30 novembro 2005

Finais Felizes



Nota: 7,5

Não são poucos os cineastas niilistas que olham para a sociedade estadunidense com o dedo em riste. A sanha condenatória é o forte de Don Roos (O Oposto do Sexo) e ele exercita suas lições de moral em Finais Felizes (Happy Endings, 2005).

Os alvos são múltiplos. Na trama-mosaico, vidas se cruzam e se definem à ordem do acaso. Mamie (a friend Lisa Kudrow) nunca se refez do aborto cometido na adolescência. Seu meio-irmão, Charley (Steve Coogan, de A Festa Nunca Termina), hoje gay e louco para ser pai, prefere não comentar a transa ligeira que eles tiveram vinte anos atrás. Certo dia, Mamie se surpreende quando recebe uma carta misteriosa do aspirante a cineasta Nicky (Jesse Bradford), convidando-a a ser objeto de um documentário sobre o filho dela - que está vivo, pronto para o reencontro com a mãe, diz ele.

De outro lado, Jude (Maggie Gyllenhaal, de Secretária) descobre num karaokê que tem talento de sobra para liderar um grupo de moleques roqueiros enquanto a vocalista titular se desintoxica na reabilitação. Melhor que isso: o baterista da banda, Otis (Jason Ritter), que nutre desejos por Charley, precisa provar ao pai (Tom Arnold) que não é gay. A nômade Jude vê aí a chance de viver numa mansão enquanto finge ser a namoradinha liberal do doce rapaz.

Jude, Charley, Mamie, Nicky, Otis, seu pai e mais uma leva de coadjuvantes dividem a mesma condição: não conseguem ser honestos com si mesmos. Mais do que isso, o tema principal do filme é a incapacidade dessas pessoas em manter relacionamentos, serem honestos também com os outros. São uma gente desenganada em pretensos finais felizes - referência ao clímax da massagem erótica que Mamie recebe de seu namorado mexicano (Bobby Cannavale, de O Agente da Estação) -, diz Don Roos.

O trabalho do diretor começa mal - no sentido em que julga os personagens antes mesmo que eles tenham tempo de "se defender" - a partir de suas opções estilísticas. Os protagonistas entram em cena, a tela se divide e surgem legendas verticais delatando detalhes íntimos ou curiosidades mórbidas sobre as vidas de cada um dos retratados. Esse recurso tem a suposta intenção de aprofundar perfis psicológicos, mas não fazem nada além de sobrecarregar informação banal. Na inicio do filme, sofremos bastante para acompanhar tantas frases e tantos diálogos juntos, que sobrepostos, fazem-nos perder boas falas.

Não que o filme seja um desastre. Ele só é um tanto inquisidor e em parte injusto. As coisas melhoram um pouco depois.

A certa altura, quando Jude anuncia para Otis que está flertando com o pai dele, ela brinca: "Relaxa, isso não é Beleza Americana, não voarão rosas dos meus peitos". A menção é emblemática porque o filme de Sam Mendes também representa esse cinema que faz anedota com desvios de comportamento. Acontece que Beleza Americana bate e assopra. Critica, mas ao mesmo tempo expõe a humanidade de seus acusados, como uma tentativa de inocentá-los.

Finais Felizes começa a se justificar quando também parte em busca da humanidade dos personagens. Quando a então invencível Jude demonstra fraquezas, quando Charley expurga seus medos... Aliás, deve-se muito o êxito comedido do filme às atuações de Steve Coogan e Maggie Gyllenhaal, os dois melhores de um elenco desigual. Até ali, a proposta de Roos se resumia a um apanhado de legendas engraçadinhas e ao esforço de enfeiar Lisa Kudrow. Depois melhora.

24 novembro 2005

Marcas da Violência



Nota: 8,5

Edie (Maria Bello) prepara uma bela surpresa para seu devotado marido, Tom Stall (Viggo Mortensen). Busca-o na lanchonete onde ele trabalha, deixa as crianças numa amiga... E veste no quarto do casal um uniforme curto e colante de líder-de-torcida de tirar a razão. Edie e Tom não foram namorados na adolescência, como é característico do interior dos Estados Unidos. Ela está agora realizando essa fantasia que lhes falta - e que não deixa de ser também a fantasia-padrão do estadunidense, transar com a cheerleader, de pompom e tudo.

O título original de Marcas da Violência, A History of Violence, já deixa implícito que não trata apenas de uma trama particular, de uma story, mas também da História com maiúscula, muito bem localizada geográfica e temporalmente nos grotões da "América". São os Estados Unidos dos xerifes que tomam café na sua casa, dos chapeiros que dizem bom dia, das filhinhas loirinhas que botam a mesa do jantar.

Essa imagem é um estereótipo que corresponde, em certa medida, à verdade daquele lugar. E é com estereótipos que David Cronenberg (Spider - Desafie Sua Mente) decide trabalhar - nesta adaptação da HQ escrita por John Wagner (Judge Dredd) e ilustrada por Vince Locke - para mostrar até que ponto o teatro que se monta ali é um teatro de aparências.

Além da lanchonete do solícito e inofensivo Tom, um dos elementos consagrados desse teatro é o colégio. Jack (Ashton Holmes), filho dos Stall, foi educado a nunca revidar. O problema é que os outros resolvem tudo no braço. Loser típico, nerd clássico, Jack se anima no campo de beisebol quando consegue pegar a rebatida do fodão da turma. No vestiário - outra situação-clichê - ele é prensado contra os armários pelo fodão-vilão e seus comparsas, todos cheios de frases de efeito.

Pode parecer que Cronenberg acredita de verdade nessa encenação - como se estivesse mesmo do lado de Jack, dos mocinhos, dos self-made men, dos puros, enfim, dos valores bons. Nada mais equivocado. Porque Marcas da Violência é um filme onde nem tudo é o que parece. De uma vidinha normal à uma vida desregrada. O diretor vai, sem perder a mão, da típica família americana, com seu mundo ilusório, falso, para a família norte-americana violenta, preconceituosa, mentirosa, que esconde mais do que revela.

O momento que quebra o faz-de-conta é o aparecimento do carro preto. Certa manhã estaciona em frente à lanchonete de Tom um carrão com vidros escuros, totalmente estranho àquele mundo de picapes, meio como uma nave espacial, de onde desce o misterioso Carl Fogarty (Ed Harris). Logo se percebe que é um tipo mafioso dos piores, vindo da cidade grande. Fogarty viu pela TV o que Tom fez, numa situação de perigo, com dois matadores que tentavam assaltar a lanchonete. Foi assim que o forasteiro localizou o Sr. Stall, o novo herói involuntário da cidadezinha - que não se chama Tom Stall e muito menos pode ser considerado um herói, é o que diz Fogarty, mostrando a cicatriz que atravessa de cima a baixo seu olho esquerdo cego.

Está posta a dúvida: Tom é quem diz que é? Esse se torna o epicentro dramático do filme, mas acima dele está a evidência de que o personagem interpretado com enorme talento por Mortensen vive enterrado em introspecção. Essa introspecção pode ou não ser um sentimento de culpa - e é somente fora do mundo de mentirinha, da família perfeita e da cidadezinha perfeita, que essa eventual culpa encontrará alguma redenção.

A escolha de Cronenberg para demarcar o novo "mundo real" não poderia ser mais palpável: sangue, fraturas expostas, agressões em close-up. Desde aquela rixa do colégio até o acerto de contas com o mafioso, todo conflito se resolverá com muito sangue, filmado sempre de modo muito veemente. Afinal, o Mal pode não ser bonito de se ver, mas de certo é mais honesto que o Bem.

