23 maio 2006

Retratos de Família



Nota: 8

Enquanto Hollywood - com raras exceções - emburrece cada vez mais, numa autofagia explosiva de idéias que privilegia refilmagens, continuações e adaptações; seu primo pobre, o cinema autoral independente, fica cada vez mais maduro e interessante.

Retratos de Família (Junebug, 2005) é excepcional exemplo dessa balança desequilibrada. Um drama cômico extremamente simples, mas que explora com competência o sentimento de inadequação pelo qual tantos de nós passamos em algum momento da vida.

O recado é dado logo no início de forma brilhante. No meio do mato, cantores "hollers" (uma espécie de música sulista que lembra os tiroleses centro-europeus), que não têm absolutamente nada a ver com a trama, enchem os pulmões e entoam suas estranhas canções, gerando imediatamente uma estranheza exótica e ao mesmo tempo fascinante.

Deve ser exatamente isso o que sente a marchand Madeleine (Embeth Davidtz) quando segue até o interior do estado da Carolina do Norte para encontrar um artista excêntrico e aproveitar para, finalmente, conhecer a família de seu marido. Linda e antenada filha de diplomatas, ela tem sotaque britânico, nasceu no Japão e mora na cosmopolita Chicago, onde é dona de uma galeria especializada em arte transgressora.

Seu estilo de vida contrasta de maneira gritante com o dos parentes de George (Alessandro Nivola), seu marido. A mãe (Celia Weston) não gosta de forasteiros e parece incapaz de sorrir. O pai (Scott Wilson) vaga pelo porão cuidando de seus hobbies e fala pouco. O rancoroso irmão mais novo, Johnny (Benjamin McKenzie, excelente - nem parece o garoto da série The O.C.), trabalha como empacotador e largou a escola quando sua namorada, Ashley (Amy Adams), ficou grávida. E, claro, há o próprio George, que após três anos sem pisar em sua terra natal parece tão hipnoticamente perturbado que some durante boa parte do filme... até ser necessário à família.

As interações, ora levemente cômicas, ora tristes, como o próprio filme, nunca parecem exageradas ou falsas, já que o diretor estreante Phil Morrison soube reunir um elenco sensacional. Os personagens surgem reais mesmo nos casos mais estapafúrdios, como a fascinada e inocente tagarela Ashley, cuja interpretação rendeu até uma merecidíssima indicação ao Oscar para Amy Adams (uma de suas cenas, com ela sozinha na cama dói como uma faca atravessando o peito).

Um diálogo entre Madeleine e seu sogro exemplifica esse estilo de atuação. "Ela tem personalidade forte", diz a moça - educadíssima - sobre a sogra. "Ela é assim mesmo. Se esconde. Não é assim por dentro", e completa, "... como a maioria".

A opção pela narrativa descentralizada, na qual fica difícil identificar-se com um personagem específico, também é louvável, bem como a excelente utilização de econômicas elipses e a contemplativa câmera que passa às vezes segundos sem mover-se, congelada no tempo à espera de acontecimentos em quadro. A estética potencializa assim as poderosas observações sobre a família e a vida que o diretor propõe.

Dia de Festa



Nota: 9

São Paulo tem mais de um milhão de pessoas morando em suas duas mil favelas. 8.700 vivendo debaixo de pontes e viadutos. 400 mil imóveis na cidade estão abandonados. São esses números, intermediados pelo artigo 182 da Constituição - o Poder Público municipal pode desapropriar solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado -, que tornam a causa do documentário Dia de Festa (2006) uma causa justa.

Com essa prerrogativa "do Bem", o cineasta Toni Venturi deixa de lado a isenção e cria uma peça de defesa do MSTC, o Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo. O projeto começou quando o arquiteto franco-argentino Pablo Georgieff, há dois meses dividindo as experiências dos sem-teto na metrópole, em sua busca por soluções de moradia popular no mundo inteiro, convidou Venturi a registrar as imagens em forma de documentário. O que era para ser um painel sociológico ganhou contornos de thriller: em outubro de 2004, os dois acompanharam a ocupação de sete prédios vazios do Centro pelo MSTC e o consequente choque com a Polícia Militar.

O dia de festa do título é o apelido dado, no movimento, a essas ações. Os sem-teto são os "convidados" da ocupação. Existe muito de provocação e de vocação para o enfrentamento nessa terminologia - mas o documentário não está atrás apenas das palavras-de-ordem. São os dramas humanos por trás das estatísticas que interessam a Venturi, e ele pega quatro boas personagens para ilustrar a causa. Neti, Silmara, Janaína e Ednalva são mulheres de idades distintas, umas são mães, solteiras, outras são mais novas. Em comum, além do posto de organizadoras do Movimento, a condição de batalhadoras independentes. Elas se apóiam na união para armar a "festa", mas as moradias temporárias são festejadas como conquistas individuais.

Mais até do que conquistas individuais, conquistas femininas. Não é difícil perceber, pelas imagens, o apreço que Venturi nutre por seus documentados. O sentido de família (de comuna?) é onipresente - a câmera enfoca frequentemente bebês dormindo um sono tranquilo no chão limpo e iluminado daquilo que antes da ocupação era uma fábrica suja e sem luz. Do outro lado, a frieza do helicóptero de patrulha que corta o céu nublado, entre o concreto dos prédios, e o bloco sem face do batalhão de choque. Que a certa altura Dia de Festa registre in loco as meticulosas negociações entre a PM e o MSTC, o tipo de civilidade que não se vê nos programas policialescos da TV, é um oportuno e equilibrado achado documental. Mas isso não dissipa o tom geral de panfleto. Causa justa, vale repetir, mas ainda assim um panfleto da família sem-teto.

Cinematograficamente, as ousadias narrativas são poucas, mas é curioso notar como Venturi recorre a um símbolo forte de seu mais recente filme de ficção, o bom Cabra-Cega (2005), para pontuar também Dia de Festa. É a imagem, tomada da beira de um terraço, do mar cinza de prédios da cidade. Na história do guerrilheiro encarcerado, esse horizonte diminuía a sua figura, sendo a cidade metáfora do contexto (a ditadura) que o sufocava. No caso das mulheres do MSTC, divagar acima de São Paulo não é uma resignação, mas uma oportunidade. Os incontáveis edifícios são oportunidades. Como Neti, Silmara, Janaína e Ednalva, um milhão de paulistanos passa pela mesma provação - e isso as engrandece.

A Concepção



Nota: 8

Exercício de suposição abstrata: se A Concepção (2006) chegasse à TV aberta, sua sinopse seria algo como “uma galerinha do barulho que vai aprontar altas travessuras nas suas férias de verão, deixando todo mundo de cabelo em pé”. O sexo e drogas desenfreados, acabam aproximando mais o filme de coisas como American Pie, e perdendo um pouco de sua crítica metafísica da realidade. O questionamento perdendo importância para a venda da mercadoria. Querendo vender o filme, acho que os realizadores não mantiveram a ideal até o final. E o filme se suicida antes do fim, com um certo esforço em chocar a audiência.

O filme do brasiliense José Eduardo Belmonte, vem dividindo opiniões desde sua primeira exibição, em novembro de 2005, no Festival de Brasília. O longa, que estréia em pequeno circuito em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília na sexta-feira, saiu do festival com dois prêmios - melhor montagem e melhor trilha sonora.

Admirado por sua agilidade técnica, uma câmera muito inquieta e efeitos de animação que têm tudo a ver com a história, A Concepção também chocou por suas muitas cenas de nu frontal (inclusive de atores conhecidos, como Matheus Nachtergaele e Milhem Cortaz), algumas sugerindo sexo grupal e consumo de drogas do início ao fim. Com certeza, nada é gratuito numa história que pretende formar um retrato de uma juventude rica, fútil e inconsequente nos altos círculos da capital do país.

