17 março 2005

Hora de Voltar



Nota: 7,5

Quem assiste à série cômica Scrubs - uma das mais engraçadas da atualidade - sabe que o Dr. John "JD" Dorian (Zach Braff) não é o exemplo de pessoa normal. Excêntrico, inseguro e meio atrapalhado, ele arruma as mais diversas confusões ao lado do seu amigo cirurgião Dr. Turk e a Dra. Elliot. Pois eis que a estréia de Braff como roteirista e diretor de cinema foi uma das ótimas surpresas do Festival de Sundance de 2004.

Ao contrário do que se pode imaginar, Hora de voltar (Garden State, 2004) não é uma comédia nonsense como a série de TV da qual Braff é um dos protagonistas. Trata-se na verdade de um ótimo drama cômico independente realista norte-americano. Achou o rótulo um pouco complicado? Então entenda apenas que o filme retrata a vida de pessoas que são diferentes do que se considera normal e ao mesmo tempo muito parecidas conosco. É isso mesmo, estou dizendo que no fundo, todos temos um pouco de insano em nossas vidas.

No início da história, Andrew "Large" Largeman (Braff) aparece como um cara sem emoções. Ator e garçom em Los Angeles, ele mora longe da casa de seus pais há muito tempo, desde que foi mandado para um colégio interno. A relação com eles está longe de ser boa e sua vida é regida por um coquetel de remédios, principalmente lítio. Os medicamentos são prescritos pelo seu psiquiatra, que não por acaso é também seu pai (Ian Holm, o Bilbo de O Senhor dos anéis).

Ao saber da morte de sua mãe, Large volta para casa depois de muito tempo e tem de encarar de frente não apenas o seu pai, de quem vivia fugindo, mas também seu passado, que estava enterrado sob as pílulas. Em seu retorno a Garden State, Large revê ainda os amigos e conhece uma nova garota, Sam (Natalie Portman). A princesa Amidala da série Star Wars, que recentemente ganhou um Globo de Ouro por Closer - Perto demais (2004), dá outro show de interpretação. Sam é a cor que dá vida a Large, mesmo sendo cinza.

O elenco todo é cheio de surpresas. Boas surpresas! Além de Braff, Portman e Holm, há espaço para Peter Sarsgaard brilhar como Mark, o ex-melhor amigo que acabou virando coveiro. É Mark quem vai levá-lo às festas regadas a ecstasy, maconha, bebidas e menininhas. Porém, quem já passou pela experiência de sair da casa dos pais em uma cidade pequena e se mudar para um grande centro, sabe que é difícil achar que aquela ainda é a mesma cidade. Parece uma viagem no tempo. Todo o resto ao seu redor continua a mesma coisa, como se nenhum segundo tivesse se passado, mas a grande verdade é que uma coisa muito importante ali mudou: você.

Um "amigo de um amigo meu" certa vez me disse que o Orkut era um erro. Ao entrar naquele site de relacionamentos, você estava reabrindo portas do passado que nem se lembrava que existiam. Hora de voltar tem muito disso. Como o próprio Zach Braff disse, este é um filme em que eventos ocorrem "como deveriam se você é aquele cara que volta para casa de repente. Você encontra pessoas que um dia conheceu, sai com elas. E então você nunca mais as vê". O bom é que, livre dos remédios, Large consegue ver no seu passado a chave para o que ele é hoje e consegue deixá-la para trás, partindo em busca do seu futuro. O melhor é que, livre dos vícios de Hollywood, Braff pode ter um futuro brilhante no cinema.

O Lenhador



Nota: 5,5

Sargento Lucas odeia pedófilos. Vigia Walter, criminoso em liberdade condicional, com desconfiança agressiva. Vivido pelo rapper Mos Def, o policial visita a casa do homem que passou doze anos encarcerado - papel de Kevin Bacon - sempre na ânsia de fazê-lo voltar para a prisão.

Certa tarde o sargento relembra a história de Chapeuzinho Vermelho. Não fosse o lenhador cortar o lobo ao meio, a menina não teria sobrevivido. "O mundo não tem mais lenhadores", sacramenta Lucas, sugerindo que Walter merecia mesmo é a pena de morte.