Essa idéia das verdades sangradas também vale, no sentido figurado, para o (des)arranjo familiar. A certa altura, Edie e Tom transam novamente. Marcas da violência não seria o mesmo filme sem essa cena. Dá pra dizer que é a sua sequência mais importante, no que diz respeito às aparências do começo, em contraponto à verdade dura da segunda metade da história. Porque a fantasia com a líder de torcida não vai além disso: uma mera fantasia. A realidade - metáfora da vocação para a dominação e da tentação da violência que são a essência da sociedade dos EUA - é outra, Edie aprende depois, é esse sexo lutado e agredido e conquistado.

23 novembro 2005

O Fim e o Princípio



Nota: 8,5


O documentarista Eduardo Coutinho (Cabra Marcado Para Morrer, Edifício Master, Peões) é notório por ser um ótimo entrevistador, daquele tipo que entra na casa de desconhecidos - normalmente assustados pelo caráter invasivo da câmera e do microfone - e arranca depoimentos, confissões até, como se fossem amigo íntimo da família. Coutinho não tem pudor de exibir equipamentos e equipe técnica em cena, nem de aparecer diante da câmera. Ao mesmo tempo em que evidencia as engrenagens da linguagem, é como se tivesse vaidade do dom de perguntar.

Esse talento é colocado à prova em O Fim e o Princípio (2005), filme no qual Coutinho escolhe, mais ou menos a esmo, um vilarejo do sertão da Paraíba para colher relatos. Ele não leva roteiro, nem temas, não fez muita pesquisa prévia. A idéia é estacionar num lugar que tenha hotel decente e trabalhar. Uma vez eleito o Sítio Araças, região em que 86 famílias conservam algum parentesco entre si, ele decide ouvir o que os idosos, faixa etária predominante, têm a dizer. O problema é que sertanejo, desconfiado, não gosta de falar de si mesmo.

Depois de meia-dúzia de tentativas falhas, um dos moradores esclarece: "O cabra que conta tudo o que sabe fica abestado". É possível que Coutinho nunca tenha suado tanto para tirar palavras de seus documentados. O saldo é truncado, muita gente fala para dentro, introspectivo, fica impossível entender o que dizem. Outros tantos comentam o dia-a-dia da lavoura, falam do tempo - coisa que não interessa ao cineasta, que viajou meio Brasil para ouvir experiências de vida.

Mas eis que O Fim e o Princípio, filme aberto aos acasos, começa a se construir conceitualmente em volta desse não-relato. Não chega a ser um anti-documentário. Coutinho realiza, isso sim, não só o exercício básico da reportagem como do próprio cinema: a observação. Pode soar uma obviedade, mas quantos documentários panfletários recentes não chegam diante do entrevistado com a pauta pronta, o discurso pronto, enfim, a opinião pronta? Observar, nestes casos, é impossível quando já existe o pré-julgamento (termo da moda, esse).

E sabe aquele ditado da imagem que vale mais do que mil palavras? Então, ele é verdadeiro. Não tem nada mais eloqüente do que o close no rosto de um senhor de noventa anos, onde não cabem mais rugas, pele castigada do sol a pino de uma existência inteira. O velho É o sertão. A resistência ao contato, ao diálogo, é o símbolo fidedigno da dureza da terra seca, de um espaço que não trava com o homem uma relação de retribuição, mas de combate.

Claro que, em quatro semanas de entrevistas, alguns baixam a guarda. Há o senhor letrado (e por isso tido como esnobe e desvairado pelos demais), desconfiado de Deus, proferindo lições para a câmera. Há casais reforçando juras de décadas de amor. Há o trabalhador orgulhoso criticando a preguiça alheia. E há o outro que questiona a realização do filme, pergunta se Coutinho crê em Deus. O fato do documentarista - que não se incomoda em aparecer na tela - ser pego de surpresa e transformado em documentado é a chave fundamental desse belo exercício de cinema. Ele não está acima dos sertanejos. Uma vez exposto, passa também a ser observado - e julgado por nós.

É a riqueza da vida como ela é, sem representações, dura e crua. Pessoas humildes, pobres, marcadas pela vida, podendo expor o que sentem, o que acham, da maneira como desejarem. Podemos perceber e sentir que ali estão pessoas autenticas, que não precisam vestir máscaras para transitar no meio social. São pessoas unidas pela desgraça da vida, pela injustiça, e se mostram muito mais solidários e amigos do que todos os outros que se encontram em camadas superiores da divisão social.

Guardiões da Noite



Nota: 7,5

Aguardado pelos apreciadores de terror e ficção, o fenômeno russo Guardiões da Noite (Nochnoi Dozor, 2003), realizado com apenas 4 milhões de dólares, tornou-se o maior filme de todos os tempos na Rússia, superando qualquer produção estrangeira por lá, incluindo pesos pesados como O Senhor dos Anéis e Homem-Aranha.

Trata-se, porém, de um passo atrás para o cinema russo. O filme fez dinheiro? Sim. O que não significa que seja ruim, mas rejeita toda uma história rebelde da cinematográfia russa. Já ouviu falar de salada russa? Aquela que leva batata, vagem, cenoura, ervilha, ovo... verdadeira mistureba, ligada por uma base de maionese? O filme é o equivalente cinematográfico do prato. Joga fora uma das tradições mais poderosas da história do cinema mundial para abraçar o cinemão "globalizado" juntando e ruminando idéias de bons longas como Matrix, O Senhor dos Anéis, Homens de Preto e X-Men, com pitadas de comédia, suspense e muito merchandising.

Apesar de visualmente interessante e de ter sido realizado com competência técnica pelo diretor de comerciais Timur Bekmambetov, Guardiões da Noite cai no maior dos problemas da Hollywood que copia. Faltou a maionese. O filme é cheio de efeitos visuais muito bons e tome mulher-tigre, vampiros, furgões a jato, câmera lenta, guerreiros medievais, feiticeiros, videogames, óculos escuros, sobretudos, espadas de luz e tantos outros elementos mas, acaba se focando muito no quesito visual e deixando de lado o roteiro, que não é bem assimilado pelo público. São muitas informações dadas num período muito curto e rápido, muitas explicações no meio do filme, ao léo, que confundem e atrapalham a digestão. Parece-me que quiserem perder o menos tempo possível com roteiro, deixando o trabalho para os efeitos especiais. E aí que o filme peca. A história é até interessante e os efeitos idem, mas não conseguiram fazer algo único e inovador, pois copiaram o cinemão norte-americano.

Depois das redes de fast-food e da economia de mercado, eis que a Rússia aberta ao capitalismo descobre as "maravilhas" dos efeitos especiais. Guardiões da Noite é o primeiro filme russo a utilizar efeitos computadorizados, no mesmo estilo das obras norte-americanas, obtendo resultados de público igualmente expressivos.

Baseado numa trilogia best-seller escrita por Sergei Lukyanenko, o longa conta a história de um grupo de seres fantásticos - os "outros" - que vive entre os homens desde o começo da humanidade. Eles são feiticeiros, vampiros ou seres capazes de virar animais, como corujas e ursos. Os "outros" estão divididos em dois subgrupos: os que são da luz (a turma do bem) e os que são das trevas (os vilões). Lutando desde o princípio dos tempos, os dois bandos estão em paz na Moscou de hoje. Os da luz vigiam os das trevas (e, por isso, são chamados de Guardiões da Noite), e vice-versa, para assegurar que os termos da trégua -não interferir com os humanos, permitindo que escolham o caminho do bem ou do mal livremente - sejam mantidos pelas duas partes.