Alex (Juliano Cazarré), Lino (Milhem Cortaz) e Liz (Rosane Holland) são três filhos de diplomatas que dividem um grande apartamento em Brasília. Os pais de todos estão sempre longe, apenas pagando as contas. Ninguém trabalha, estuda ou tem qualquer objetivo. O cotidiano é sexo, drogas e rock'n'roll.

Então aparece X (Matheus Nachtergaele), que se torna uma espécie de guru deste grupo, que não mostra nenhuma vontade de pensar nada por si mesmo. E o guru propõe que se siga daqui para a frente o "concepcionismo". Uma teoria de vida que elimina o ego e a identidade a partir da negação da memória. Todos queimam os próprios documentos e mergulham cada vez mais numa rotina de excessos.

Nota-se aqui uma óbvia inspiração do roteiro (assinado por Luís Carlos Pacca e Breno Álex) em Os Idiotas (1998), de Lars von Trier, que seguia um grupo de jovens, moradores de uma mansão colocada à venda e que passava seus dias tentando romper com todo tipo de convenções sociais. Claro que o filme do dinamarquês é altamente politizado e crítico, enquanto que não compreendemos muito bem a que veio o do brasileiro.

Pelo menos na intenção, o diretor não quis chocar ninguém. Como ele disse, ao apresentar o filme em Brasília, ele considera seu trabalho "um pequeno passo para retomar a utopia desta cidade e o sonho de um país melhor". A se levar a sério esta intenção, Belmonte acredita que recuperar a utopia começa pela exposição da falência da situação atual.

Um problema é que o filme não define satisfatoriamente os personagens, já que todos eles são unilaterais demais para que se chegue o que parecia ser um retrato de geração. Mesmo assim, A Concepção tem qualidades.

No centro do enredo, um grupo de jovens cujo único problema aparente é a cidade onde vivem: Brasília, o inferno do planalto, responsável pelo desequilíbrio mental de seus habitantes. Longe dos pais, desesperados pelo tédio e pelo achaque psicológico da sociedade moderna, resolvem criar um movimento pseudo-anarquista: o concepcionismo.

Ideais? Nenhum, além do ato de viver e de se desprender das coisas que nos prendem nessa sociedade egoísta. Esses "easy riders" candangos queimam seus lenços e documentos, pregam a liberdade de idéias, querem ser novos indivíduos a cada momento. “As pessoas estão doente de si mesmas”, juram, adotando o bordão da “morte ao ego”, gritado com freqüência.

Apoiado em muitos conceitos soltos, sem aprofundamento em nenhum, o filme joga seus personagens como loucos pré-manicômio dentro do mundo concreto. No meio do caminho, surge um Buda para dar estofo à piração: X, um homem mais velho e sem passado (Matheus Natchtergaele, cumprindo seu papel costumeiro de brilho no elenco), que sabe tudo sobre drogas, disfarces e falsificação de documentos. Ou seja, tudo o que a molecada precisava para viver confortavelmente no seu universo paralelo, pelados e sem norte. Se esse estilo de vida subversivo pudesse ser praticado pela maioria dos brasileiros, tudo bem, esse filme poderia ser sim um manifesto, mas o universo do filme só funciona no meio das elites, que podem nada fazer e tudo ter.

Ao fim da história, a vida real revida o ataque concepcionista e tudo volta ao normal. Ou não - o que não faz a menor diferença. E A Concepção falha no seu objetivo (se é que ele existe) de suscitar uma discussão sobre os rumos da sociedade contemporânea. Bem de acordo, aliás, com um dos preceitos que rege seus personagens: “tudo o que foi falado até agora deve ser esquecido”. Ah, tá.

Caché



Nota: 7

O diretor austríaco Michael Haneke tem filmado ultimamente na França e usado em seu elenco os profissionais do país. Seus filmes costumam ter como personagens a classe média atingida por algum horror. Ele é um mestre no suspense e na violência abafada, surda. Grande observador do comportamento humano em situações de crises extremas e limítrofes. Diferente dos suspenses americanos, sua tensão é provocada pelo dia-a-dia comum em que as pessoas vivem em situações cotidianas.

Em Caché (2005), a trama é sobre uma família que aparentemente não tem nenhum problema emocional ou financeiro. Georges (Daniel Auteil) e sua esposa (Juliette Binoche) começam a receber fitas de vídeo com imagens de sua casa e desenhos sinistros de alguém misterioso que parece conhecê-los muito bem. Devido ao episódio, o marido reencontra um personagem de sua infância: um argelino, que se tornou pai e vive em um lugar humilde. Este encontro irá resultar em uma tragédia que mudará para sempre sua vida e a de sua família.

O filme começa de uma forma inovadora. Os créditos iniciais são apresentados de forma contínua como se fossem digitados diretamente na tela. Há uma imagem ao fundo, que o público logo descobre ser o lar do casal. O interessante é que, em vários momentos da produção, não se sabe ao certo se a cena apresentada é do filme ou da filmagem feita pela figura misteriosa. Esse tipo de informação se mistura com flashes do passado de George e lembranças antigas. O espectador fica na dúvida se a imagem é parte da narrativa, como mais um personagem, ou foi colocada para compor a história.

Haneke, um cineasta autoral, apresenta os elementos que sempre permearam sua obra: o inevitável efeito que o passado faz no presente, a assombração, a culpa pessoal ou coletiva, a paranóia criada por uma manifestação doméstica ou externa e os indivíduos que relutam em aceitar a responsabilidade por sua própria conduta ou atos. Esses aspectos são relacionados ao medo e à culpa que qualquer ser humano possa vir a desenvolver durante a sua existência. Ele tem uma visão sombria, ambígua e cínica do mundo e isso é refletido em seus filmes.

Um outro lado abordado pelo diretor é a relação entre o povo argelino e o francês. Eles têm uma história tensa, pois a Argélia foi colônia da França. A independência aconteceu há apenas 40 anos. Podemos notar a mesma relação entre os personagens, como também a relação entre o primeiro e terceiro mundo. O filme é, na verdade, uma alegoria política das relações inter-raciais. O mais desenvolvido não se preocupa com o mais necessitado. Só vê e acredita nas suas próprias necessidades.

Durante o desenvolvimento do roteiro, além dos aspectos externos que trazem desequilíbrio à família, os próprios envolvidos criam situações que desestabilizam suas vidas. A desconfiança é plantada no seio familiar, em todas as relações que há nele. Isso faz o público não ter pena dos indivíduos, pois na verdade ninguém é mostrado como santo. Ao que parece, a perfeita harmonia existente na família é apenas superficial, bastando um elemento catalisador para jogar tudo por terra.

Caché tem vários sentidos, alguns literais e outros metafísicos. A câmera pode significar uma invasão de privacidade na vida de George, mas ao mesmo tempo pode ser um elemento que irá trazer a luz ao seu passado para sua esposa e em sua própria consciência. Uma espécie de acerto de contas, possibilitando-o a enfrentar seus próprios demônios. Tanto que a última tomada do filme é tão ambígua quanto a última cena em que George aparece. O público que precisa de um final certinho pode ficar revoltado, mas isso é o que menos importa nos filmes de Haneke. Seu principal objetivo é apontar os movimentos emocionais e não resolvê-los.