A imagem cai muito bem no drama O Lenhador (The Woodsman, 2004), da roteirista e diretora debutante em longas Nicole Kassell. Para tentar se reintegrar à sociedade, Walter arruma emprego numa madeireira. Agora visita um terapeuta para entender a psicopatia contra a qual luta tanto. Nunca antes de ser condenado agrediu ou matou as meninas que bolinava - mas aos olhos dos outros é apenas um monstro. Na fábrica Walter responde, ironicamente, pela serra elétrica.

No atual cinema adulto e autoral de Hollywood, aquele que o Oscar gosta de privilegiar, culpa e redenção são dois tema recorrentes. São os motes principais de O Lenhador e também de outro filme que a modesta companhia de Lee Daniels produziu, A Última Ceia (Monster's Ball, de Marc Forster, 2001). Em ambos os filmes a descoberta do amor serve de caminho de expurgação. Desmistificar tabus parece ser a especialidade da casa. E a trama depurada por Nicole Kassell, baseada em peça de Steven Fechter, trata o pedófilo com a mínima compaixão que uma pessoa em busca de tratamento merece.

A atuação minimalista de Kevin Bacon, premiada no Independent Spirit Awards, contribui demais para o rendimento do filme. Bastam uma testa franzida e um olhar perdido no vazio, tiques espantosamente cheios de expressão, para sentirmos o seu drama. Até chegar o clímax do filme - quando o lobo colocará à prova no bosque, diante da sua chapeuzinho, o desejo de virar lenhador - esperamos o pior. O Walter de Kevin Bacon se mostra tão frágil que não seria surpresa se implodisse em recaídas.

14 março 2005

Constantine



Nota: 7

Antes de ser realizado, o primeiro filme de Harry Potter passou por uma polêmica entre os fãs. Os produtores queriam que o menino bruxo, um britânico, se transformasse em estadunidense e que a aventura, toda passada na Inglaterra, cruzasse o Atlântico até as terras ianques. Felizmente, a escritora Joanne Rowling bateu o pé e exigiu o direito de aprovação de todos os elementos da história com antecedência. Do contrário, o filme não poderia ser realizado. Assim, todos os fãs puderam respirar aliviados já que o Harry Potter que veriam nas telonas seria exatamente o mesmo das páginas dos livros.

John Constantine, também britânico, também bruxo, não teve a mesma sorte. Na adaptação para o cinema do cultuado gibi Hellblazer, parte da linha de quadrinhos adultos da DC/Vertigo, foi obrigado a perder o sotaque, os cabelos loiros e a deixar de viver na terra da Rainha. Mas a comparação entre os dois personagens pára por aqui. Diferente de Potter, os direitos autorais de Constantine não pertencem a um autor (apesar dele ter sido criado pelo genial inglês Alan Moore), mas sim a uma corporação. E você sabe o que dizem das corporações... elas precisam dar lucro. Dessa forma, para agradar o público norte-americano, todas as referências à terra natal de Constantine foram apagadas e ele tornou-se um cidadão dos Estados Unidos. A boa notícia é que ele certamente não vota em George W. Bush.

Apesar das mudanças estéticas, a alma cinza (tanto pela personalidade quanto pela fumaça de cigarro) de Constantine permanece intacta. O velho ocultista dos quadrinhos mantém seu charme, seu cinismo e o humor negro na versão hollywoodiana. O papel título caiu como uma luva para o "predestinado" Keanu Reeves (leia entrevista), que viu casados com perfeição seus talentos notoriamente limitados com a atitude blasé do personagem.

Na história das telas, Constantine é um exorcista veterano, que cruza as ruas de Los Angeles atrás de qualquer coisa que comprometa o equilíbrio das duas "superpotências originais", o Céu e o Inferno. Desde o início da humanidade, Deus e o Diabo mantêm um pacto: podem influenciar o livre-arbítrio das pessoas, tentando levar suas almas para um dos dois planos. Seus agentes são os mestiços, anjos e demônios que caminham pela Terra disfarçados como nós.