E tem outro detalhe, bem batido inclusive: há um Messias que está na Terra atualmente e tem poder para destruir qualquer um dos lados; logo, é um aliado crucial para ambos, que farão tudo para atraí-lo para suas fileiras. Os dois grandes atrativos da produção não se sustentam: o fato de a história se passar na Moscou de hoje pode ser interessante para o público russo, mas não serve nem de experiência antropológica para quem vê o filme no Brasil: a cidade se parece com diversas metrópoles, carcomidas pela pobreza, pela poluição e pelo excesso de gente; quanto aos efeitos especiais, são bem-feitos, mas utilizados de forma gratuita (como para mostrar o que os russos podem fazer): há, por exemplo, uma longa cena que acompanha a trajetória de um parafuso desde um avião até uma xícara de café. As mais interessantes transformações das pessoas em bichos, no entanto, são deixadas quase que de lado, em cenas rápidas.

Na história, vemos uma relação estranha do Bem com o Mal, com acordos nefastos e uma justiça injusta, onde existem regras que podem ser quebradas, dependendo de quem as quebra. Assim como no cenário político atual, mesmo os seres especiais são corruptos e delegam em prol de seus benefícios. O senhor do Mal é amigo do senhor do Bem, e todos sabem que certas regras são quebradas diariamente, mesmo não podendo ser quebradas. Mas como são eles que mandam, dane-se, desde que os mesmos não sejam atingidos. Mesmo com um enredo batido e nada de novo, a análise política e a crítica do Bem e do Mal, é relevante.

Heróis Imaginários



Nota: 7

Aos 20 anos de idade, Dan Harris já tinha nas costas um prêmio de curta-metragem e outro de roteiro. Aos 22, seu currículo já incluía o crédito de roteiro no longa-metragem X-Men 2. Atualmente, trabalha em Superman - O Retorno e tem meia-dúzia de projetos engatilhados. Pois o prolífico escritor prova que também sabe dirigir em Heróis Imaginários (Imaginary Heroes, 2004), longa de sua autoria.

A trama do filme, registrado com a competência habitual pelo diretor de fotografia Tim Orr (Contra Corrente), acompanha um ano na vida da família Travis. Ano particularmente difícil, já que começou com uma tragédia - o suicídio do primogênito, astro da natação que estava prestes a ingressar na equipe Olímpica. Sandy (Sigourney Weaver), a mãe, e especialmente o pai, Ben (Jeff Daniels), encontram-se devastados e solitários. Cada um sofre a perda de maneiras diametralmente opostas: ela busca refúgio em substâncias diversas e no sarcasmo, voltando inclusive a fumar maconha, ele simplesmente pára de funcionar, trava, se afundando em remédios e deixando o trabalho. Enquanto isso, o filho mais novo e ovelha negra Tim (o bom Emile Hirsch, de Meninos de Deus) começa a experimentar uma nova fase de autoconhecimento, disparada pela desgraça familiar, com a ajuda do estranho vizinho.

Harris cria seus personagens com boa dose de complexidade e verossimilhança. Também sabe dirigir os atores e extrai deles ótimas interpretações. Todos estão muito bem em seus papéis, especialmente Weaver e Daniels. Fazia tempo que ambos não apareciam tão bem nas telas. Mas o jovem cineasta peca ao ousar pouco, ao manter-se confortavelmente dentro do padrão esperado em produções do gênero e nas estruturas narrativas clássicas.

Seria um excelente filme se o mercado não estivesse saturado de outros exatamente como ele, com famílias suburbanas disfuncionais vivendo em bairros tranqüilos que escondem segredos. O tema é matéria-prima básica da produção cultural estadunidense cujos exemplos mais gritantes e bem-sucedidos são Gente Como a Gente (Ordinary people, de Robert Redford, 1980) e Beleza Americana (American beauty, de Sam Mendes, 1999). Isso sem contar ótimas produções européias que tratam sobre o tema como Festa de Família ou O Quarto do Filho. O filme pisa em um terreno já pisado (crises familiares) e não inova muito, mas é história é bem contada e consegue nos prender. De qualquer forma, Harris é um cineasta a ser acompanhado. Há promessa em seu talento, mas lhe falta um olhar que só se obtém com a maturidade.

Manderlay



Nota: 8,5

Em 2003, com Dogville, o diretor dinamarquês Lars von Trier criou uma nova linguagem na maneira de fazer cinema. O filme foi ovacionado por boa parte da crítica. Na época, o polêmico diretor anunciou que aquele era o primeiro de uma trilogia que tinha como tema central a intolerância nos Estados Unidos e isso criou ainda mais expectativa.

A inventividade e o espanto ficaram para trás, é verdade, mas o impacto, mesmo menor que o anterior, é ainda cortante. O festival de Cannes deste ano foi o primeiro a conferir Manderlay (2005), capítulo central dessa trilogia. A história continua no exato momento em que termina o primeiro. Após deixarem para trás o vilarejo de Dogville, Grace e o pai acabam, por acaso, nos portões da fazenda de Manderlay, no sul dos Estados Unidos. Lá, Grace descobre uma estrutura escravagista em pleno funcionamento, numa época em que a escravidão já havia sido abolida. Ela se envolve então nas relações entre os empregados negros e seus patrões, apenas para descobrir que os laços entre as duas classes são bem mais complexos do que ela pensava.

Mais uma vez von Trier filmou num estúdio e utilizou os mesmos recursos que em Dogville: casas e outros cenários são apenas marcas no chão, deixando por conta da imaginação do espectador sua visualização. Ele também dividiu a trama em capítulos e manteve a narração sarcástica do ator John Hurt. Em suma, a estrutura dos dois filmes é idêntica.

A grande diferença ficou mesmo por conta dos protagonistas. A atriz Nicole Kidman não retornou à personagem. Bryce Dallas Howard (A Vila) assumiu o papel com muita competência. Mas não dá para competir com o carisma de Nicole. Bryce ainda precisa comer muito arroz com feijão - este é apenas seu segundo papel de destaque no cinema. James Caan, que fazia o papel do pai Grace, também foi substituído e passou o mafioso a Willem Dafoe.

Sem o elemento-surpresa do primeiro filme, von Trier precisava adicionar algum elemento novo e poderoso para equilibrar a balança. Restou ao cineasta apostar na história - e ele acertou em cheio. A trama é muito mais ousada e irônica. A intolerância da vez é o racismo. Mesmo aconselhada por seu pai a não se envolver com os problemas em Manderlay, Grace resolve levar justiça à cidade. Após a morte de M´am (Lauren Bacall, que fazia outra personagem em Dogville), a matriarca da cidade, Grace começa a reestruturá-la com a ajuda de alguns capangas deixados por seu pai. Ela liberta os negros e força os brancos preconceituosos a trabalharem ao lado deles.

Nesse momento, não há como desassociar essa democratização empreendida por Grace, com as atitudes do governo estadunidense em relação ao Iraque, entre outros atos de "democracia à força". Será que as pessoas podem ser forçadas a seguir esse modelo? Os libertados de Manderlay, por exemplo, não mostram qualquer tipo de iniciativa. Grace não desiste e, em seminários, começa a ensiná-los a agir democraticamente, utilizando os votos da maioria, deixando para trás as decisões arbitrárias. Contra todos os reveses, a cidade acaba tendo sucesso com o comando de Grace. E, depois da colheita do algodão, ela declara que os habitantes da cidade agora estão verdadeiramente “formados” americanos. Só por essa crítica pertinente, von Trier já merecia ser saudado, já que a construção dessa idéia é de extrema simplicidade e sutileza.

O raciocínio que desenvolve é cheio de ironia - como sempre que Von Trier trata dos EUA. Uma ironia que começa com sua afirmação de que nunca pôs os pés nos EUA. E que continua com esses estranhos escravos, que seguem sua nova líder como até há pouco seguiam cegamente sua senhora.