O Código Da Vinci



Nota: 5

O ator William H. Macy estava estupefato com a sangueira e as excentricidades da história de Fargo, filme de Joel e Ethan Coen que ele estrelou em 1996. Foi então perguntar aos diretores - já que o roteiro trazia o famoso "baseado em história real" - de onde eles tiraram o tal caso verídico. "Ah, isso é só uma brincadeira... nós inventamos tudo", responderam. "Mas... não podemos fazer isso!", retrucou Macy, preocupado. Concluíram os irmãos Coen: "Por quê não?".

Justamente: por que não? Que lei, que lastro é esse? O que difere um filme "inspirado em fatos" de uma franca ficção? Ele é melhor por causa disso? É mais respeitado, mais crível? Seria pior se fosse uma história toda inventada? O Código Da Vinci seria o sucesso que é se Dan Brown não tivesse estampado nas primeiras páginas o discutido atestado de veracidade? Para mim o livro é apenas umas história, um conto intrigante, que tem a associação com o real para vender mais exemplares. Fazer barulho para render dinheiro. Normal.

Afinal, todo o barulho que a mídia faz em cima da obra não vai além de especular se Maria Madalena era mesmo a mãe dos filhos de Jesus, se Isaac Newton era mesmo um dos guardiões do Graal, se a Opus Dei é esse diabo que pintam. Poucos trataram de estudar a narrativa em si, a construção dos personagens, as fórmulas que Brown recicla. Se a crítica do filme seguisse o caminho da polêmica da "história real", rodaria em falso. Que os historiadores se encarreguem de analisar os fatos. Os Coen diriam que não importa a fonte de uma trama, seja o mundo real ou a imaginação. O que importa é se ela funciona na tela.

E na tela O Código Da Vinci (The Da Vinci Code, 2006) funciona mal.

O diretor Ron Howard não é conhecido como um autor, na acepção consagrada do termo, aquele artista que imprime uma marca em toda a sua obra. Howard é o clássico carregador de piano. Segue o que está escrito na receita, seja ela qual for - no caso, quando segue a receita do Oscar, sai-se bem, como em Apollo 13 (1995), Uma Mente Brilhante (2001) e A Luta Pela Esperança (2005). A fórmula aqui é a das adaptações literárias. Nela, cabe ao diretor enxugar o que há de literal (descrições de espaços, fluxos de consciência) e otimizar o que há de visual, a ação. Daí o primeiro problema - de ação O Código Da Vinci tem pouco.

Com exceção de dois ou três clímaces dignos, o filme se compõe basicamente de enunciados sobre teorias conspiratórias cristãs, em formato ilustrado (algumas cenas de charadas e quebra-cabeças lembram Uma mente brilhante, principalmente o deciframento do criptex). O especialista em símbolos Robert Langdon (Tom Hanks) e o historiador Leigh Teabing (Sir Ian McKellen) explicam à criptologista Sophie Neveu (Audrey Tautou), entre uma perseguição e outra, que história é essa do Cálice Sagrado não ser cálice coisa nenhuma, ser uma mulher. Para quem não leu o livro e toma contato com o material direto na telona, fica parecendo que Brown recorreu ao romance policial apenas para embalar a tal teoria. Que tipo de ação surge daí? É mais ou menos como colocar dois bibliotecários num ringue de gel.

E já que estamos num dia de citações, o crítico do New York Times, A.O. Scott, sintetizou: "Esta é uma das poucas adaptações de um livro que talvez tome mais tempo para assistir do que para ler".

Em outras palavras, não há nada que O Código Da Vinci possa acrescentar - seja no formato, seja no conteúdo - ao gênero do thriller. Pelo contrário, Howard desonra até os fundamentos da matéria. Um deles é o de manter o espectador sempre confuso. Ora, se Teabing explica uma coisa, Sophie repete o que ele disse em forma de pergunta, e Langdon explica mais uma vez para deixar tudo mastigadinho, que raciocínio resta ao espectador? A ferramenta digital de iluminar pedaços de um símbolo na parede, por exemplo, como na cena da estrela de Davi, novamente para reiterar o que já estava claro, é um acinte à inteligência da platéia.

Em Cannes, onde o filme ganhou sua première mundial, a pretensa grande surpresa da história foi recebida com risos. Isso tem menos a ver com o imbróglio criado por Brown e mais com a maneira como Howard o apresenta.

Alfred Hitchcock não era um teórico, nem um historiador, mas uma lição sua deveria ter sido seguida aqui - a do MacGuffin.

(Parênteses para a explicação do próprio Hitchcock, livremente adaptada, sobre o que é MacGuffin: dois sujeitos estão num trem, um deles com uma mala; "o que há na mala?", pergunta um; "aqui nessa mala eu tenho um MacGuffin", responde o outro; "mas o que é um MacGuffin?", retruca o primeiro; "MacGuffin é uma arma de matar elefantes no Brasil", explica aquele com a mala; "mas no Brasil não há elefantes!", indigna-se o outro; "ah, então não é um MacGuffin", conclui o sujeito.)

Esse é o termo inventado pelo cineasta para designar aquele objeto que não importa nada ao espectador, mas que vale a vida para o protagonista. É a defunta do vizinho de Janela Indiscreta (1954) e a pedra de urânio de Interlúdio (1946), por exemplo. Aquela pedra é toda a razão pela qual Cary Grant arrisca a vida de Ingrid Bergman. Para nós, porém, dane-se a pedra: queremos ver o que acontece com o casal, como sua relação é ameaçada, depois reerguida. Howard fracassa porque o filme, a teoria "baseada em fatos", é todo um gigantesco MacGuffin.

Não precisaria ser assim. Na verdade, é possível perceber aqui e ali toques de dramaturgia, na maneira como Sophie representa o ideal solidário do cristianismo, como Langdon e o Louvre são emblemas do ideal iluminista contra as trevas não só da Opus Dei como da própria oficialidade católica. Mas o desenvolvimento dos personagens não vai muito além, nem os conflitos de idéias. Todo mundo só quer saber do circo das teorias. O Código Da Vinci é um fetiche para conspirólatras, nada mais.

10 maio 2006

Estrela Solitária



Nota: 7

Os cânions, os vales e as formações rochosas de Utah e Nevada, nos confins do Oeste dos Estados Unidos, são quase monocromáticos. O marrom desbotado da poeira e o quase-vermelho do barro se conciliam em um meio tom alaranjado. É a cor do Velho Oeste, um clichê incontornável, uma paisagem que não mudou muito neste século e pouco de cinema. Quando Wim Wenders aponta a sua câmera para as mais variadas pedras e relevos e desníveis da região, não há como escapar: Estrela Solitária (Don't Come Knocking, 2005) é de um laranja da cor-do-sol, mais vivo do que nunca.

Mas há algo de diferente - a começar pelos dois buracos de céu na primeira cena, como dois olhos. Em seguida, antes de imprimir o título do filme na película, Wenders vira devagar a lente para o sol, epifania calculadíssima, formando na contraluz uma escala filtrada de cores como as rochosas laranjas nunca viram antes. Filmar contra a luz é coisa de amador ou de cinegrafista chamando a atenção para si. Neste caso, Wenders quer pedir ao espectador que apure o olhar. É como se disesse "Preste atenção, que este é um filme de sensações".

E o que vem depois realmente atiça os sentidos e conspurca o Velho Oeste monocromático, monocórdio - o Velho Oeste mitológico. Um carro com a lataria forrada de espelhos, como um globo de discoteca sobre rodas, avança cena adentro. Um sofá estampado com flores que lembram chita fica largado no meio da passagem. Máquinas caça-níqueis estalam vertiginosamente. O ruído de um mero barbeador elétrico agiganta-se na imensidão vazia do deserto. Um trem que atravessa o pontilhão mata o silêncio sagrado do luar. Wenders contrapõe o western mitológico a um western cacofônico, onírico às vezes, brega frequentemente, cheio de cores que não casam, sobrecarregado de informações - como é o mundo real hoje. No caso, a contraluz do início, como um cowboy que ergue a aba do chapéu e encara o sol, sem medo de cegar-se, é o primeiro passo do enfrentamento. Estrela Solitária é um faroeste no divã.