Logo em sua infância, Constantine descobriu ser um dos poucos humanos capazes de ver tais criaturas como elas realmente são. O peso cobrado por essa habilidade levou-o a tentar o suicídio quando jovem, o que selou suas chances de ir para o Céu quando morresse (lembre-se que o ato é um pecado mortal para os católicos). Desde então, ele dedicou sua vida à luta contra o demônio, como uma forma de comprar sua entrada no Paraíso, mas sempre deixando claro seu desprezo pelos dois lados da equilibrada equação.

As coisas começam a mudar quando uma série de eventos prenuncia que algo bastante estranho está ocorrendo nos círculos do inferno... obviamente, caberá ao anti-herói a missão de descobrir a razão desses eventos e impedi-los de acontecer. Mas seu tempo é escasso, pois além de tudo ele está com câncer de pulmão e não deve durar muito.

Nessa missão, o ocultista encontra diversos - e fantásticos - personagens coadjuvantes, como a detetive Angela Dodson, vivida com a enorme competência habitual por Rachel Weisz (O júri). Católica devota, ela tenta provar a todo custo que sua irmã gêmea não cometeu suicídio e sua investigação a leva até o lendário John Constantine e à sua realidade surrealista. Além de Weisz, Djimon Hounsou (Terra de sonhos) também faz um ótimo trabalho como o feiticeiro Papa Meia-Noite, dono de uma casa noturna que serve como território neutro para anjos e demônios. Em um papel menos empolgante, como o demônio Baltazar, há o vocalista da banda Bush, Gavin Rossdale, que até parece interessante, mas empalidece quando surge nas telas a fabulosa Tilda Swinton (Até o fim). Ela interpreta o andrógino anjo Gabriel de tal forma que o estilo do personagem deveria ser adotado também nos quadrinhos. Por último, há o versátil Peter Stormare (Minority Report) como Lúcifer, que divide o fantástico clímax - que contém as melhores cenas de toda a trama - com Keanu Reeves.

Tecnicamente, o filme também agrada. O talentoso diretor de videoclipes Francis Lawrence criou uma atmosfera que dificilmente poderia ser mais precisa, mesmo se o filme fosse passado no velho continente. Ele mantém a história sempre ancorada na realidade, até quando somos levados às profundezas do inferno, que surge como uma versão nuclear de nosso próprio plano. Há apenas alguns pequenos deslizes, como o excesso de computação gráfica numa briga contra um demônio feito de insetos e um ou dois sustos gratuitos.

Ao final da projeção, Constantine resulta competente e muito satisfatório, bastante superior à grande maioria dos suspenses de Hollywood surgidos nos últimos dois ou três anos. Os fãs mais ardorosos, claro, devem reclamar das mudanças, mas não dá para culpá-los. Será que o público reagiria tão mal assim se as características físicas do personagem fossem mantidas? Não me lembro de Harry Potter ter ido mal nas bilheterias...

03 março 2005

Eterno Amor



Nota: 7,5

O cinema é a arte da sugestão. Os grandes filmes alimentam-se do "não-dito" e do "não-mostrado". Hitchcock, por exemplo, filma Tippi Hedren a meio-plano enquanto os corvos se amontoam no varal atrás dela. Só que os pássaros não aparecem no enquadramento. Como sabemos que eles estão lá em número cada vez maior? Simplesmente sabemos, porque o mestre do suspense insinua. A melhor maneira de prender o espectador à trama é instigar a sua imaginação.

O cineasta francês Jean-Pierre Jeunet trabalha de maneira oposta. Nutre uma obsessão tão intensa pela perfeição, pela verdade absoluta, que não se incomoda em dizer tudo e mostrar tudo - simultaneamente. O narrador de O Fabuloso destino de Amélie Poulain (2001), o seu filme anterior, fala de uma menina que espetava morangos nos dedos. Temos poucos milésimos para imaginar a cena. Jeunet a mostra em seguida. Como se trata de uma fábula, fica até gracioso.

