28 fevereiro 2006

Capote



Nota: 7

Perto de Truman Capote, Edward R. Murrow era um Cid Moreira.

Por um desígnio do mercado, temos em cartaz nos cinemas e na disputa do Oscar, duas facetas opostas do jornalismo. Murrow é a sala de visitas, Capote é a boca do fogão. Em Boa noite e Boa Sorte, o diretor George Clooney e o ator David Strathairn fazem de Murrow um modelo de engajamento: leal, justo, aprumado, o repórter que muda o mundo com seus ideais, um tipo utópico perdido em algum momento dos últimos vinte e tantos cínicos anos de História. Ok, no filme Murrow fuma como uma chaminé, mas eram idos de 1950, isso faz parte da mitificação.

O Truman que o diretor Bennett Miller e o ator Philip Seymour Hoffman recriam em Capote (2005) também fuma demais - de resto é humano, demasiado humano. Egoísta, melindroso, efeminado de voz fina, repórter que vai a campo provar que sabe tirar o suco de uma boa história, que sabe arrancar confissões de um eremita. A isso se chama vaidade, de resto todo jornalista a tem, e é evidente que Murrow nutria sua dose também. O caso é que sobreviver dela, sofrer por ela, ver-se entre sucesso e cobrança moral a ponto de se anular, era particularidade de Capote. Ele é o tipo de jornalista que faz de tudo para arrumar um matéria e tirar o que quer de seu interlocutor. Finje caras, gestos, personalidades, representa o tempo todo. Sendo um personagem com amigos, outro com conhecidos e outro com aqueles que pretende extrair alguma coisa. Falso, persuasivo, hábil com as palavras. Em um momento do filme o xerife da cidade, que foi também usado pelo reportér, pergunta se "à sangue frio" tem a ver com o assassinato em si, ou com o próprio Capote, que faz de tudo, para conseguir o que quer. Difícil descobrir.

Indicado a cinco Oscars - melhor filme, diretor, roteiro adaptado, ator para Hoffman e atriz coadjuvante para a serena Catherine Keener - o filme recria as condições em que Capote gestou sua obra-prima literária, À Sangue-Frio, um dos maiores romances do século XX. Sim, porque não faz sentido ser um atormentado se não for pra virar gênio. Revolucionário, o texto inaugurou em 1966 a era dos livros-reportagens. Ajudou a consolidar o New Journalism crescente na época: investigação acurada da imprensa misturada com manhas da literatura. Sem ele não haveria A luta de Norman Mailer, nem Notícia de um sequestro de Garcia Marquez. Sem ele não existiria a seção de "não-ficção" dos best-sellers da semana.

Tudo começa em 15 de novembro de 1959, quando os quatro membros da família Clutter são encontrados mortos em seu rancho em Holcomb, Kansas. Então colaborador da revista The New Yorker, já conhecido na metrópole por seu relato que viraria o filme Bonequinha de Luxo em 1961, Capote recorta a nota policial do jornal e embala as malas para lá. Há uma bela imagem que metaforiza esse momento do filme: o trem negro que atravessa, como numa violência física, os campos de trigo dourados, típicos do Sul. Capote nasceu no Arkansas caipira, mas no momento representa o trem, o novaiorquino desabalado atrás de alguém que lhe escancare os detalhes sangrentos da tragédia.

Vale já comentar o talento do diretor Miller para condensar idéias em poucos diálogos. Com apenas um documentário no currículo, de 1998, Miller faz deste seu primeiro filme de ficção um baita exercício de concisão. Uma única passagem é necessária para (começar a) entender Truman Capote. Ele quer entrevistar a garota que achou os corpos, mas ela se fecha ao sujeito afetado que fala fino. Capote a examina e quase não abre a boca. E eis que então nota o ponto fraco da menina, solta a frase mortal, aquela que dosa compaixão pelos outros e piedade por si mesmo. Reverter seus próprios fardos em confiança é a primeira das complexas características do repórter-escritor.

Aos poucos Capote se dá conta de que tem ouro em sua frente, convence o editor a transformar a reportagem em livro. Ganha meses, anos para escrevê-lo - e não cabe aqui explicar muito mais do que segue na tela. Que o filme cometa algumas licenças em relação à história original de À sangue-frio, como negligenciar a relação homossexual entre os dois assassinos (embate de poder que acaba determinando o desfecho do crime), até que não prejudica tanto. O que importa salientar é que o dilema da vaidade pontuará toda a história, e Miller sabe muito bem trabalhá-lo sem esgarçar o tema.

Conta a seu favor, obviamente, o fato de ter pedido a Philip Seymour Hoffman que encarasse o papel. Depois de vencer a dificílima composição do personagem, que na mão de qualquer outro estancaria na caricatura, o ator predileto de Paul Thomas Anderson embarca na proposta de Miller de poucas palavras e muitos significados com esmero. Pode até não levar o merecido Oscar de melhor ator, mas de qualquer maneira já recebe finalmente reconhecimento por sua carreira. E Hoffman chora como ninguém as verdadeiras lágrimas de crocodilo. Crítica e público estarão de olho na brilhante metamorfose de Philip Seymour Hoffman no escritor norte-americano já morto.

Capote é um homem fácil de imitar, mas difícil de entender, um demônio na arte do engodo que assumiu um disfarce atrás do outro para encobrir a solidão de sua natureza e seu gênio. Hoffman consegue entender isso.

Capote baseia-se na biografia que Gerald Clarke fez do escritor, mas o foco é deliberadamente estreito: o período de tempo coberto é de 1959, quando Truman percebe o potencial da história sobre os assassinatos da família Clutter em Holcomb, Kansas, no New York Times, até a execução dos assassinos, em 1965.

A publicação de seu livro sobre os assassinatos transforma Capote no escritor mais famoso da América. Isso em uma época em que escritores importavam, e best-sellers nem sempre eram volumes de auto-ajuda e thrillers esperando para virarem filmes.

O roteiro estabelece cuidadosamente a época e o lugar e situam seu herói em duas Américas diferentes. Uma é a formada pela sociedade literária de Nova York, com seus coquetéis e gracejos inteligentes, na qual ninguém supera Truman Capote, um escritor sulista e gay assumido com uma voz de soprano, maneiras excêntricas e uma ambição inconfundível de obter sucesso em sua escrita. A outra América é a do Meio-Oeste, onde Truman não é apenas um peixe fora d'água, mas um peixe de outro mundo.

Ninguém sabe o que fazer quando ele aparece ali acompanhado de sua amiga de infância, Harper Lee (Catherine Keener), que logo vai ganhar fama por conta própria com seu livro "To Kill a Mockingbird." Mas, nesse projeto, ela serve mais como pesquisadora de Truman e, como o próprio diz, como seu "guarda-costas."

Aos poucos, a dupla ganha a confiança de Alvin Dewey (Chris Cooper), um engomado agente do FBI de Kansas e, dos assassinos quando eles são pegos, Perry Smith (Clifton Collins Jr.) e Dick Hickock (Mark Pellegrino). O status de outsider de Truman, tão peculiar para toda essa gente, algumas vezes funciona em seu favor.

Mas lidar mental e espiritualmente com os assassinos deixa uma marca nele, aumentando ainda mais sua já grande dependência do álcool, abalando sua relação com o amante Jack Dunphy (Bruce Geenwood) e perturbando a sua mente.