O personagem principal desse exame, não poderia deixar de ser, é o seu herói mítico, o cavaleiro andante e só. O ator Howard Spence (Sam Shepard) sabe o que é um bom faroeste. Montou toda a sua carreira interpretando mocinhos de bangue-bangue. Mas o que um dia foi um ícone hoje é uma sombra. Conhecendo-o depois, dava até para prever que um dia ele surtaria. E o momento chegou. Howard estava nas filmagens de O Fantasma do Oeste, sua derradeira tentativa de voltar ao estrelato, quando abandona o set em cima de um cavalo, com o figurino do personagem no corpo.

Os produtores, o diretor, o resto do elenco, todo mundo fica sem saber o que fazer. Howard deixou apenas uma carta manuscrita, em meio às cervejas, às carreiras de cocaína e às prostitutas que pernoitaram em seu camarim. Fugiu das filmagens sem saber para onde ir. Quer dizer, sabe por onde começar - trocar a camisa cheia de floreios de seu personagem por uma roupa surrada, de um vaqueiro de verdade. Se ele andasse por aí daquele jeito, como uma caricatura de Johnny Guitar, seria confundido com um astro de cinema. E ser reconhecido é a última coisa que Howard Spence quer no momento.

A jornada existencial que segue, seu acerto-de-contas com o passado, com a mãe, com ex-amantes, com um filho que ele mal sabia que existia, se confunde com a lavagem de roupa empoeirada do faroeste. Mas a metalinguagem de Wenders não é daquele tipo óbvio, do filme dentro do filme. Está mais para uma simbiose à la David Lynch - é na iluminação, na granulação de um plano, no ângulo de um close, na subida de uma grua, enfim, na linguagem, que percebemos quando Wenders deixa o naturalismo e flerta com as convenções do gênero. Tudo muito sutilmente. Os abajures da casa da mãe de Howard fornecem o mesmo ambiente aconchegante (e artificial) que já recebeu muitos cavaleiros solitários de John Wayne, filhos pródigos em seu eterno e intangível retorno ao seio familiar.

Mas que lavagem é essa de que falamos? O que precisa tão urgentemente de terapia no mais estadunidense dos gêneros? Resgatar o significado, a aura do mito, essa é a urgência. Howard Spence sintetiza todos aqueles heróis paladinos, todos aqueles românticos platônicos fadados à solidão, que não resistiram no longo caminho até os incrédulos dias de hoje. Todos aqueles, nas palavras do personagem, "que desperdiçaram a vida porque não sentiram que o tempo estava passando". Sam Shepard, co-roteirista do filme, entrega uma atuação excepcional. O seu Howard começa como um trapo de gente que coça o nariz e mal consegue olhar nos olhos dos outros quando conversa. Ao final, é capaz que o fantasma do Oeste recupere a dignidade a tempo de empinar seu cavalo, mais uma vez.

Tempo de Valentes



Nota: 5

"Filme de ação é coisa de homem." Poucas vezes a frase fez tanto sentido quanto em Tempo de Valentes (Tiempo de Valientes, 2005).

Não que a tela fique congestionada de Misters Universo de regata estourando helicópteros com flechas explosivas. Não é bem assim. O segundo longa-metragem do argentino Damián Szifron é um filme machista em um nível mais, hhmm, psicanalítico. Indivíduos, inicialmente em crise, recuperando a auto-estima e reafirmando as suas condições de homens através de signos do gênero de ação - é disso que trata Tempo de Valentes.

Mariano Silverstein (Diego Peretti, de Não é Você, Sou Eu) é um psicólogo meio sonolento que leva seu casamento na base da inércia. Um dia ele é convocado pela polícia bonaerense a acompanhar um policial veterano, o oficial Díaz (Luis Luque), que acaba de ser chifrado pela mulher. A idéia do comissário é não deixar que Díaz faça bobagens. Colocar um psicólogo dentro da viatura é uma maneira, por tabela, de tentar curar o abatimento do policial. O problema é que logo nos primeiros dias de convívio, bom investigador que é, Díaz logo descobre que Mariano também está sendo traído.

Nada mais desmoralizante. Ambos reconhecem que deram as suas escapadelas, que foram maus maridos, mas serem trocados por outros pelas próprias esposas é de quebrar qualquer ego. Mas eis que, no meio desse drama todo, crimes acontecem. Um carregamento suspeito, material nuclear talvez, está sendo desviado do governo por elementos do próprio Sistema de Inteligência argentino. Coisa de ladrão profissional, intriga internacional. E o capenga Díaz, que mal suspeita do tamanho da encrenca, fica encarregado do caso - com o choroso Mariano a tiracolo.

A premissa se parece um pouco com um Máfia no Divã - com o psicólogo aprendendo com seu paciente, e não ao contrário - mas fica só na premissa mesmo. O que Szifron faz, a partir do segundo terço de filme, é transformar o que parecia ser uma comédia em um filme policial de superação. Aos poucos, veja você, a dupla errante de protagonistas começa a recuperar sua hombridade.

Uma cena é emblemática. Díaz e Mariano estão no fundo do poço. Até a mulher que atende no IML os esculacha. Então a câmera pega os dois sentados numas cadeiras, encolhidos, debaixo de um desenho na parede de um tipo militar fazendo mira com um rifle. Escutam tiros. É a área de treino de pontaria. Díaz olha para Mariano. Pergunta se ele não gostaria de experimentar. E lá vai o depressivo psicólogo tentar empunhar uma pistola semi-automática... Atira mal, mas é um recomeço.

A virada sucede aos poucos. Uma visita a um ringue de boxe, uma mesa de sinuca, um momento de união com marginais desqualificados, alguns faróis vermelhos ultrapassados em alta velocidade, um cigarro de maconha dividido entre amigos... Quando se vê, não apenas as mulheres sumiram de vista como Mariano e Díaz já nem se lembram que um dia suas respectivas lhe aplicaram uns cornos. E a recuperação se deu por simples contato com símbolos de masculinidade. Sobra até para o faroeste, com seus planos abertíssimos, mostrando o homem como o ser destemido em pleno domínio de um ambiente hostil.

E há a farda, claro. Não há imagem do macho, naquilo que ele tem de mais autoritário, de imponente, que dispense uma boa farda. Mariano enverga uma como se fosse lhe conferir poderes sobrehumanos. Em nenhum momento o diretor Szifron abdica da historinha policial para tratar dos pormenores sexistas, mas ele faz questão de tratar dos dois temas paralelamente. A hora em que Mariano começa a sacar o que está acontecendo na investigação criminal é a mesma em que sua esposa, antes firme, desmorona histérica e vergonhosamente, implorando pela reação do marido.

Nem precisa dizer que o público feminino, que normalmente torce o nariz para os filmes de ação, tem todas as razões para sair de Tempo de Valentes soltando os cachorros.

Independente disso, a clicheria pode incomodar a espectadores exigentes de ambos os sexos, já que não há novidades na trama central. Do comissário subserviente a ordens superiores até o chefão do crime teoricamente intocável, todos os personagens estereotípicos do gênero estão presentes. Tempo de Valentes não é um Beijos e Tiros. Sua motivação principal não é subverter o gênero, mas trabalhar em cima das suas fórmulas consagradas, meio que implodí-las, para escancarar o princípio machista que as rege. Sob essa ótica, o filme é muitíssimo bem sucedido.