Mas em Eterno amor, a segunda e milionária colaboração da estrela Audrey Tautou com o cineasta, essa overdose de informações começa a incomodar. Ainda mais por ser uma história detetivesca, cheia de idas e vindas, detalhes e pontos de vista e participações especiais, como a de Jodie Foster, que demonstra mais uma vez que sabe falar francês correntemente, como a viúva de uma das vítimas. Desta vez, a atriz interpreta Mathilde, uma jovem francesa que perdeu o noivo na Primeira Guerra Mundial. Pelo menos é o que dizem, pois nunca encontraram o corpo de Manech (Gaspard Ulliel). O mistério só aumenta: boa parte do seu pelotão, formado por desertores condenados à morte, como o próprio Manech, também sumiu quando largado na terra de ninguém, entre as trincheiras francesas e as miras alemãs.

O governo francês se omite diante da vergonha desses soldados que se ferem para conseguir a dispensa. Os escassos documentos oficiais são todos confidenciais. Só resta a Mathilde vasculhar a vida de cada um deles, buscar as suas famílias, para tentar chegar ao Manech que ela ainda acredita estar vivo.

Essa premissa grandiosa tem potencial. Amores em tempos de guerra sempre dão bom caldo. E o romance homônimo de ficção que Sébastien Japrisot (1931-2003), tido como o Graham Greene (1904-1991) francês, publicou em 1991 tira a sua força justamente dessa redenção de homens que, em teoria, traíram a sua pátria por puro medo.

Os planos iniciais de Eterno amor são fabulosos. Algemados, os condenados atravessam uma trincheira sob os olhares dos compatriotas. Não é preciso palavras para percebermos que esses olhares misturam desprezo e comiseração. Muitos combatentes ali, desesperados, também tentarão a dispensa, compreende-se. Pena que o esteta Jeunet não confie, no resto do filme, nesse poder comunicador das suas imagens cheias de cor. A certa altura, Mathilde cerra os punhos na janela quando chega o carteiro, e a narradora da história diz: "Mathilde cerra os punhos na janela, e...".

O filme é extremamente bem produzido, com incrível reconstrução de época. E disputa o Oscar de direção de arte e fotografia este ano.

Jeunet continua com a mania de ilustrar tudo. Por exemplo, se uma coadjuvante vai ser gutilhotinada, é mostrada essa morte, ou alguém subindo no farol, às vezes em imagens múltiplas.

Não há dúvida de que o filme tem um visual de grande beleza e fotogenia. Mas depois de um tempo, a história começa a cansar e a teimosia da heroína chega a irritar.

Mar Adentro



Nota: 8,5

Javier Bardem é o Marlon Brando ibérico. Seja um travesti almodovariano ou um cafajeste de Bigas Luna, os seus personagens escondem por trás do porte vigoroso e intimidador uma personalidade sensível, carente até, como os papéis que Brando consagrou no Realismo Americano dos anos 50.

O californiano (1924-2004) se beneficiava da linguagem do cinema clássico - filmado em closes solenes, câmera posta de baixo para cima, pelo mestre Elia Kazan (1909-2003) - para construir rapidamente a sua persona e fazer de si um mito da masculinidade. Bardem tem, ao contrário, um mundo de limitações em Mar adentro (2004). Passa a maior parte do filme numa cama, só com a cabeça de fora do cobertor. Ainda assim, tira dessa situação avessa um gigante viril.

A história do personagem que vive, o espanhol Ramón Sampedro, é real. Marinheiro apaixonado pelo mundo que conheceu via oceano, Sampedro perdeu a liberdade aos 26 anos, num mergulho raso demais que lhe deixou tetraplégico. Por quase três décadas, ele lutou pelo direito de morrer. Acima da polêmica da eutanásia, Sampedro colocava o livre arbítrio de cada cidadão. O problema é que a sociedade ainda não permite legalmente o suicídio de um indivíduo.