Grace é um apóstolo da liberdade, uma pura americana. Mas ela carrega algo bem dinamarquês, um protestantismo pouco propenso a aceitar as limitações e fraquezas humanas. Com isso, Manderlay, dando seqüência à saga de Dogville, explica ainda melhor o nome do primeiro filme da série, onde o dog, não vem de cachorros, mas do caráter dogmático da heroína, da postura absolutista que se impõe por trás de sua figura cada vez mais doce. E ela se chama Grace, designando a graça -aquela que por sua ação pode levar a salvação aos homens. Ainda não consegui descobrir se Lars Von Trier não suporta as fraquezas humanas ou se, mais condescendente, as observa com amarga ironia.

Se ao final o dinamarquês não repete a obra-prima que é Dogville, consegue tratar de tema mais reconhecível, apesar de não menos complexo. Resta saber o que vem a seguir... ele já anunciou que a última parte, Washington, só será produzida em 2007.

Uma Vida Iluminada



Nota: 6,5

Tudo Se Ilumina ganhou o título Uma Vida Iluminada em sua passagem para o cinema. Dirigido pelo ator americano Liev Schreiber (atuou em Sob o Domínio do Mal e nas comédias Pânico), o filme, que competiu no último Festival de Veneza, retira o realismo mágico e os jogos estilísticos do livro, se concentrando apenas na comédia e na volta ao passado do personagem.

Um dos charmes de Tudo se Ilumina (Everything Is Illuminated, no original) é o humor tirado do precário inglês de Alex, que perde pouco na tradução para o português, mas muito na versão para o cinema e as situações cômicas geradas pelo improvável trio de protagonistas.

Trata-se de um road movie no leste europeu sobre a ocasião em que o escritor Jonathan (vivido por Elijah Wood), um colecionador judeu norte-americano, partiu para a Europa desejoso de explorar o passado da família. Ele tinha a intenção de encontrar na Ucrânia uma mulher que supostamente salvou seu avô dos nazistas. Para tanto, contratou uma empresa especializada em viagens em busca de herança cultural (um carro soviético caindo aos pedaços, na verdade). O personagem viaja ao lado de seus guias pouco convencionais, Alex Jr. (Eugene Hutz, vocalista da banda punk Gogol Bordello - que assina algumas das canções do filme), o velhote ranzinza Alex (Boris Leskin) e a cadela Sammy Davis Jr. Jr.

Nessa terra de velhos e paisagens desérticas, ou quase isso, desenvolve-se uma amizade igualmente estéril, já que Jonathan pouco se lixa para a paisagem, para a Ucrânia ou para os ucranianos. Ele é um famílio-fanático e só pensa em seu antepassado e na pessoa que o salvou.

Com isso, parece não agregar nada durante o trajeto, nem mesmo a amizade do guia e, sobretudo, do tradutor que insiste em chamá-lo de "Jonassan". De maneira que eles agüentam a unidimensionalidade do protagonista por razões profissionais, ganham para isso, enquanto nós temos de pagar por essa convivência não muito animadora.

Estamos nisso, em busca de uma aldeia sobre a qual ninguém nunca ouviu falar (ou se comportam como tal), quando chegamos a um campo de flores que contrasta com tudo o que temos visto durante o longa-metragem, vencedor do prêmio de melhor roteiro da 29ª Mostra de Cinema de SP.

Veremos que é um lugar bem importante, mas não é isso o que importa, e sim esse campo de flores interminável, que introduz algo de universal (as flores) numa paisagem até então muito particular. É o sinal de que não estamos mais na Ucrânia. Entramos em um território espiritual, partilhável por todos os homens: a bondade, a grandeza, a dedicação ao outro.

Sim, voltamos à guerra, voltamos a alguém que salva uma vida etc. Isso não seria problema, se não nos fosse apresentado como o mais puro exemplar da arte cinematográfica atual e não contivesse aquilo a que se pretende reduzir o cinema (o dito "de arte", justamente): a um divulgador de idéias inofensivas coroadas por atos heróicos. Nesse sentido, o campo de flores representa bem o gosto caipira que envolve esse tipo de cinema.

Em termos narrativos, dois terços do filme têm um humor burlesco, recheado de personagens estranhos. Uma espécie de Encontros e Desencontros sem o romantismo, calcado apenas nas diferenças de idiomas, diálogos divertidos e personagens estranhos. O inglês de Alex, sujeito que se veste feito um rapper negro, por exemplo, é hilariante. "The blacks are such premium people", comenta inocentemente, para o horror do politicamente correto Jonathan. Leskin como o motorista ranheta que acredita que é cego e sua cachorra, são outros que roubam o filme.

Alguns dos pontos negativos do drama, como buracos na trama e a indecisão pelo tom da produção (ora cômico, ora desnecessariamente melodramático), assim como o final meloso demais, podem ser explicados pela inexperiência de Schreiber atrás das câmeras. Todavia, o resultado é um longa acima da média norte-americana.

Cinema, Aspirinas e Urubus



Nota: 7

É muito bom ver o bom cinema brasileiro representado na tela. A agradável surpresa da vez - talvez não tão surpresa assim, pelo passado como roteirista e curta-metragista - é o diretor Marcelo Gomes, com seu muito bem realizado: Cinema, Aspirinas e Urubus.

Passa-se no sertão nordestino, em 1942, durante a II Guerra Mundial, por onde viaja um alemão, Johan (Peter Kenath), como representante da Bayer, vendendo de maneira engenhosa o famoso remédio para dor de cabeça - leva consigo uma tela e um projetor de cinema, e em cada parada exibe documentários, sobre a pujança de São Paulo, por exemplo, e também pequenos filmes publicitários sobre o seu produto. No caminho, dá carona a várias pessoas, mas entra em cena Ranulpho (João Miguel), que passa a acompanhá-lo e ajudá-lo, por uma compensação monetária, já que seu objetivo é fugir daquela pobreza para o Rio de Janeiro. Companheiros de viagem, eles formam uma amizade que põe em relevo diferenças culturais, impasses históricos, aspirações díspares.

O filme é primorosamente bem fotografado, com luz "estourada" - que vista através do pára-brisas do carro passa a sensação de um calor infernal e interminável, transmitido junto com suas imagens áridas numa pequena tela de cinema. Não é um suposto "sertão real", mas é o sertão visto pelo olhar de quem conta a história. É um sertão imaginado, ou inventado, pela ficção e pela memória.

O diretor fala de preconceitos, invertendo o clichê, e criando um nordestino que fala mal, o tempo todo, de seus conterrâneos - numa interpretação superbacana e cheia de nuances de João Miguel - e colocando na telona um alemão - pacifista em tempo de guerra, que foge do conflito que atravessa o oceano e bate na orla nordestina (não, não é momento de se discutir a real origem das bombas que afundaram navios na nossa costa) incutindo dúvidas e medo no seu porvir.

Gomes optou por trafegar na contramão do cinema "de mercado", empobrecido pela televisão e empetecado pela publicidade, que se faz hoje no Brasil e no mundo. Em vez da redundância expositiva e da ênfase melodramática dos filmes que tratam o espectador como uma criança, Cinema, Aspirinas e Urubus investe no tempo, no "menos é mais", que deixa ao público espaço para pensar.

Nada, portanto, de locução em "off", nada de música induzindo o público a esta ou aquela emoção, nada de diálogos explicativos, nada de montagem que imponha uma visão única do objeto abordado. O filme é feito em grande medida de silêncios.

