20 fevereiro 2006

Syriana



Nota: 6

Filho de jornalista e opositor do governo Bush, George Clooney fez a Section Eight, sua produtora montada em parceria com o cineasta Steven Soderbegh, trabalhar bastante no último ano em temas caros ao seu xará do mal. Primeiro foi a liberdade de expressão em Boa Noite e Boa Sorte, que o próprio Clooney dirigiu. Agora são os meandros econômicos e políticos de Syriana - A Indústria do Petróleo, produzido e protagonizado pelo astro.

Ambos os filmes são palavrosos, o que não é de se espantar. Tratam de assuntos incomuns ao grande público; há uma grande carga de didatismo aí, de cerimônias para inteirar o espectador do que se passa na tela. No caso de Boa Noite e Boa Sorte, isso se encaixa à linguagem: a palavra é a própria matéria-prima do âncora de TV. No thriller tenso Syriana, a narrativa embola com a quantidade de personagens e informações. Muita gente fala rápido, discursa e discute demais. Prepare-se para apurar os ouvidos ou então para não desgrudar os olhos da legenda.

Não por acaso, quem assina a direção é Stephen Gaghan (Sem Pistas), mais conhecido como o roteirista de Traffic. Adaptação livre de See No Evil: The True Story of a Foot Soldier in the CIA's War on Terrorism, livro de memórias do operativo de baixo escalão da CIA Robert Baer, Syriana é o típico caso de um texto caudaloso que tem dificuldades em se traduzir em imagens. E como Traffic, painel completo do mercado de drogas, Syriana tenta tocar todas as extremidades do negócio petrolífero. Vai das fusões de megacorporações à luta pelos poços, passando por conchavos políticos e atividade da agência de espionagem, até a catequese de um homem-bomba e o processo de coroação e derrubada de um emir.

A sinopse dá uma idéia da complexidade do roteiro. Clooney vive Bob Barnes, espécie de alter-ego de Bob Baer. Especialista em Oriente Médio há duas décadas, herói do famoso e intrincado seqüestro terrorista de um avião no Líbano em 1985, Bob não é um santo. Troca arsenal com terroristas em favor de cooperação. Numa de suas ações, porém, uma arma vai parar em mãos erradas. A CIA vira alvo do noticiário. Bob é colocado de molho. Até que surge uma nova tarefa: caçar um principe árabe, futuro emir, que tem idéias antiimperialistas.

Enquanto isso, o advogado Bennett Holiday (o ótimo Jeffrey Wright, de Flores Partidas) é escalado em Washington para analisar a fusão entre duas companhias petrolíferas. A menor, texana, dirigida como uma família por Jimmy Pope (Chris Cooper), acaba de encontrar poços no Golfo Pérsico onde ninguém suspeitava que existiam. É evidente que a empresa abusou da corrupção e da troca de favores com os árabes - e cabe a Holiday passar a limpo essa negociata. O problema é que ele foi contratado só para posar de eficiente, ninguém quer ver nada esclarecido.

Também leva uma carreira sem manchas Bryan Woodman (Matt Damon), técnico de uma consultoria suíça especializada em fontes de energia. Em decorrência de uma fatalidade, Woodman acaba prestando assessoria ao Príncipe Nasir Al-Subaai (Alexander Siddig), primogênito do velho emir de uma nação árabe fictícia. Reformista, quando assumir Nasir vai querer para si o controle do petróleo, dispensando acordos com os Estados Unidos - é a sua maneira de sonhar com um país muçulmano mais justo, menos explorado. O governo estadunidense não pensa assim, nem a CIA, muito menos as multinacionais dos barris.

Muito abaixo dessas intrigas de alto escalão, o jovem paquistanês Wasim Khan (Mazhar Munir) acaba de perder, junto com o pai, o emprego em uma refinaria - corte de despesas feito justamente por conta da fusão. Não há perspectiva para Wasim, e é nessas horas que adolescentes não tão chegados no islamismo acabam cooptados por fanáticos suicidas em nome da causa. Pronto, está montada a teia. E o ponto de intersecção - o encontro de armas desviadas, agentes traídos, políticos rebeldes, peões desesperados - é dramático.

Esse encadeamento todo caberia muito bem numa aula de geopolítica. Ainda que nomes e nações sejam fictícios, é fácil achar um correlato real para cada um deles - o emirado, por exemplo, pode muito bem ser a Arábia Saudita onde os EUA mandam e desmandam. Syriana é também uma lição formidável de teoria econômica marxista, sobre como o dinheiro sustenta e rege todos os fatores de nossas vidas. São os petrodólares que decidem a sucessão de um governo árabe e, indiretamente, incentivam o terror.

O problema do filme, paradoxalmente, é essa sua vocação para ensinar. Faltam, em meio ao didatismo, situações que sejam apenas sugeridas, que forcem o espectador a desvendá-las. O maior e melhor exemplo de mensagem implícita é o retrato da relação entre o advogado Holiday e seu pai alcoólatra. Em meio à verborragia dos outros, os dois só trocam meias palavras. Por quê? Seria a vergonha do pai diante do emprego nada honroso do filho? O esforçado Holiday, negro, estaria disposto a quê para se fazer notar entre os brancos que dão as ordens? São questões que somos forçados a responder.

Aliás, outra das poucas indagações que ficam inexplicadas no ar é o significado do título. O termo "syriana" não é mencionado em momento algum. Segundo o próprio Baer, este é o nome usado dentre os analistas de Oriente Médio para designar uma localidade fictícia na região, mítica até, com fronteiras redesenhadas de acordo com os interesses dos ocidentais. A mensagem, no fundo, é que não importa que nome leve - Irã, Arábia Saudita, Iraque - alguém mais poderoso tratará de manipulá-lo. Se tem ouro negro debaixo do solo, é Syriana.

Assim como O Jardineiro Fiel fazia com a indústria farmacêutica, O Senhor das Armas com a Indústria bélica, e o próprio Traffic com as drogas, esse filme escolhe o petróleo para criticar. O modo com que o roteirista lida com as questões é similar nos dois filmes que escreveu. A trama vai para frente e para trás em meio a várias histórias envolvendo a indústria mundial do petróleo, a política do Oriente Médio e o terrorismo. A certa altura, todos os enredos se encontram.

Dessa vez, no entanto, os saltos geográficos e de personagens deixam o espectador confuso. Pior, os diálogos densos com significados nas entrelinhas são rápidos demais. Por isso, Syriana dá a impressão de ser uma minissérie televisiva condensada em duas horas.

Talvez Syriana devesse ser uma minissérie. Com a necessidade de correr contra o tempo, Gaghan reduz cada história e seus personagens a clichês. Bob, por exemplo, é uma figura bem familiar na ficção de espionagem. Ao engordar e deixar a barba crescer, Clooney dá ao espião alguma credibilidade, mas o personagem precisa de um filme só para ele para deixar transparecer sua personalidade.

O mesmo acontece com os outros personagens. Bennett é o caso clássico do homem que está pronto para colocar a ambição pessoal acima da ética e da moral. A briga entre Bryan e sua mulher não é convincente, já que o filme não tem tempo para mostrar esses personagens além do nível superficial. E o homem-bomba quase nem aparece. Na verdade, todos os personagens islâmicos não conseguem sair do estereótipo.

E mesmo com um enredo confuso e com muita informação despejada em cima do telespectador, o ponto positivo é que o cinema está novamente se politizando e fazendo filmes políticos como nas décadas de 60 e 70. Por mais que o filme não se sustente devido à enorme quantidade de informações, é sempre ótimo ver filmes que critiquem o imperialismo e a maneira de se fazer política nesses tempos obscuros.