick and Jane original, de 1977, estrelado por George Segal e Jane Fonda, que agora Parisot refilma. Na verdade, o primeiro era bem alienado. Nada de assaltos com máscaras de ex-presidentes, naquela época. O Dick de Segal precisava roubar porque a Jane de Fonda gastava demais o que os dois não tinham. Hoje, Dick e Jane surgem mais como seres conscientes e menos como consumistas (mais isso ainda existe no novo filme, afinal, são norte-americanos, e não podemos esperar uma crítica contundente demais ao seu modo de vida). Novos tempos conturbados pedem atitude.

Ainda mais quando a sua casa, sua poupança, enfim, sua vida, estavam forrados de ações da empresa que foi à bancarrota. O então executivo promissor Dick (Jim Carrey) perde absolutamente tudo quando a Globodyne fecha as portas. A primeira reação é buscar um emprego equivalente, mas o mercado não ajuda. Até quando se mete no meio dos mexicanos para arriscar um trampo temporário Dick acaba confundido com um imigrante. Enquanto isso, a grama do vizinho cresce bonita. Até pegar a pistola de brinquedo do filho e partir para os assaltos, é um passo. Dick encara a coisa mais como revolta do que como desespero. Jane (Téa Leoni) vai atrás.

Carrey até que está contido no papel principal. Sabe se esborrachar na hora certa, sem exageros. As caretas continuam lá, mas o ator está menos cartunesco. Não parece a mesma pessoa, por exemplo, de Desventuras em Série (2004), seu trabalho anterior. Acompanha-lhe, com menos vocação para a comédia rasgada, a Sra. Duchovny. A sorte de Téa Leoni, e de ambos, é que o material escrito é dos melhores. O roteirista Judd Apatow mostrou em O Virgem de 40 Anos que sabe encadear gags. Não é tão bom desenvolvendo tramas, mas basta um diretor que tenha senso de timing para as piadas de Apatow ganharem vida plena.

Os dois primeiros terços do filme são um exemplo dessa conjunção bastante feliz entre texto, ritmo e imagem. Em tempos de recessão, filas de candidatos a empregos parecem uma multidão de Agentes Smiths clonados - e a maneira como Parisot filma a cena nos remete rapidamente a Matrix. Outros comentários inteligentes aparecem de forma discreta, seja na TV quando Bush discursa a favor das corporações, seja num assalto em que os dois chegam fantasiados de Clinton e Hillary. Essa porção ágil, muito bem editada de filme termina com o ápice da empreitada do casal no crime. Daí tudo muda.

A partir do momento em que Dick é amargamente relembrado da falência da Globodyne, a impressão é que começa um filme diferente. Nada contra a virada, ela já estava implícita lá no começo. O problema é que os realizadores não se encontram nessa nova proposta, espécie de thriller pastelão. Não cabe aqui revelar os pormenores. Só vale dizer que o timing se dilui, as cenas se estendem demais, Carrey cansa, os personagens se perdem, a câmera de Parisot termina indecisa.

Ainda há ótimas piadas a seguir - como aquela protagonizada por Alec Baldwin, no papel do canalha ex-presidente da Globodyne, que parodia a célebre declaração indignada de Bush, sobre terroristas, no meio de um jogo de golfe ("Isso me deixa muito irado... Agora veja essa tacada"). Lembra? É a frase que Michael Moore reproduziu em Fahrenheit 11 de Setembro.

É sempre ótimo ver gente com algo a dizer no meio do escapista mundo do consumo descartável, mas o fato é que As Loucuras de Dick e Jane não segura o tranco até o final. Não é, em resumo, um Bonnie & Clyde.