A essa economia narrativa corresponde um despojamento estético análogo. Não há nada de ornamental na fotografia (nenhum céu exuberante, nenhum cacto na contraluz do crepúsculo), o que não quer dizer que a apreensão da realidade seja ingenuamente "natural" ou documental.

Não é casual que o filme comece com a tela branca por excesso de luz e vá aos poucos alcançando a abertura e o foco justos para apresentar personagem e ambiente, com o mesmo processo sendo invertido no final. Há aí toda uma estética lacônica e poderosa.
Nada disso teria efeito se não fosse a competência dos dois atores principais, o brasileiro João Miguel e o alemão Peter Ketnath, e a perfeita alquimia entre os dois, feita de comunhão humana e tensão cultural.

22 novembro 2005

Oliver Twist



Nota: 5

O menino órfão, de posse de um sobrenome inventado, abandonado à mercê da Londres vitoriana, foge do sistema cruel da orfandade governamental, em busca da redenção da família desaparecida. Em Londres, se filia a um grupo de moleques assaltantes do submundo, liderado por um velho judeu esquizofrênico, antes de ser salvo por um bom samaritano da burguesia da cidade. Mais comum impossível, seguindo o livro à risca mesmo, bem longe daquele Polanski obscuro no qual se esperava que fosse traçado o caminho do filme.

O enredo de Oliver Twist, o clássico inglês escrito por Charles Dickens, mais citado do que propriamente lido, faz parte do inconsciente literário do último século, e é invariavelmente reverenciado aqui e ali em toda produção cultural. No cinema não é diferente, e a história já foi contada nos mais diferentes formatos, desde os tempos dos filmes mudos.

Na lista, sempre se destacam a versão de David Lean – de 1948, com Alec Guinness no elenco – e o musical Oliver!, dirigido por Carol Reed em 1968, que abocanhou uma série de Oscars. As traduções mais recentes fogem do original – como os independentes Twist, de 2003, que transportou o conto para Toronto, com prostituição gay e drogas, e Boy Called Twist, que encarnou o personagem num garoto de rua da África do Sul. Faltava, até agora, um olhar fiel do cinema moderno à história.

A missão foi assumida por Roman Polanski – ressuscitado após a aclamação de O Pianista em 2002 – com a desculpa de que queria produzir um filme para seus filhos. Mas o Oliver Twist do diretor franco-polonês mesmo fugindo de um tatibitate infantil, acaba mostrando um mundo dividido entre bem e mal, onde o bem triunfa (que novidade!) e o mal acaba sendo punido por seus erros na vida. A redenção é alcançada num burguês que "sente algo" pelo garoto, mesmo tendo-o acusado injustamente no início do filme. E mesmo tratando com ambiguidade os "vilões" no início do filme (como possuidores de um lado bom e de um lado ruim), o mal acaba prevalecendo e eles são maltratados pelo diretor na sequencia. Os bandidos que o salvam sem nada exigir e o tratam como a um irmão, são transformados em demônios no decorrer da história. Mais comum impossível.

Oliver é um guri que não quer mais do que travar contato com o básico do ser humano, o sentimento de família que nos reúne em grupos. Depois da longa e irregular introdução, quando ele chega a Londres e está longe da vida fria dos orfanatos, Oliver se filia à primeira realidade que lhe dá zelo. E, estereótipo da inocência, vai fazer parte do grupo de moleques, liderado pelo decrépito Fagin, que passa os dias cometendo pequenos furtos nas ruas.

Apesar do ambiente degradado, a primeira família de Oliver é ambígua. Enquanto ele é forçado a entrar no jogo dos jovens ladrões de Fagin, também é afagado com um certo carinho pelo velho.

O jogo de sentimentos adversos tem sua melhor tradução na última cena antes do epílogo, quando Oliver, já adotado pelo rico Brownlow, vai visitar o seu velho mestre na prisão. Condenado à forca e enlouquecido por isso, Fagin esperneia e é acalentado pelo menino, no seu último momento de semi-rendição.

O resultado da inusitada escolha de Polanski pelo conto de Dickens é uma boa adaptação, a mais fiel possível a um livro que não se pode resumir a duas horas de tela. Alguns personagens e enredos se perderam, como o meio-irmão de Oliver e a desconfiança de que ele é filho da sobrinha de Brownlow.

Ele teve grande ajuda para elevar o saldo final de Oliver Twist. A equipe técnica – do roteirista à figurinista – é praticamente a mesma que produziu O Pianista ao seu lado, já afinada à lâmina de Polanski. O trabalho de recriação da negra Londres da época, suja e degradada, baseado em gravuras da época, é um primor. No elenco, o menino Barney Clark é ótimo como o herói-mirim, em seu primeiro trabalho significativo no cinema. Mas o destaque máximo é mesmo Ben Kingsley, excelente e irreconhecível nas carnes do velho Fagin.

Porém, a vontade do diretor de seguir quase letra a letra o enredo original também acaba sendo seu maior tropeço. A carga de relacionamento humano que existe em Dickens se perde na inquietação de fazer a história seguir seu rumo de acontecimentos. O Oliver Twist polanskiano é uma ótima acomodação do enredo original, mas lhe falta um punhado de inovação.

De um lado, Polanski realizou um trabalho correto, mesmo que nunca brilhante. Mas, de outro, gastou inacreditáveis 50 milhões de euros para contar essa história de forma fiel e nada inovadora. O filme se faz ver porque a história tem força, o roteiro de Ronald Harwood (O Pianista) delineia bem o tempo e os personagens, e o esforço de produção é visível. Mas isso não eleva o filme acima de sua irrelevância.

Com certeza, Ben Kingsley (Casa de Areia e Névoa) está fascinante como o crápula Fagin, mas Barney Clark faz um Oliver Twist choroso e de fala titubeante, numa leitura banal do personagem. Imaginava-se outro tipo de filme para Polanski assistir com seus pequenos.

10 novembro 2005

Crash - No Limite



Nota: 8,5

Ultimamente, vivemos tão isolados e sem perceber o que se passa à nossa volta que às vezes é preciso um bom "encontrão" para lembrarmos que estamos vivos. É com esse pensamento em mente que Paul Haggis estréia na direção com Crash – No Limite (Crash, 2005). Haggis ganhou notoriedade suficiente para dirigir seu primeiro longa-metragem depois de escrever o ótimo roteiro de Menina de Ouro.

Na história, Jean Cabot é a mimada esposa de um rico promotor e vive numa cidade do sul da Califórnia. Sua rotina é alterada quando seu carro de luxo é roubado por dois assaltantes negros. O crime culmina num acidente que acaba por aproximar habitantes de diversas origens étnicas e classes sociais de Los Angeles: um veterano policial racista, um detetive negro e seu irmão traficante de drogas, um bem-sucedido diretor de cinema e sua esposa, além de um imigrante persa e sua filha.

Mas não pense que a narrativa pertence a algum protagonista em especial. Todos estão lá como peões num intricado tabuleiro de emoções que afloram conforme eles se encontram, ou melhor, se esbarram no acaso da vida do dia-a-dia. Nesses encontros, os personagens tomam consciência de quem realmente são e a maneira como conduzem suas vidas, muitas vezes patéticas. O sentimento que serve de fio condutor é o racismo presente nos EUA, um tema que tende a ser empurrado para debaixo do tapete.

O racismo está presente em todos os grupos étnicos que vivem nos EUA, mas é Los Angeles a cidade escolhida como cenário. Esse palco, entretanto, não tem nada de preto e branco, como no tão explorado caso do afro-americano Rodney King (motorista negro espancado por policias brancos). O argumento de Haggis é colorido como um arco-íris de etnias. Latinos, muçulmanos, brancos, negros, todos fazem parte e contribuem para o problema.

