08 dezembro 2004

Nina



Nota: 7

No livro Hitchcock/Truffaut, o ícone francês da Nouvelle Vague entrevista o mestre inglês do suspense. Entre outras coisas, pergunta-lhe sobre uma eventual adaptação de Crime e Castigo (1866), o clássico de Fiodor Dostoievski (1821-1881) que possui todo tipo de elemento familiar aos temas hitchcockianos, como morte, solidão e culpa.

Ele rejeita, e explica: “O que não entendo é que alguém se apodere totalmente de uma obra, de um bom romance que o autor levou três ou quatro anos para escrever e que é toda a vida dele. Se você pega um romance de Dostoievski, não apenas Crime e Castigo, qualquer um, todas as palavras ali dentro têm uma função. Para expressar a mesma coisa de modo cinematográfico, seria preciso um filme de seis ou dez horas”.

Hitchcock não gostava de escrever. Passou a carreira transformando romances menores em obras-primas. Neste caso específico, tinha razão. A criação definitiva do russo, um dos maiores ensaios morais da história da literatura, exige respeito. Desencoraja aventureiros com as suas caudalosas quinhentas páginas, com os seus personagens que tomaram vida, se encorparam ao longo de todos esses cento e tantos anos e impregnaram o imaginário mundial.

Corajoso em sua estréia na direção, o publicitário Heitor Dhalia decide tomar o clássico para si. Numa livre releitura, tira-o de São Petersburgo e o contextualiza na São Paulo dos dias de hoje. O brasileiro não tem o perfeccionismo exacerbado de Hitchcock. Também não tem medo de errar. Então faz do protagonista Raskolhnikov uma menina, Nina.

Perene pesadelo

Parceria com outro destemido, o roteirista Marçal Aquino, Nina (2004) parte da mesma premissa do clássico russo. Nina (Guta Stresser, do humorístico global A grande família), como Raskolhnikov, vive num quarto insalubre com o pouco dinheiro tirado de empregos rasos. Não faz muito para mudar de vida, é verdade. Mas a vida também não faz por merecer. Tanto ela quanto ele se indignam, mesmo, com a fartura alheia. O russo assassinou uma velha rica a machadadas por causa disso – e ela nem havia lhe causado mal algum. Já Nina tem motivos vários para cair matando no pescoço de Dona Eulália (Myriam Muniz, excelente na caricatura que lhe cabe).

As diferenças começam aí. Não havia esse esboço de maniqueísmo no clássico. Dona Eulália, dona do apartamento onde Nina aluga um cômodo, ganha logo a antipatia do público por roubar-lhe as correspondências, escravizá-la com a limpeza doméstica, por negar-lhe comida até que receba o aluguel. O público toma imediatamente as dores de Nina, e isso periga comprometer a vocação crítica e imparcial do filme.

Dhalia atenua essas desvantagens com vigorosas opções estéticas. Nina pode ter poucos momentos de originalidade genuína – como a emblemática e genial passagem do cego, que inexiste no livro - mas as suas imagens são certamente memoráveis. Filmado nas locações capengas do centro da cidade, com objetos de cena reciclados ou “catados”, o filme transpira sujeira. Transmite, assim, juntamente com as animações viscerais de Lourenço Mutarelli, mais emoção do que a limitada Guta Stresser é capaz.

Seria mais um produto da safra nacional tecnicamente impecável, mas inseguro na dramaturgia, se a porção final não reservasse gratas surpresas. No seu momento mais introspectivo, de tempos-mortos que traduzem o caos na cabeça de Nina, o filme consegue finalmente sair da sombra de Dostoievski. É, finalmente, a reinvenção prometida desde o começo. E não são precisas todas as horas que calcula Hitchcock.

Dhalia pega ilusão e realidade e os embaralha, à moda de David Lynch e David Cronenberg. Em Crime e Castigo essas duas perspectivas não se misturam durante as febres de Raskolhnikov: a morte do cavalo é sonhada, mas os pintores estão lá, assim como o acusador da rua e a polícia também são de carne-e-osso. Aqui, ficam as dúvidas. Onde terminam os fatos e começam as alucinações de Nina? Afinal, houve crime ou não? Será também nosso, meu e seu, esse perene pesadelo da urbanidade?