Bardem pega a bandeira à altura dos 54 anos de vida de Sampedro. Zelado por irmão, cunhada e sobrinho, cercado de cuidados, remédios e rotinas, parece a fragilidade em pessoa. Mas basta Sampedro abrir a boca para que aqueles ao seu redor esqueçam da piedade. Homem sem meias palavras, determinado como poucos, conhecedor dos meandros jurídicos de suas disputas, não só convence como seduz. Quando uma jornalista igualmente debilitada e uma mãe solteira e frustrada se aproximam do seu dilema, a admiração se confunde com a paixão. Acontece que esse Sampedro inabalável sofre, e muito.

Por isso Bardem, com os seus fortes traços faciais e os seus olhares que já dizem tudo, se encaixa tão bem no papel. Mas o desenvolvimento do drama não cabe somente a ele. Roteirista e diretor, Alejandro Amenábar (Abre los ojos, Os Outros) ambiciona aqui o reconhecimento fora do gênero do suspense. Não quer ser associado apenas a atmosferas e reviravoltas bem encaixadas. Busca, portanto, uma história mais densa - mas Mar adentro pode ter sido um passo largo demais. Afinal, não é fácil se desvencilhar dos clichês que perigam jogar uma tragédia desse tipo na vala comum dos "telefilmes de doença" norte-americanos.

Quando Amenábar já começa a mil, escancarando conflitos logo de cara, botando a trilha melosa no talo, dá a sensação de que ele não controlará o filme por muito tempo. Aos poucos, porém, a coisa se equilibra. Se em alguns momentos o diretor recorre a um sentimentalismo que prejudica a obra, em muitos outros ele abraça o politicamente incorreto com saúde. Amenábar não poupa ninguém do niilismo - nem o padre tetraplégico que chega para convencer Sampedro a viver mas não consegue subir as escadas até o quarto devido ao tamanho da sua cadeira-de-rodas hi-tech.

Ao fim de altos e baixos, fica a certeza de planos perfeitamente filmados, de diálogos muito bem escritos, mas fica também a impressão de que Bardem contribui muito mais do que Amenábar para o sucesso de Mar adentro. O ator começa, como Brando, a ficar maior que o cinema.

O Aviador



Nota: 6

Produzir filmes é um atalho que vários atores vêm tomando para fazer os papéis que realmente lhe interessam sem ter de ficar esperando bons roteiros caírem em seus colos. Isso funciona tanto para talentos em ascensão como para quem já circula com uma certa facilidade pelos corredores de Hollywood. É o caso, por exemplo, de Leonardo DiCaprio, que batalhou para transformar a biografia do milionário texano Howard Hughes em filme. Sua primeira opção para dirigir o longa era Michael Mann, que chegou inclusive a escolher o roteirista John Logan (Gladiador, O último samurai) para escrever a história, mas acabou pulando fora. O motivo era simples: após filmar duas biografias seguidas - O informante (1999) e Ali (2001) -, ele queria partir para algo diferente e optou por Colateral (2004). Mas Mann continuou no projeto, como produtor, e ajudou tanto a conseguir os 150 milhões de dólares que garantiriam a viabilidade do filme como a conseguir um "substituto", no caso, Martin Scorsese.

Tecnicamente, a escolha não poderia ser melhor. Scorsese é tão perfeccionista quanto foi Hughes e cuidou para que tudo estivesse no seu devido lugar, desde a ambientação à iluminação, que remete aos filmes feitos naquela época. Porém, ao pegar um trabalho que havia sido desenvolvido por outros e para outros, o cineasta não acrescenta muito à história. Se os personagens estão muito bem caracterizados, falta um pouco mais de profundidade, falta aquela câmera que mostra os distúrbios que estão acontecendo dentro da cabeça do protagonista, como em Taxi Driver (1976). O que se vê é o exterior, como por exemplo o transtorno obssessivo-compulsivo, a surdez e a germofobia de Hughes, mas em um estado ainda controlável, longe dos patamares que o levaram a se enclausurar até a sua morte.