As coincidências do roteiro podem ser acusadas de improváveis e as narrativas paralelas podem ser sistemáticas em excesso - a tal ponto que fazem lembrar Magnólia, do diretor Paul Thomas Anderson. Mas isso não tira a força da direção e nem das surpresas na história, co-escrita por Haggis e Bobby Moresco. A trama envolvendo o latino e o persa é a mais envolvente e brilhante. Sua conclusão é de causar frio no estômago e até aqueles que se dizem contra o racismo se descobrem inconscientemente enraizados no problema.

O elenco está soberbo. Paul Haggis tira leite de pedra, visto que até mesmo Brendan Fraser e Sandra Bullock convencem em seus papéis. Todos estão lá a serviço da contundente história, representando não só os diversos grupos, mas também as diferentes classes sociais. Suas frustrações são exorcizadas em pura agressividade, como uma forma de canalizar a depressão e o sofrimento de sentir-se excluído. E isso acaba transformando toda pessoa estranha em um potente inimigo.

Crash não é o filme definitivo nem irá provocar uma profunda reflexão sobre o assunto. Sua intenção é ser um retrato verdadeiro de uma sociedade que se vende como moderna, mas que, ao mesmo tempo, se revela arcaica ao não conseguir resolver um dos problemas mais graves da convivência humana. À sua maneira, consegue fazer uma reflexão tocante sobre a alienação social moderna e a paranóia. Se tivesse aparecido há 10 anos, talvez ainda pudesse ser considerado um trabalho original e corajoso.

Cidade Baixa




















Nota: 7

O cineasta baiano Sérgio Machado não esconde uma certa satisfação quando comparam o seu Cidade Baixa ao clássico francês Jules e Jim. Mas ele também deixa claro que ao criar um triângulo amoroso em Salvador, ele tinha outros objetivos, diferentes do mestre François Truffaut.

"Eu queria fazer um triângulo amoroso diferente do tradicional - sem a morte e a punição", contou em entrevista à Reuters. "Também tinha um desejo de tentar entender esses jovens de 20 anos, de classe baixa. Foi isso que me impulsionou a escrever o filme."

O longa é protagonizado por Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga e conta a história de um amor inusitado entre o trio. Machado deixa claro que com seus personagens não queria fazer "um tratado sociológico sobre malandros, sobre prostitutas e sobre a Bahia". Ele sabe que a história é universal. "O essencial é comum às pessoas", definiu.

Para realizar esse desejo de fazer um roteiro sobre esses jovens, Machado contou com a ajuda do cineasta e roteirista cearense Karim Ainouz (Madame Satã), além de uma extensa pesquisa de campo visitando barzinhos e casas de strip em Salvador durantes 3 meses.

"O roteiro do filme tem muito das histórias que ouvi dessas pessoas da noite. Muitos até aparecem no filme, ficaram meus amigos", disse o diretor.

O estroboscópio, peça onipresente nas boates-prostíbulos de Salvador, é um dos símbolos fortes do belo Cidade Baixa. A luz pulsa o tempo todo como os altos e baixos do triângulo amoroso da história.

Menina com jeito de mulher, Karinna está deixando o quarto que tem foto de Rodrigo Santoro na parede. No bar, ela pergunta por carona de estrada e quem responde são os barqueiros Deco e Naldinho. Podem levá-la até Salvador em troca de sexo, oferecem. Começa aí, no primeiro minuto de filme, uma relação que vai gerar ciúme e rancor na capital.

Alice Braga, a pretendida de Buscapé em Cidade de Deus, é quem vive Karinna. Lázaro Ramos (O Homem Que Copiava) e Wagner Moura (O Caminho das Nuvens) são Deco e Naldinho. Os personagens têm muito da personalidade dos atores. Karinna é meiga, mas determinada. Deco esconde medos por trás da carranca. E Naldinho banca o impulsivo. Os dois se conhecem de infância, administram o barco juntos, são inseparáveis, como os melhores amigos Lázaro e Wagner.

A idéia do estroboscópio se encaixa bem aqui. Como na lâmpada que alterna luz e escuridão em ritmo acelerado, a fim de garantir uma sensação truncada de movimento, Cidade Baixa avança enquanto força o espectador a preencher as lacunas, os escuros da trama. O que o roteiro oferece dos perfis de Deco e Naldinho – cumplicidade em vida e morte, juras de amizade - é proporcional ao que esconde – segredos de adolescência, rivalidades veladas, competição em todos os níveis.

Falou-se até aqui apenas dos personagens e das atuações porque todo o trabalho do diretor estreante em longas de ficção Sérgio Machado (do documentário Onde a Terra Acaba) foi pensado em função do trio. No material cedido à imprensa, ele diz que não queria um tratado sociológico sobre a zona portuária ou os bares de Salvador, apesar de titular o filme com a região e enquadrar constantemente a população figurante. Queria falar de gente, de pessoas que sentiriam a mesma coisa – medo, decepção, desespero, paixão, raiva – se estivessem em qualquer outro lugar do mundo.

Esse "investimento no pessoal" começa pela preparação do elenco, papel de Fátima Toledo (de Cidade de Deus). Profissional de pouca visibilidade junto ao público, é ela quem esquenta os atores para a jornada carnal que na tela parece de verdade. Foi Fátima quem disse no primeiro dia de ensaio: "Ninguém aqui vai compor personagem, vocês são vocês".

A opção pela câmera na mão e pela iluminação baixa também ajuda nesse privilégio da liberdade cênica. Sem tripés ou holofotes ao redor, os atores podem se movimentar, improvisar, extravasar – a câmera é quem corre para acompanhá-los. O resultado é uma película com tom de urgência, granulada, de cores vivas e tons que vão sem medo do preto completo ao branco cegante, novamente como a luz estroboscópica.

"A gente não sabe nunca ao certo onde colocar o desejo", cantava com sabedoria Caetano Veloso em "Pecado Original", que embalava as desventuras eróticas de "A Dama do Lotação". O filme é outro, mas a canção não soaria deslocada se acompanhasse os encontros e desencontros de Deco, Karinna e Naldinho em "Cidade Baixa", bela estréia na ficção de Sérgio Machado.

A sós, a dois ou a três, não importa o número, o fato é que com o desejo a conta nunca fecha. É o que experimentam na pele e na alma os amigos barqueiros, que levam uma vida aparentemente ordenada até que cruzam o caminho de Karinna, garota capixaba que ganha a vida na prostituição.

Cidade Baixa é o recorte dessas vidas desde o momento em que elas se encontram até o momento em que elas não acabam. Por isso não busca o inverossímil das ficções completas. O filme começa como um boat-movie e continua como perambulação pelas ruas de Salvador, ambas condições que permitem a Machado deixar a ficção aberta, com as linhas do destino combinando-se e recombinando-se não de modo aleatório, mas desenhando os fluxos do desejo, na medida em que este traça as linhas de atração e de repulsão entre seus personagens.

Ao fazer isso, opta por uma tradição moderna da ficção cinematográfica incompreensivelmente sem muitos representantes no Brasil. Nela, o filme resulta menos de um roteiro elaborado demais, mas, aparentemente deixa-se levar, ou melhor, nutre-se de uma atenção da câmera aos atores, guiada por seus gestos e olhares.

Nada disso seria encantador se não fosse a presença magnética da trinca Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura, que se distancia do modo de representação da TV em proveito de composições de riscos. O naturalismo que alcançam não tem a ver com o "parecer natural" dos atores de novela. Aqui, eles são postos em cena inteligentemente menos como máscaras e mais como corpos, que a câmera não poupa de capturar em sua beleza e em sua feiúra, marcas, suor e lágrimas.

