17 dezembro 2004

Cleópatra



Nota: 6

O road movie, gênero reflexivo por excelência, serviu bem ao cinema da Retomada na sua busca por um perfil popular, genuinamente brasileiro. Nada mais normal que seja também ferramenta dos argentinos nestes tempos incertos em que o cinema vai bem mas o país segue em dilemas. No caso dos realizadores portenhos, o filme de estrada tem uma cara muito bem definida: significa deixar a redoma de Buenos Aires, hoje desmistificada, e rumar ao interior campestre, procurar entre traços indígenas e cenários bucólicos a identidade nacional perdida.

Partilham dessa idéia da "Argentina Profunda", em maior ou menor grau, filmes de estrada ou não, obras como Lugares comuns (Lugares comunes, de Adolfo Aristarain, 2002), Pântano (La Ciénaga, de Lucrecia Martel, 2001), Histórias mínimas (de Carlos Sorín, 2002), Sangre (de Pablo César, 2003) e Família Rodante (de Pablo Trapero, 2004), estes dois últimos inéditos no circuito comercial daqui. Legítimo representante das epopéias motorizadas, província após província, Cleópatra (2003), de Eduardo Mignogna, também está à procura de si mesmo.

A senhora do título ganhou esse nome - não cansa ela de explicar na tela - devido ao amor do pai pelos clássicos. A fenomenal Norma Aleandro, a velhinha de O filho da noiva (El hijo de la novia, de Juan José Campanella, 2001), empresta à personagem a sua doçura irresistível. O problema é que Cleo vive triste: resiste em empregos bissextos, os filhos todos se foram e o marido aposentado (Héctor Alterio) resmunga dia após dia com a garrafa de vinho na mão contra as desgraças econômicas da nação.

Quando jovem ela queria mesmo era ser atriz. Por isso se enche de coragem quando acaba chamada para um teste de televisão. A experiência não é das melhores - Cleo acaba consolada pela estrela de novela, Sandra (Natalia Oreiro), figura igualmente infeliz, mas por motivos opostos. Sandra tem votos de fartura, pinta como a nova estrela latina no caminho de Hollywood. Mas ela não quer nada disso. Idealista, sonha com amores verdadeiros, com um anonimato consagrador. E Sandra acaba convencendo Cleo a viajar. Rumarão à cidade natal da moça, como Thelma e Louise deixando a rotina para trás e dirigindo sem preocupações.

Antes disso, Cleópatra começa ameaçador. O fato de Alterio - par romântico de Norma no arrasa-quarteirão de Campanella - viver aqui o marido fracassado tem evidente intuito de chocar. Ao viver uma personagem que despreza o sucesso cosmético, a própria Natalia Oreiro, atriz-modelo-cantora uruguaia que deve a fama à sua beleza, renega esse passado. O recado se consolida quando Cleo petrifica-se diante das câmeras no traumático teste: esqueça o encanto das lentes e a fantasia dos finais felizes, tratamos aqui da dura realidade onde não cabe a utopia do mundo ficcional.

Começa ameaçador, sim, mas já vale aqui uma crítica: Cleópatra não é um filme uniforme. A rispidez dá lugar a uma comédia dramática quando Cleo e Sandra partem em viagem. Norma se permite, inclusive, abusar de gags cômicas. Natalia surge fotogênica em trajes e closes generosos. Mignogna negou a utopia lá no princípio, mas não verá problemas em embrenhar a história em romances açucarados, com direito a catarse em parque-de-diversões, esse ícone do melodrama clássico.

O diretor filma os anseios e os amores dos mais jovens com a boa vontade de quem, com a autoridade dos sessenta anos de idade, acredita mais em renovação do que em ceticismo. A ingenuidade no tratamento de Sandra e o final apaziguador reservado a Cleo podem desapontar quem espera um retrato mais crítico da realidade argentina, como se prometia antes. De qualquer modo, outros filmes semelhantes virão. Orgulhoso, esse povo que acredita em predestinação, muito mais do que o brasileiro, ainda refletirá muito para achar um sentido em sua existência.