Três Enterros



Nota: 7

"Você não precisa passar muito tempo às margens do Rio Grande para perceber que a terra dele e a minha são a mesma". Com esse comentário, referindo-se ao rio que separa o norte do México, terra do roteirista Guillermo Arriaga, do seu Texas natal, Tommy Lee Jones sintetiza a essência de seu longa-metragem de estréia como diretor, Três Enterros (The Three Burials of Melquiades Estrada, 2005).

O projeto nasceu nas caçadas de ambos pela propriedade rural de Jones. O local, que chegou a servir de cenário para algumas cenas, inspira um filme cheio de críticas diretas à segregação dos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. E não pára por aí. O novo cineasta - que inicia na carreira extremamente competente e autêntico - esmurra também o cinemão das mortes e explosões ao mostrar como uma vida, por mais humilde e singela que seja, pode carregar enorme profundidade. Mas não pense que o longa concentra-se nos alvos fáceis que são os "gringos" hoje em dia. Sobram algumas farpas também aos próprios mexicanos, especialmente numa seqüência que mostra um grupo de vaqueiros ao sul da fronteira assistindo à televisão.

O texto de Arriaga, dos excepcionais Amores Brutos e 21 Gramas, é mais uma vez notável. Recheado de sutilezas, narra em três atos (que acompanham os três enterros do título) e alguns flashbacks a história do simpático Melquiades Estrada (Julio Cesar Cedillo), um vaqueiro mexicano que trabalha ilegalmente num rancho estadunidense próximo à fronteira com sua terra natal. Seu melhor amigo é Pete Perkins (Jones, em atuação premiada em Cannes), que logo no início do filme descobre que Melquiades foi assassinado e tenta descobrir o autor dos disparos que o mataram. Falar mais estragaria surpresas dessa boa história, que mistura estrutura de road movie com humor negro, western e crítica social.

Vale comentar, porém, sobre a técnica e o senso artístico de Jones. Equilibrado, ele mostra que sabe comandar seu irretocável elenco - além de Cedillo, Barry Pepper e January Jones também estão ótimos - e passa o bastão com confiança aos seus colaboradores. Especialmente ao diretor de fotografia duas vezes vencedor do Oscar Chris Menges, que registra as externas - sejam elas no México ou Estados Unidos - como pinturas idênticas, deixando a crítica visual para a arquitetura de interior. Outro que se aproveita com sucesso de sua liberdade criativa é o compositor pop italiano Marco Beltrami, que deixa os blockbusters para realizar aqui um de seus melhores trabalhos autorais.

O resultado não é perfeito - há algumas pequenas redundâncias e eventos dispensáveis -, mas vale a pena ser visto. Um retrato apaixonado de uma terra que teve sua identidade rasgada.

04 maio 2006

O Corte



Nota: 8

Baseado em um romance de Donald Westlake, O Corte (Le Couperet), mais recente trabalho do diretor Costa-Gavras, coloca uma pergunta simples ao espectador: o que aconteceria se um executivo desempregado levasse a lógica do capitalismo global ao extremo e começasse a eliminar fisicamente seus concorrentes?

O filme, junta elementos de fábula, comédia social e thriller. A mistura, imbuída de humor negro, deve agradar ao público com sua abordagem de esquerda de um problema que ultrapassa fronteiras e classes sociais.

O roteiro do próprio Costa-Gavras, em colaboração com Jean-Claude Grumberg, trata de Bruno Davert, de 41 anos, quinze dos quais prestando bons serviços a uma fábrica de papel no norte da França. Dois anos depois de seu emprego ter sido terceirizado para um país onde a mão-de-obra é mais barata, Bruno, em sua busca por trabalho, resolve ser tão impiedoso quanto seus antigos patrões. Ele consegue uma lista dos outros candidatos ao cargo que cobiça. Um por um ele os persegue e elimina, como exigem as leis implacáveis da livre concorrência.

A polícia observa o fator em comum que existe nos currículos das vítimas e vai bater à porta de Bruno. Enquanto isso, a mulher dele quer que ele faça terapia de casal e seu filho chama a atenção da justiça ao ser flagrado roubando programas de computador.

Abrindo caminho, desajeitado, por uma série de assassinatos, mas conseguindo passar despercebido a cada vez, Bruno mantém o espectador do seu lado. O ator Jose Garcia, até agora visto sobretudo na televisão, é uma revelação no papel de Bruno. Ele possui uma semelhança desconcertante com Jack Lemmon, astro do thriller político Missing - O Desaparecido, também de Costa-Gavras, e sem qualquer dificuldade alterna expressões de angústia, indecisão, estresse, pavor e decisão assassina.

Com duas horas de duração, O Corte talvez seja um pouco longo demais, mas não deixa de prender a atenção do espectador e constitui mais um exemplo do cinema engajado de Costa-Gavras.

A história se passa na França e fala de desemprego nos países ricos e desenvolvidos em tempos de globalização. Bruno Davert, é mais um dos que sofrem o impacto do "trucidante" e desumano "corte de pessoal"; "você não é mais necessário"; moléstia que se espalha pelo mundo e não poupa mais ou menos capacitados, mais ou menos bem colocados. Sem perspectiva aparente de algum outro emprego, passado já um razoável período da demissão, e vendo as economias minguarem, o engenheiro Davert é acometido pela tal idéia dos crimes. A idéia surge por acaso, através um leve e despretensioso comentário do filho adolescente, toma corpo e coragem, passa a ser maquinada e desenvolvida; daí à sua execução, meia hora de filme, não mais.

Falar de desemprego em países da Europa para habitantes nativos e de formação superior, soa como uma patada na fuça de nós, terceiro-mundistas, ante o nível de vida dos pobrezinhos desesperados. Se a intenção de Costa Gavras - ao mostrar de maneira ostensiva as ricas e grandes casas, as arborizadas e plácidas ruas habitadas pelos desempregados de lá - foi a de dar força visual a um contraste social com o resto do mundo, ponto para ele. Agora, se o cenário foi utilizado apenas como pano de fundo para uma história filmada com um misto de humor e temor, situações atrapalhadas e de thriller inconsistente, pena, teria sido uma grande pisada de bola do diretor. Mas, o filme, que vai se conduzindo muito amparado no cinismo e na falta de um apuramento melhor dos sentimentos e situações dos coadjuvantes e potencialmente alvos das balas de Bruno – já que tudo gira em torno das dificuldades e tensões de seu núcleo familiar – toma alguns momentos de bons rumos ao penetrar, a partir de um certo número de mortos, nos sentimentos, problemas, verdades e mentiras destes "meros" coadjuvantes.

É obra que provoca reações diferenciadas no seu transcorrer. Mas algumas situações – tudo dentro do tempo de projeção da película - redimem algumas intenções aparentemente obscuras. Há o erro na facilitação criada pelo método do diretor quanto às conseqüências de ato tão insano como o de sair por aí matando potenciais adversários. Há o erro na criação da figura do psicanalista negro, que entra na trama somente para criar contraste e denunciar possíveis e embutidos preconceitos. Há o erro nos esquetes engraçadinhos que falam de imaginárias traições; somente para criar um clima mais leve e informal. Porém, o diretor acerta – como já disse acima - quando dá "“voz" e cara a alguns oponentes do desempregado central, quando enfatiza alguns comportamentos deteriorados e perversamente primeiro-mundistas dos filhos adolescentes de Bruno – a cena em que o moleque se diverte ante as cenas de um noticiário mundo-cão televisivo e o momento em que a filha sobe as escadas somente com roupas íntimas, ante o olhar atônito e pedófilo de um punhado de policiais, elevam a cotação do filme. Esse não é um dos grandes trabalhos do diretor, mesmo a crítica sendo política e mundial. Comparando este com seus últimos filmes, digamos que a temática política voltou a pulsar no sangue do diretor, que foi grande ativista na década de 70, o que é de grande alento para todos nós. Mas muitos diretores europeus, menos engajados, deram uma contribuição maior a desconstrução do sistema capitalista. Filmes como Segunda-Feira ao Sol (espanhol), ou A Agenda(frances), com muita simplicidade, passaram a mesma mensagem que este.