Em vez de buscar um cinema de fórmula, Machado acha seu lugar tomando um atalho no qual valoriza em detalhe a imperfeição: da história, dos atores, do roteiro e de tudo o que emana da vida.

Sem almejar uma indicação ao Oscar nem arrastar multidões ao cinema, Cidade Baixa representa aquilo que deve ser essencial na busca de uma cinematografia sólida: um ponto de vista assumido, a recusa do clichê, uma capacidade de traduzir idéias e emoções sem precisar mimetizar soluções alheias, enfim, um modo de expressão capaz de ser admirado pelo próprio país e pelo mundo.

07 novembro 2005

29ª Mostra de Cinema de São Paulo



Mostra de Cinema de São Paulo

Acabou a Mostra de Cinema de São Paulo! E como sempre, gastei algumas horas de minha vida nas imensas filas (tanto para comprar ingresso, quanto para entrar nas salas), mas valeu a pena, pois assisti a pelo menos uns 15 ótimos filmes, que talvez nunca entrarão em cartaz na América Latina. Gostaria de ter mais dinheiro para poder assistir a todos os filmes que almejo (no caso seria uns 30), mas infelizmente nem rolou. Mas fazer o quê? É a vida. Pelo menos tive a oportunidade de assistir uma dúzia de bons filmes em 2 semanas, muito melhores que as centenas de enlatados norte-americanos que recebemos em nossos cinemas todos os anos. Vou citar brevemente os filmes (que conseguir relembrar) e fazer uma pequena crtítica de cada, pois esse momento não pode ser esquecido. Tenho que aproveitar enquanto está quente em minha mente cinéfila esses filmes e passar para o computador, pois daqui alguns meses não passarão de recordações breves. Oh memória cruel...


Al Otro Lado: Três histórias que mostram o outro lado da "busca pela terra prometida" das imigrações, o lado dos que ficam. Um garotinho cubano, um mexicano e uma árabe tentam, cada um à sua maneira, buscar seus pais fugitivos. São histórias tristes e comoventes, mostrando que nem sempre vale a pena largar sua vida, para ser escravo em outro país.

Uma Mulher contra Hitler: Mais um grande filme alemão, com a atriz principal de Edukators. Durante a 2ª GM, na Alemanha, um grupo tenta convercer os alemães, que Hitler não é tão bom assim. Eles são presos e condenados à morte. Mas é quando eles estão nas celas, nos tribunais e no meio dos nazistas que surgem as maiores discussões e debates acerca do nazismo na Alemanha. Diálogos muito bons e que nos fazem pensar muito na nossa realidade atual.

500 Almas: Documentário brasileiro que mostra uma região outrora habitada apenas por índios, que agora está irreconhecível. O diretor revive uma época, uma cultura e uma língua que está quase extinta. Esse documento registra uma cultura que foi quase exterminada, mas que ainda resiste bravamente. As poucas pessoas que se recordam - por meio de histórias contadas pelos parentes - como era a vida no local e que lembram algumas das palavras da língua, estão velhas e levarão consigo para o túmulo, muito da verdadeira história nacional.

Rosario Tijeras: Na periferia da Colômbia, conhecemos algumas vidas de miseráveis colombianos, que assim como nós brasileiros, vivem na injustiça e desigualdade, escolhendo o caminho do furto e do crime. Rosario é pobre, sem opções ou perspectivas e resolve roubar, traficar e matar, para conseguir sobreviver.

O Passageiro: Ao saber da notícia da morte de seu irmão, homem resolve preparar as coisas pro enterro. Sem avisar nada pra ninguém, no sigilo, ele chega na cidade e fica na pousada de uma mulher. E durante sua estada no local, se envolve com a dona, que era ex-namorada do irmão e seu filho. Quando ambos descobrem quem ele é na verdade, ficam indignados, pois confiaram nele e ele não comentou nada sobre a morte. Filme francês.

Notícias Lejanas: No México, uma família muito pobre sobrevive com o esforço e suor do pai. O menino mais velho é educado a servir os outros e não roubar, o que o deixa revoltado. Com um pouco mais de idade, foge de casa e vai tentar a vida na cidade grande. Após sofrer muito, morar na rua, ser maltratado e humilhado, acaba conhecendo uma mulher que o ajuda. Vai melhorando de vida, como trabalhador-escravo em uma empresa. Ao juntar um pouco de juntar dinheiro, vai atrás dos pais, para convence-los a vir morar na cidade. O pai o expulsa de casa e diz que prefere morar ali, mas acaba sendo morto pelo filho. Ele leva a mãe e o irmão menor pra cidade, mas acaba colocando-os em instituições.

Lemming: Tudo ia bem na vida de um casal de recém-casados, até o chefe dele ir jantar em sua casa. A mulher do chefe explode em ira contra o marido, o que acaba constragendo todos e fazendo o casal pensar: será que um dia ficaremos assim? As coisas só pioram depois disso. Aparece um lemming no encanamento da casa, o homem começa a ter alucinações, a mulher do chefe se mata na casa deles, a esposa incorpora o espírito da velha, começa a transar com o chefe, larga o marido e diz que só vai deixar o corpo de sua mulher, se ele matar o chefe. Af.

Dumplings: Uma chinesa de mais de 80 anos, que aparenta ter 20, descobriu a fonte da juventude: comer fetos humanos. Com essa indústria da beleza ganhando milhões, o filme é uma crítica a esse facismo do corpo. Uma rica atriz, resolve ganhar a beleza de volta para agradar o velho marido que enjoou dela, procurando a tal chinesa. O filme é nojento, mas mostra como as pessoas fazem de tudo para serem eternamente jovens.

Palindromes: Todd Solondz faz o que sabe melhor: chocar. Usando como história uma garota de 13 anos que queria ter um filho, mas é obrigada a abortar pelos pais, ele mostra inúmeras situações absurdas vividas pelas mulheres. São 9 atrizes diferentes que interpretam o mesmo papel. É como se todas as mulheres fossem uma, fossem condicionadas a serem uma só. O diretor, mostrando a saga da garotinha para ter um filho, fala sobre sexo, aborto, pedofilia, religião e cutuca como ninguém a tão abalada moral norte-americama.

A Batalha do Chile: O melhor filme da Mostra, sem dúvida, é divido em 3 partes. O documentário de 1975 é em preto-e-branco, e mostra todo o empenho das elites nacionais e do governo norte-americano, para derrubar o governo democraticamente eleito de Salvador Allende. O documentário é forte, tem muito material, muitas imagens, muitas entrevistas e nos faz pensar constantemente no que ocorreu e no que virá. Saimos da sala da cinema indignados. É como se 1975 fosse hoje. Os EUA estão repetindo tudo de novo e com o mesmo discurso. Esse é o outro lado do 11 de setembro, que ninguém mostra.

Sonho Tcheco: Um ótimo filme tcheco e não é sempre que assistimos um filme tcheco. Como trabalho de fim de curso na faculdade, dois jovens resolvem criar um supermercado. No início do filme eles nos mostram o domínio que os supermercados exercem na vida das pessoas, nos países integrantes da ex-URSS. Eles resolvem então, para mostrar a alienação do povo, criar um supermercado, criar logomarca, produtos, propagandas, marketing, música, para ver se o povo vai ir para lá. O filme inteiro mostra o trabalho deles na criação de uma marca, e mostra até onde vão as pessoas que trabalham com publicidade, marketing, propaganda, com as mídias, para vender algo. É como que se fosse: vender a alma para o demônio. Os caras sabem muito bem como controlar e alienar o povo. Após a criação de tudo, no dia combinado para a abertura, o lugar enche de pessoas. E todos ficam indignados ao ver que foram enganados. Isso os faz pensar e analisar o quanto são dominados e controlados pela mídia. Esses estudantes ficam famosos em todo país.