O período retratado, dos anos 20 aos 40, começa com o jovem Hughes (DiCaprio), então aos 18 anos, dirigindo o épico Anjos do Inferno (1930) - uma homenagem aos pilotos da Primeira Guerra Mundial. Órfão há pouco tempo, o jovem brigou na justiça para herdar, antes de atingir a maioridade, a empresa e a fortuna deixada por seus pais - donos de uma empresa que inventou e patenteou uma broca que furava rochas e facilitava a extração do petróleo. Ao contratar seu braço direito, Noah Dietrich (John C. Reilly), Hughes explica que vai precisar de mais dinheiro para terminar seu filme e manda uma mensagem aos acionistas da empresa: "Fale para eles pararem de me chamar de Júnior." Nada mais justo para quem, aos 11 anos, construíra o que provavelmente foi o primeiro estúdio de transmissão sem fio de Houston, demonstrando perícia em matemática e engenharia.

Não foi à toa que nos anos seguintes ele quebrou recordes de velocidade nos aviões que ele mesmo projetou e fez questão de testar. Sua paixão pela aviação e crença de que esta era a indústria do futuro fez com que comprasse uma companhia aérea, a TWA, que incomodou a gigante Pan Am e fez com que seu dono, Juan Trippe (Alec Baldwin), mexesse seus pauzinhos para tentar tirar Hughes e sua empresa do ar.

Tudo isso e a inquisição comandada pelo Senador Ralph Owen Brewster (Alan Alda) estão no filme, que como se pode imaginar é realmente longo (170 minutos), mas sem ser cansativo, afinal história para contar é o que não falta. Porém, na ânsia de jogar todas estas informações e façanhas conseguidas por Hughes, muitos fatos acabam sendo mostrados superficialmente. Alguns eram importantes, como seus problemas, e outros, no mínimo curiosos, como a invenção do sutiã meia-taça, criado para "sustentar" seu segundo filme, The Outlaw (1943), que tem como principal atração os seios de Jane Russel.

Há também o que se pode chamar de "desperdício de estrelas". Com exceção à ótima performance de Cate Blanchett como Katharine Hepburn, passam quase desapercebidas aparições de Jude Law (Errol Flynn), Willem Dafoe (como o jornalista Roland Sweet), Ian Holm (Professor Fitz), Gwen Stefani (vocalista do No Doubt como Jean Harlow), entre outros. E até mesmo os que ganham um pouco de mais de tempo de tela, caso de Kate Beckinsale interpretando Ava Gardner, não passam de adornamento.

Antes de DiCaprio, vários outros figurões tentaram fazer um filme sobre a vida de Hughes, entre eles Warren Beaty, John Malkovich, Jim Carrey e Brian De Palma, que viu seu projeto ser brecado porque o orçamento de 80 milhões de dólares foi considerado muito alto. O que diferencia este projeto dos demais é que desde o começo DiCaprio queria focar-se no auge da criatividade de Hughes, que além de dirigir dois longas-metragens, produziu outros tantos, criou aviões, brigou com a Pan Am contra um monopólio dos vôos internacionais e, o que talvez mais aparecia na mídia, saiu com as mais belas mulheres de Hollywood. A opção é controversa, pois por um lado deixa o filme leve, com grandes chances de agradar muita gente. Porém, esta alternativa esconde os últimos dias da vida do magnata, que foi bastante reclusa e, dizem por aí, cheia de paranóias. Seria sem dúvida um prato cheio para DiCaprio mostrar ainda mais suas capacidades como ator dramático.

Assim, o filme decola e mostra vários fatos da vida de Howard Hughes, mas deixa de fora o trecho mais turbulento de todos, os anos de reclusão que duraram até sua morte. Usando a mesma comparação já feita pelo jornalista Peter Bradshaw no jornal inglês The Guardian: Um filme sobre Howard Hughes que não mostra sua vida em um quarto de hotel, com cabelos desgrenhados, unhas mais longas que hashis e pés calçados em caixas de lenço de papel, é como fazer um filme da vida de Mané Garrincha e não mostrar seus problemas com bebidas. Sem dúvida é algo que pode ficar até bonito na tela, mas é incompleto.