Bonecas Russas



Nota: 8

Bonecas Russas é a continuação do sucesso internacional de 2002 Albergue Espanhol, retomando o mesmo grupo de personagens cinco anos depois. Chegando na casa dos 30 anos, os personagens têm outros problemas, outros dilemas, outras diversões. O furor hormonal de outrora dá lugar a relações mais sérias, sinceras e com bases mais sólidas. Ou quase.

Xavier (Romain Duris, De Tanto Bater Meu Coração Parou) deixou de lado a carreira de economista e se jogou de cabeça na literatura, mas acaba escrevendo roteiros para cinema e televisão.

Porém, mal consegue pagar suas contas. Uma melhora surge quando tem a possibilidade de escrever um telefilme de alto orçamento, e baixa qualidade intelectual. Mas ele não liga, o importante é que vai receber um bom pagamento.

O rapaz, assim como praticamente todos os personagens do filme, está em busca de um amor sincero num mundo globalizado e fragmentado. O roteiro, do diretor Cédric Klapisch (o mesmo de Albergue Espanhol), monta uma espécie de quebra-cabeças internacional, com a ação correndo por Paris, Londres e São Petersburgo.

A trama ganha complexidade e carisma quando entra em cena Cécile de France, no papel de Isabelle, uma lésbica especialista em mercado financeiro, que trabalha na TV e dá abrigo a Xavier quando ele precisa de uma nova casa. Também se destaca no elenco Kevin Bishop no papel do inglês William, atrapalhado, mulherengo e apaixonado por uma bailarina russa. Para ficar com ela, que não fala outra língua, ele aprende russo e se muda para São Petersburgo, onde vive em condições precárias.

Xavier acaba reencontrando Wendy (Kelly Reilly, de Sra. Henderson Apresenta), irmã de Kevin, e por quem teve uma paixão em Barcelona. Ele se muda para Londres para trabalhar com ela no roteiro do telefilme, e o desejo entre eles acaba reaparecendo.

Porém, ele também se encanta com a modelo entediada Celia Shelburn (Lucy Gordon), para quem trabalha como ghost writer de uma autobiografia. Com quem ficar: com a delicada e sincera Wendy ou com a rica, exuberante, mas fútil, Celia? Escolher não é nada fácil.

As meninas que hoje estão perto dos 30 anos devem se lembrar da loucura que era ganhar uma matriochka (bonequinha russa), daquelas de madeira, que você vai abrindo e tirando outras de dentro, até encontrar uma bem pequenininha, quase do tamanho de uma unha.

Também perto dos 30 anos estão os personagens do primeiro filme, que já não moram juntos em Barcelona. De volta a Paris, Xavier tenta vencer como escritor e ainda é muito amigo da ex-namorada Martine (Audrey Tatou) que, por sua vez, continua insuportavelmente chata. Outra amizade dos tempos de intercâmbio também permanece: a de Isabelle, que está ainda mais sedutora e cheia de namoradas e com quem o protagonista vai voltar a dividir a casa. Eles chegaram àquela idade fatídica em que cada passo é marcado pela autocensura e pela incômoda desconfiança de ter se transformado em fracasso.

Quando tudo está perto de desmoronar, a salvação parte de um encontro com aquele que seria o último a ser procurado: William (Kevin Bishop), o irmão da inglesa Wendy, que vivia de atormentar a todos com suas piadinhas preconceituosas e estereótipos sobre estrangeiros. À caminho de São Petersburgo, é ele quem irá reconectar os antigos amigos — colocando alguns para trabalhar juntos e levando todos, meses depois, para seu casamento com uma bailarina russa.

O reencontro pega cada personagem no meio de mais uma busca. Agora não mais a de quem se quer ser, mas sim a do que se quer conquistar – no amor ou no trabalho. Para o diretor Cédric Klapisch, essa longa jornada à procura de si mesmo e da cara-metade equivale à das garotinhas que, uma após a outra, abrem suas matriochkas na ansiedade de encontrar a última, a definitiva, a que é ao mesmo tempo tão pequena e tão perfeita.

Albergue Espanhol se dizia um "filme sobre decolagem". Talvez por isso boa parte das pessoas vá preferi-lo a este segundo, que seria o equivalente ao período de um vôo que é marcado pelo que os comandantes costumam anunciar como "velocidade de cruzeiro". Nesse estágio já não existe mais a excitação que acelera a cada minuto e que culmina com a saída do chão. Ao atingir a velocidade de cruzeiro, alcança-se também o trecho da vida em que rareiam os efeitos especiais. É difícil, em meio à briga para fazer emplacar um trabalho e às dúvidas quanto à sua capacidade de encontrar o grande amor, se sentir mais feliz e interessante do que no ano vivido na Espanha, numa casa lotada de amigos bacanas e com o futuro inteiro pela frente.

O mérito de Bonecas Russas, no entanto, é provar que, ainda que a maioria de nós viva preso a uma lógica dos tempos de criança — projetando o auge da própria felicidade para um ponto no futuro que parece distante, mas não muito —, também existem aqueles que se negam a tentar abrir a bonequinha para ver se existe uma outra dentro. Simplesmente porque ali, naquele momento, ela é perfeitinha demais para que nos livremos dela.

Árido Movie



Nota: 8,5

Jonas , o protagonista de Árido Movie, é homem do tempo, expressão carregada de possibilidades: homem do tempo pode ser, por exemplo, Deus; um meteorologista (caso do próprio); um filósofo; um guru. Certamente, no filme, Jonas é homem de UM tempo, o de São Paulo - tempo de utilidades e certezas.

E é no Nordeste - no sertão árido onde morreu seu pai, pertencente a uma família de coronéis em que ainda prevalece a "vendetta" - que ele conhece um outro tempo. Ou melhor, vários.

O tempo do sol, da seca; o tempo que não passa, também do sol, mas igualmente da "vendetta"; o tempo dos índios, ameaçados de extinção literal e representados de forma agressivamente comovedora por José Dumont, o Zé Elétrico, que, num momento do filme, diz que vai sair para meditar, já que "o mundo tá transitando na contramão".

Dentro de um táxi, no Recife, Jonas, o homem do tempo, sussurra para um motorista que não o entende, praguejando contra o sol mormacento: "Sol de Dois Canos". É o sol de João Cabral de Melo Neto: "O sol em Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o primeiro dos dois, o fuzil de fogo/ incendeia a terra: tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois sóis,/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o segundo dos dois, o fuzil de luz,/ revela real a terra: tiro de inimigo".
E Jonas e o espectador deveriam então aprender que o sol, no Nordeste (pelo menos no sertão), é sempre inimigo. Mas não aprendemos, não.

O melhor cinema feito hoje no Brasil está fora de Rio de Janeiro e São Paulo. O cearense Karim Ainouz (Madame Satã), o baiano Sérgio Machado (Cidade Baixa), os pernambucanos Cláudio Assis (Amarelo Manga) e Marcelo Gomes (Cinema, Aspirina e Urubus) dividem entre si a responsabilidade de colocar o Nordeste no novo mapa da cinematografia nacional. Mas são, em maior ou menor grau, cineastas de temas universais - inquietude, amor, solidão, incomunicabilidade, desesperança, inadequação.