Good Night and Good Luck
O Gosto das Meninas
Eviannaive
La Sagrada Familia
Rabbit On The Moon
Blood and Bones

A Noiva-Cadáver



Nota: 9

Não precisamos ir muito longe para lembrar da época em que os casamentos eram arranjados por interesses, fossem eles políticos ou financeiros. Ou ambos, como no caso da união entre Victor Van Dort (voz de Johnny Depp) e Victoria Everglot (Emily Watson). A família do noivo é dona de uma lucrativa indústria de peixes enlatados. São os noveaux riches da região. Gente de classe baixa que conseguiu subir na vida comprando casarões, roupas da última moda, confortáveis meios de transporte, mas não tem classe ou prestígio junto aos nobres de berço. É o caso inverso dos Everglot, aristocratas que já nasceram ostentadores, de nariz empinado, mas hoje vivem apenas dessa sua aparência, escondendo sua bancarrota.

Mas não pense que este é mais um enfadonho filme da época vitoriana inglesa. Bom, na verdade, a época é essa, mas estamos falando da nova animação em stop-motion (em que bonecos e cenário são fotografados quadro a quadro) de Tim Burton. No ótimo O Estranho Mundo de Jack (Nightmare Before Christmas, 1993) o cineasta mostrou os universos onde vivem os personagens efemérides, como os monstros do Dia das Bruxas, o Papai Noel, etc. Desta vez ele se baseia em uma lenda russa para contar a história de Victor, que depois de arruinar o ensaio de seu casamento foge para o meio do bosque e, sem querer, acaba se unindo a uma jovem morta anos atrás e que desde então esperava pela promessa de amor eterno.

O humor negro permeia a história, como é típico nos filmes de Burton. São piadas físicas, como olhos pulando e braços caindo, ou mais textuais, várias delas ditas por um verme (voz de Enn Reitel, mas cara de Steve Buscemi) que vive dentro da cabeça da Noiva-Cadáver (Helena Bonhan Carter).

O curioso é notar que Burton cria o além-vida de uma forma muito mais animada que o mundo dos vivos. Enquanto os mortos se divertem, com muita música, bebidas e coreografias de fazer, literalmente, chacoalhar o esqueleto, os terrenos se comportam como zumbis e se movem por um mundo gótico e acinzentado.

Neste longa co-dirigido por Mike Johnson, Burton usou outra de suas marcas registradas: as parcerias. Com exceção de Emily Watson, que faz seu primeiro trabalho ao lado do diretor, os demais personagens principais são todos ex-colegas do descabelado cineasta. Como Victor temos Depp, que antes já havia protagonizado Edward Mãos de tesoura, Ed Wood, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e A Fantástica Fábrica de Chocolate. Helena Bonhan Carter, além de ser esposa de Burton, fez com ele Planeta dos Macacos, Peixe Grande e A Fantástica Fábrica de Chocolate. Christopher Lee, que aparece pouco como o pastor Galswells, também está lentamente entrando no clube. Esta é a terceira aparição do ator na filmografia do diretor. Quem também não poderia ficar de fora é o compositor Danny Elfman, que trabalhou em todos os filmes de Burton desde A Grande Aventura de Pee-Wee, de 1985. Elfman desenvolve mais uma excelente trilha sonora e ótimas canções que servem para contar os dramas dos mortos.

Como se pôde notar, três dos atores acima citados estavam em A Fantástica Fábrica de Chocolate e isso não é coincidência. Aproveitando a presença dos artistas para o calórico remake, Burton usava os fins dos dias para gravar as vozes que posteriormente foram adicionadas às animações. A estréia de Depp como dublador, aliás, é excelente! A entonação de voz que ele empresta a Victor é a de um jovem muito tímido, nada que lembre, por exemplo, o Jack Sparrow de Piratas do Caribe, ou o excêntrico Willy Wonka.

Enquanto Tim Burton continuar fazendo ótimos filmes como este, ora dramáticos, ora cômicos, trágicos e românticos, mas sempre criativos e bastante autorais, sua relação de amor com o público deve continuar. Eu mesmo estarei ao seu lado... no sucesso e no fracasso, até que a morte nos separe!

O Jardineiro Fiel



Nota: 8,5

Depois de alcançar grande sucesso internacional com Cidade de Deus (2002), Fernando Meirelles foi convidado a dirigir uma produção estrangeira, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardner, 2005). Ele entrou para substituir o inglês Mike Newell (Quatro Casamentos e um Funeral, O Sorriso de Mona Lisa), que acabara de ser contratado para dirigir o quarto Harry Potter. Com a mudança, a pegada sentimentalóide que Newell possivelmente imprimiria ao longa ficou em segundo plano. Com Meirelles, a adaptação do romance de espionagem de John Le Carré fica mais fiel ao original: carregado de suspense, tensão e crítica sociopolítica.

Tessa (Rachel Weisz) é uma fervorosa defensora dos direitos humanos. Ela conhece o diplomata Justin Quayle (Ralph Fiennes) em um pronunciamento feito por ele na ONU. Ao questioná-lo de forma passional sobre a participação da Inglaterra na guerra do Iraque, Tessa se excede. Isso aproxima os dois, que acabam iniciando um relacionamento. Ao saber que Justin seria transferido para África, pede para ir junto. Lá, se envolve nos problemas de saúde do Quênia e, junto com o médico Arnold (Hubert Koundé), descobre uma manipulação farmacêutica de interesse econômico que pode estar matando a população. No caminho de sua investigação, a convicta Tessa termina encontrando a morte. Justin, até então o pacato e alienado diplomata interessado em botânica e jardinagem, resolve descobrir o que existe por trás - e há muito - do assassinato de sua esposa.

A parte técnica do filme se faz notar. A câmera age como se fosse um personagem. Às vezes, ela entra apressada, nervosa. Espécie de terceira pessoa na ação, em busca de um melhor ângulo de visão, passeia entre os atores e objetos em cena, até encontrar lugar que a satisfaça. A edição também contribui nessa agilidade, pontuando os flashbacks com o momento real. Adicione o visual saturado do diretor de fotografia César Charlone, o mesmo de Cidade de Deus, e tem-se uma estética muito parecida com a do filme brasileiro.

Esta plasticidade do cinema de Meirelles - ou seriam cacoetes? - anda livremente pelas favelas do Quênia e carrega o filme de urgência. São imagens coloridas, granuladas, que contrastam com tamanha pobreza e sofrimento. Ocorre o inverso nas cenas filmadas na Europa. O ambiente é opaco, acinzentado, depressivo. Todos estes elementos ajudam o espectador a entender o amor que Tessa sentia pela África. A música de Alberto Iglesias, responsável por ótimas trilhas dos filmes de Pedro Almodóvar, também colabora para criar o clima poético necessário para se entender como a relação de Tessa e Justin, que começou por acaso, tornou-se tão forte.

A história de Le Carré roteirizada por Jeffrey Caine, caso fosse filmada por Newell, certamente valorizaria mais o lado romântico. Ralph Fiennes e Rachel Weisz são técnicos o bastante para carregar a trama. É difícil saber como seria o resultado, mas é fato que Meirelles soterra um pouco a dramaturgia debaixo dos seus carregados maneirismos. O filme parece ter sido encomendado para faturar premiações. Existe toda uma campanha imbuída nesse objetivo - e não será surpresa nenhuma se vier o aval do Oscar nas categorias principais.