Crime Delicado
Nota: 7
Conhecido e respeitado pelos policiais Os Matadores (1997), Ação Entre Amigos (1998) e O Invasor (2001), o paulistano Beto Brant surpreende outra vez em Crime Delicado (2005).
Apesar do título do filme, no entanto, a surpresa da vez não é pela seqüência de sua trilogia de dramas policiais. Brant apresenta em seu quarto longa-metragem uma equilibrada e autoral exploração da arte, do fetiche, e amplia de forma sensível seu espaço e relevância no cinema nacional. Trabalhando em cima de temas como corpo, beleza, estética, arte, o diretor vai além do que se esperava dele. Vemos um Brant flertando com outros tipos de cinema, como outras estéticas, o que acaba deixando o filme bem interessante.
Crime Delicado é também o primeiro filme de Brant que não é baseado em uma história de Marçal Aquino, escritor de todos os seus filmes anteriores. Apesar de co-adaptado por Aquino, o longa tem como base o romance de Sérgio Sant'Anna. A idéia de levá-lo para o cinema partiu do produtor e protagonista Marco Ricca, que comprou os direitos e convidou o cineasta, com quem havia trabalhado pela primeira vez em O Invasor, a realizá-lo.
O resultado é excepcional. A história se inicia com um crítico de teatro famoso (Ricca), que se apaixona pela musa de um artista plástico (Lilian Taublib). Mas ao tentar conhecê-la melhor e ser apresentado à obra do pintor (Felipe Ehrenberg), o jornalista - dono de um conhecimento meramente teórico sobre o amor, obtido através das peças que critica - entende que a mulher é prisioneira de uma relação exploratória. O artista aproveita-se da deficiência física dela para pintar suas obras, algo que o crítico considera pornográfico e decide impedir que continue.
É extremamente prazeiroso descobrir como o longa direciona o público, ora a compactuar a visão da arte do crítico, ora a condená-lo. A reflexão é inevitável aos que caem na armadilha do cineasta e extremamente bem-vinda.
Soma-se ao roteiro mordaz a impecável direção de arte: a fotografia (Walter Carvalho, excelente), a iluminação, os cenários, tudo evoca uma montagem teatral, a especialidade do personagem principal, colocando-o como um ator dentro de sua própria peça. As atuações seguras de Ricca e dos desconhecidos - e corajosos - Lilian Taublib e Felipe Ehrenberg também devem ser exaltadas. Brant os conduz com enorme naturalidade, apesar do início um tanto forçado por parte dela.
Primeiro existe Antonio, severo crítico teatral, e as peças que vê. Há o olhar, primeiro, e o juízo, em seguida. Antonio é, em seu negócio, um homem poderoso, na medida em que de seu olhar depende o destino não só de espetáculos como de carreiras.
Mais consciente do seu poder que de seus limites, esse homem descobre que o olhar pode ser recíproco. No espetáculo que se transporta do palco para um bar, enquanto observa o mundo, também é observado.
Inês diz que Antonio a olhava. Antonio diz o inverso. Quem olhava para quem? Seus olhares se cruzam para dar origem à estranha aventura que o envolve com essa mulher, cuja característica mais marcante é não possuir uma das pernas.
Já no primeiro encontro ela pergunta a Antonio o que ele primeiro observa nas mulheres. Ora, uma perna a menos não é coisa que se deixe de observar. Antonio deixa-se fascinar. O que o arrasta para ela, precisamente? Existe a hipótese de que, em busca da perfeição estética, esse homem se deixe encantar pelo seu contrário: pela falta, pela impossibilidade. Inês não deixa de ser como essas estátuas antigas, cuja perfeição imaginamos com maior desenvoltura quanto lhes faltam braços.
Ou ainda Inês introduz a ruína e a desordem na vida desse homem cerebral, porém amputado do mundo. O que é a beleza, afinal? Ou seja, o novo filme de Beto Brant nos fala de estética e pode mesmo ser visto como uma apaixonada discussão sobre a arte e seu significado neste mundo. Ora, o mundo que Antonio é dado a percorrer parece todo o tempo contrapor-se ao ideal de beleza. A começar pelos quadros de que Inês é modelo, sem dúvida, passando por vernissages, conversas de boteco, discussões judiciais - tudo indica que estamos diante de um mundo em decomposição, ruínas que a cada passo vão marcando o rosto a princípio quase angelical do crítico.
É claro, críticos não pairam acima das obras - e de certa forma Antonio deverá pagar por sua soberba de intelectual. Afinal, sua obra - seu amor por Inês, que embute provavelmente o desejo de reconstruí-la - revolta-se contra esse desejo tirânico, preferindo entregar-se ao pintor que a quer tal qual, que compreende seu corpo, que sabe vê-la, enfim.
A vida, porém, é em preto-e-branco. Real é o que o palco ilumina. Se o crítico também é vítima dessa paixão, por que é patético e indevido seu desejo pela musa, enquanto que a promiscuidade entre diretor e atriz, ou pintor e modelo, é celebrada como compartilhamento sagrado da criação?
É que o crítico chega tarde demais. Apaixonado pela falha, e não pela perfeição, é um invasor que estupra a musa em sua própria casa, já no fim da jornada, não com seu desejo, mas com suas dúvidas. E, no entanto, só ele traz o olhar de fora, polinizado pelos improvisos bêbados da vida cotidiana. E se acaba misturando o que vê com o que vive, perdendo a objetividade, isso depõe a seu favor: não se pode falar do amor sem se apaixonar.
Mesmo que Beto Brant acabe soltando os fios da trama, como nos filmes de Lynch, propondo o depoimento direto para sair desse labirinto de espelhos, é sempre pelos olhos de fechadura do crítico que o público vê o filme, e nos planos cuidadosamente estáticos pode se contagiar pelo deslumbrante desempenho de Matheus Nachtergaele, de Maria Manoela, de Zecarlos Machado.
Um estranho e complexo filme, o mais desenvolto de Beto Brant, cuja imagem final se propõe como um enigma surrealista. O "corpo divergente" de Inês, um pouco à maneira dos filmes de Cronenberg, não deixa de ser esse corpo mutante que põe em parafuso essa ordem de que a arte, afinal, é uma parte significativa.
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