O pernambucano Lírio Ferreira, que apresenta agora Árido Movie (2004), talvez seja o mais "nordestino" desse grupo, no sentido em que o regionalismo de certo modo define os temas de que ele trata. O cangaço, a seca, o coronelismo, o messianismo, o folclore, o manguebit, o compêndio secular do sertão, o recifense com um pé na modernidade e o outro pé fundo no mangue, tudo isso pontua a obra do diretor - desde seu primeiro longa, co-dirigido por Paulo Caldas, Baile Perfumado (1997), até este árido filme solo.

O ator curitibano Guilherme Weber, revelado nas peças da Sutil Companhia até chegar às novelas globais, interpreta Jonas, filho de um grande proprietário de terras na vila sertaneja de Rocha, Lázaro (Paulo César Pereio). Jonas mal conheceu o pai, logo se mudou para o Sudeste. Em compensação, a família que ficou em Rocha vê Jonas todas as noites, pela televisão, na hora em que o filho-pródigo apresenta a previsão do tempo no jornal. Uma reunião ao vivo, porém, está para acontecer. Depois do assassinato de Lázaro, Jonas é forçado a voltar ao Pernambuco para enterrá-lo.

Essa premissa enxuta remete ao clássico tema do eterno retorno e já sugere um filme de estrada. Mas é aconselhável não confiar em sinopse. No meio do caminho o espectador encontrará não apenas uma leva de bons coadjuvantes (Selton Mello, José Dumont, Matheus Nachtergaele, Giulia Gam, Luis Carlos Vasconcelos) e pontas especiais (Cláudio Assis, Xico Sá, Zé Celso, Lira Paes) como uma torrente de abstrações. Quem imagina um minimalismo à Marcelo Gomes pode se surpreender com o caos que desponta no imaginário do Vale do Rocha.

Forquilhas, pregadores de estrada, chá de índio, plantações de maconha, night club, vingança, barbas brancas, ares de Canudos... Já reparou que desde o começo este texto enfileira um monte de coisas soltas que não parecem ter relação entre si? Assim é Árido Movie, um filme com tantos argumentos que mal põe de pé uma única tese consistente. É difícil escapar da síndrome do segundo filme, e Ferreira parece entender que o antídoto para essa doença é negar a narrativa. Quando uma passagem engrena na dramaturgia, ela é quebrada por outra, descompromissada. O problema é que sobram apenas fragmentos, como numa viagem de erva em que jorram idéias efêmeras e sobrepostas.

O diretor não é desconhecedor da linguagem do cinema. Domina o ritmo, o momento certo de fazer silêncio: incluir uma panorâmica devastora do sertão em contraponto à cena fechada no conflito dos personagens, por exemplo. Há um elemento no filme que serve de fio a essas idéias, a água, da primeira à última tomada. E há também questões referentes a identidade, ao tempo, à validação do homem no espaço ao seu redor - a Montanha do Cachorro já era conhecida assim antes do ser humano nomear o animal de cachorro? Quem são esses alienígenas recifenses que chegam a bordo de uma nave conversível como se as pessoas de Rocha não fossem conterrâneas do sertão, mas gente de outro planeta?

O cartão de visitas, Lírio Ferreira entrega logo nas cenas de abertura: desfoques, uso ousado de lente grande-angular, um plano vertiginoso de Recife, angulações inesperadas.

O que vem a seguir não desmente esse início vertiginoso. Estamos no território do barroco, aonde nos leva já um roteiro com várias histórias que parecem nascer umas das outras.

A primeira delas, central, diz respeito a Jonas, homem do tempo. Em Recife, ele encontra um grupo de amigos "outsiders" que resolve fazer uma excursão até Rocha para acompanhar o amigo. A viagem será acidentada. A terceira história diz respeito ao encontro de Rocha com a artista Soledad, que trabalha as relações decorrentes da seca na região. Podemos acrescentar a essas uma quarta história, a da família do assassino do pai, isto é, dos descendentes de indígenas que moram na região.
Com todos esses elementos para organizar num todo coerente, não é de espantar que estejamos diante de um filme de exuberância barroca, em que a luz é marcada por contrastes radicais e a imagem, por panorâmicas de 360 graus, cenas inteiras compostas em espelhos retrovisores, uma câmera que se posta ora lá em cima, ora cá embaixo e que parece se abrir a todas as influências do mundo: Godard e Welles, Sergio Leone e o faroeste, Glauber Rocha e o cinema dito marginal.

Lírio Ferreira se entrega a sua arte com paixão. Ele filma o agreste pernambucano como quem fizesse um faroeste. Mostra o sentimento de seus atores (Luiz Carlos Vasconcelos e Aramis Trindade em particular) ocultando-lhes os olhos. Retrabalha o clichê das vinganças nordestinas até desfigurá-lo. Ele pinta as estradas secas do Nordeste buscando o mesmo ânimo de Welles ao descrever a fronteira EUA/México.
Aos poucos, a gama de contrastes se alastra, ocupa o filme: branco e índio, interior e capital, seca e água, misticismo e racionalidade, Sudeste e Nordeste. É em meio a essas tensões que Árido Movie instala seu protagonista, que, com justa razão, se vê perdido nesse espaço múltiplo, labiríntico, incompreensível, talvez absurdo em que se dá esse drama do subdesenvolvimento cavalar.

Drama que, não sem ironia, o filme vê se transformar, no Sul, em exposição de arte, tutelada pela imagem de Meu Velho, o místico picareta. Sabemos então que Árido Movie quer extrair dessa paisagem e de seus personagens uma imagem do Nordeste que seja verdade, não arte. Em poucas palavras: esse primeiro vôo solo de Ferreira é bem mais que animador.

A Lula e a Baleia



Nota: 8

A história é aparentemente banal, inspirada na própria infância do roteirista: um casal decide se separar, e os dois filhos, Walt, 16, e Frank, 12, tentam reconstruir suas identidades depois que suas vidas são viradas de cabeça para baixo, com um revezamento frenético entre a casa do pai e da mãe, confissões inesperadas dos motivos da separação e o novo comportamento que os pais adotam, namorando ou flertando com pessoas mais jovens.

O Pequeno Príncipe, Perrault, irmãos Grimm na infância. Ápice da adolescência, Salinger, O retrato do artista quando jovem, uns Shakespeares românticos. Kafka para pontuar o início da vida adulta, mais Hamlet, sem dúvida. O agridoce começo dos trinta pede Cortazar, Beckett, Hemingway, Gatsby. Daí em diante, para buscar o tempo perdido, Marcel Proust.

Bernard Berkman, o deplorável personagem de Jeff Daniels em A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale, 2005), pode não concordar com a lista acima, mas certamente acredita que a literatura nos ensina a viver. Professor universitário e escritor que já teve dias melhores, ele criou no filho mais velho, Walt (Jesse Eisenberg), essa idéia de que os "filisteus", aqueles que "não são intelectuais", não merecem consideração. Ler bastante, ver muitos filmes, saber apregoar esse repertório - é isso que faz o homem.

O dicionário Aurélio define o termo filisteu como uma forma de se referir a "indivíduos de espírito vulgar". Para o escritor fracassado e agora professor de literatura Bernard Berkman, filisteu é aquele ser desafortunado que não se interessa por livros e muito menos por filmes, conforme explica para seu filho Frank. Bernard acredita que o mundo é dividido por filisteus e não-filisteus, e seria bom se os representantes da segunda categoria evitassem se envolver com os integrantes da primeira, seres desmerecedores de crédito e inferiores por natureza - linha de raciocínio bem pejorativa, por sinal. Mesmo sendo apenas um mero pré-adolescente, Frank percebe a irracionalidade e a prepotência do pensamento de Bernard e não tarda a rebater: se ser um não-filisteu implica em seguir os ideais do pai, ele prefere ser um filisteu.

Na faculdade, para impressionar as garotas, Walt cita obras que não leu. Arruma uma namorada que não ama. Em um concurso musical, toca "Hey You", do Pink Floyd, como se fosse de sua autoria. Habitaria eternamente esse auto-engano, o inescapável complexo edipiano de superar o pai, se não fosse um terrível baque, que o atira na vida real: o divórcio. Sua mãe, Joan (Laura Linney), escritora em ascensão, está se separando de Bernard. Não há livro no mundo que ensine Walt a lidar com essa situação - essa é a mensagem que o roteirista e diretor Noah Baumbach nos transmite com estilo e coração.

Coração porque a história tem muito de sua própria adolescência. Estilo porque Baumbach não tem medo de fugir da estética Sundance e recorrer a uma fórmula "ultrapassada", aquela de dramas sóbrios, para contar essa sua história. (Espanta saber que o roteirista assinou, no ano anterior, o script do interessante A Vida Marinha com Steve Zissou; Wes Anderson retribuiu produzindo A Lula e a Baleia) Não há neste seu relato autobiográfico qualquer afetação, fotografia granulada, câmera lenta com música ao fundo, nada.

A história se conta com o bom e velho plano-contraplano, calcada nas excelentes atuações dos protagonistas, com a necessária pitada de humor cáustico. Baumbach tem a mania dos indies de reabilitar atores de segunda linha - a participação de William Baldwin é impagável - mas fica só nisso. Provavelmente por ser assim, genuíno, o filme tenha sido indicado ao Oscar de melhor roteiro original. É uma pena que não tenha ganho, pois o texto enxuto é um exemplo de coesão. Trata da formação do caráter de Walt de forma breve e precisa, passando pela necessária desconstrução do ícone paterno, e culminando em um final aberto, a metáfora do embate entre os gigantes marinhos.

Fica a lição de que experiência de vida não se herda. Talvez seja por isso que o filme exale frescor, novidade: no meio cinematográfico em que tantos se colocam acima dos personagens, donos da verdade, Baumbach tem a humildade de expor-se, de arriscar um caminho fora da cartilha, de humanizar seus personagens sem rir dos defeitos deles. Sem conhecê-lo, dá até pra dizer que o diretor se tornou uma pessoa melhor depois de fazer A lula e a baleia.

A meu ver, gostar ou não gostar do filme, envolve um pouco deste lance de ser ou não um "filisteu". Como sabemos, grande parte do público que freqüenta os cinemas não é muito chegado em produções-cabeça, preferindo fitas mais comerciais e de melhor digestão. Este público certamente odiará A Lula e a Baleia com todas as forças. Não que importe muito, já que é visível que Noah Baumbach não fez este filme para agradar a todo mundo ou a platéias específicas. Na verdade, Baumbach criou o filme apenas para uma pessoa: ele mesmo.


Bernard (Jeff Daniels) e Joan (Laura Linney): relação de ódio... e ódio. As características de A Lula e a Baleia, que narra um período complicado da adolescência do próprio diretor, são bem peculiares. Seu fantástico roteiro, assim como o desenrolar das situações vividas pelos personagens, é quase totalmente linear, sem grandes tragédias ou mudanças muito bruscas de comportamento; os protagonistas não carregam nenhum atrativo especial - são pessoas comuns, tão comuns que beiram o banal; e a produção não preocupa-se, em momento algum, em situar o espectador ou contar uma trama com começo, meio e fim. É como se alguém ligasse uma câmera de vídeo numa casa de uma família qualquer, e desligasse depois de algumas horas, sem apresentar ninguém, sem explicar nada. Apenas captando imagens e deixando que elas falem por si só.

A família retratada aqui, no caso, vive no Brooklyn de 1986 e é formada por quatro pessoas: Bernard (Jeff Daniels), o pai; Joan (Laura Linney), a mãe; Walt (Jesse Eisenberg), o primogênito; e Frank (Owen Kline), o caçula. Bernard tenta voltar a escrever, mas não consegue impedir a chegada de um indesejado bloqueio criativo. Joan, que foi dona-de-casa por toda sua vida, decide também ingressar na literatura e, logo de cara, revela um talento nato que rende frutos muito bem-sucedidos, algo que Bernard jamais conseguiu. Walt gostaria de seguir os passos do pai - e para mostrar que tem "potencial", interpreta para quem quiser ouvir um dos maiores clássicos do Pink Floyd, como se fosse de sua autoria. Frank, de espírito rebelde, rejeita o lado "cult" da família e prefere tentar investir em sua futura carreira de tenista profissional.

Nos primeiros 15 minutos de projeção, o casal Berkman anuncia aos filhos que irá separar-se. A notícia cai como uma bomba nos garotos. Walt toma partido do pai ao descobrir que a mãe foi infiel, e Frank defende Joan, consciente de que jamais será o modelo de filho que Bernard espera (e é de certa forma rejeitado por conta disto). Walt e Frank não fazem idéia de como lidarão com sua nova rotina, já que morarão três dias e meio com o pai e três dias e meio com a mãe a cada semana...

Surgem problemas: o mais velho, mesmo namorando com uma amiga de escola, apaixona-se pela nova namorada do pai, a sensual Lili (Anna Paquin, a Vampira), que por sinal é aluna dele; já o mais novo apega-se ao namorado da mãe, o professor de tênis Ivan (William Baldwin), enfia-se na bebida e torna-se obcecado com suas recentes descobertas sexuais, masturbando-se por todos os cantos da escola e espalhando o "resultado do ato" nos livros da biblioteca e nos armários dos alunos.

Claro que Walt e Frank amadurecerão rapidamente, sofrerão uma série de golpes e aprenderão algumas coisas sobre a vida.

E por qual razão um longa tão simples como este não agradaria ao público médio, mesmo com um ótimo roteiro e atores tão bons? O caso é que A Lula e a Baleia não é tão fácil assim de digerir. A fita é recheadíssima de metáforas e piadas sutis nas entrelinhas, e as zilhões de referências a ícones da cultura pop, que vão de personalidades literárias como John Updike e J. D. Salinger até cineastas como François Truffaut, certamente passarão despercebidas. Sua narrativa é simplista, direta, parada, quase teatral, focada apenas no delicado e impetuoso desempenho de seus atores. Não há um mínimo de "ação" no sentido literal da palavra, nem mesmo na construção dos personagens. Ou seja: elementos de sobra para espantar muita gente.

Por outro lado, nada disto importa. Ser um "filme-padrão" não é nem de longe a proposta do filme - e este é o grande charme da película. A Lula e a Baleia nada mais é do que a forma que Noah Baumbach encontrou para revisitar sua juventude e exorcizar seus fantasmas. Como conseqüência, entregou um grande trabalho, muito bem dirigido, magnificamente interpretado - o elenco é um show à parte, com destaque para Jeff Daniels, perfeito, e para o brilhante estreante Owen Kline - e com uma deliciosa cara de anos 70, tanto na montagem, como no enquadramento de cenas e também na trilha sonora.

Então, A Lula e a Baleia é mesmo BOM? Bem, é uma rua de duas mãos. Você pode adorar ou odiar, mas isto está diretamente ligado ao seu, digamos, "posicionamento" com relação ao lance pregado pelo patriarca do clã Berkman. Preferências à parte, é uma produção que, assim como o sublime Hora de Voltar, tem como principal trunfo ser absolutamente sincero. E este pequeno detalhe certamente quebrará as pernas de qualquer um. Seja você filisteu ou não.