20 fevereiro 2006

Match Point (Ponto Final)



Nota: 7,5

Uma parte de Woody Allen, todos sabem, bem que gostaria de ser européia. Essa parte, que ocupa uns 75% de seu ser, nos últimos anos tem tido de se contentar com Nova York e o "nova-iorquismo" do cineasta.

Em Ponto Final - Match Point, Woody, como que voltando aos anos 80, encosta a comédia de lado e recupera a ambição - com vantagens e desvantagens. Ele vai a Londres, isto é, a uma série de signos de cultura e finesse que, ali, nem parecem essas idéias fora do lugar que o autor costuma atribuir aos intelectuais americanos (e um tanto pedantes) de seus filmes.

A história de Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) tem Dostoiévski, ópera, museus e galerias - até cinema. Nascido pobre e em Dublin, Chris é o sujeito tenaz que prosperou como tenista profissional menos do que o necessário para se tornar uma estrela, mas o suficiente para, hoje, na condição de ex-tenista, ser aceito na alta roda londrina e aproximar-se de Chloe (Emily Mortimer), a herdeira rica, simpática e um tanto insossa com quem vai casar.

Mas a origem parece chamá-lo na pessoa de Nola Rice (Scarlett Johansson), americana sensual, um tanto grosseira e muito atraente, que realmente o inflama. E Nola é, quando o filme começa, a futura cunhada de Chris - está noiva de Tom Hewett (Matthew Goode), irmão de Chloe.

A história é um tanto intrincada, desigual, comporta vários tons, evoluindo com franqueza para o filme policial "noir" no terço final - a parte mais bem-sucedida do filme. E por que será ela a parte mais bem-sucedida? Talvez porque nesse momento entre num registro bem americano e deixe a Europa e sua cultura um pouco sossegadas.
Essa parte policial amarra os grandes temas do filme, como a idéia manifestada por Chris de vivermos num mundo trágico, em que o acaso é peça central da existência.

Ele é também o homem que procura proteger a família de todos os males que possam atingi-la. É ainda, operisticamente, alguém que corre em busca de sua perda e corteja o mal com a mesma intensidade que busca ascender socialmente. (Fora isso, como em alguns Woody Allens, está envolvido num triângulo amoroso um tanto incestuoso).

Tamanha amplitude de personalidade curiosamente não beneficia o conjunto do filme, por uma série de razões, a começar pelo fato de que os demais personagens parecem antes de tudo apêndices parciais de suas contraditórias ambições e só vivem o indispensável para gravitar em torno dele. Em segundo lugar porque, à força de ser tentacular, o caráter de Chris oscila entre a frieza demoníaca e a paixão adolescente, conforme convenha ao roteiro.

Talvez por isso mesmo, é quando o filme se torna um franco policial, em que essas coisas perdem importância, que Allen coloca o espectador em posição de torcer pelo personagem sinistro - assim como um Billy Wilder fizera em Pacto de Sangue -, e o faz com desenvoltura e graça.

Mesmo quem notar alguma falta de rigor no fechamento da trama não lhe poderá condenar por falta de coerência: tudo está nas mãos do acaso, como sustenta o cínico Chris Wilton. E, no fim das contas, mesmo que o lado europeizante o atrapalhe, Allen faz um filme que se assiste com prazer -como é, aliás, de seu feitio.

A vida é trágica ou cômica? A pergunta que se faziam os amigos no bar era respondida em tom de farsa na história de Melinda e Melinda, filme anterior de Woody Allen. Diante da mesma questão, o tenista Chris Wilton não vacila - escolhe a primeira opção.

De fato, o que Allen propõe e demonstra neste seu último filme, é que tudo o que parece ser uma escolha, não é. Sorte, acaso e jogo são algumas das metáforas que transitam ao longo da narrativa. Mas ele reitera, sempre voltando à questão de Melinda e Melinda, que, numa partida, para ganhar é preciso perder e que nem um jogo de dados abolirá o acaso. Como jogador, Chris é uma criatura mimada pela vitória. Só um fator essencial o poupa da soberba: ele acredita na sorte.

O personagem vai dar a Allen a oportunidade de retomar um tema arqueológico da literatura, do teatro e do cinema -a paixão como força trágica, destruidora das seguranças racionais, reiterada aqui com as árias de ópera, que acentuam a emoção e substituem a ligeireza do jazz de outros de seus filmes. Paixão daquela espécie que, no cinema, Truffaut foi grande especialista, como em As Duas Inglesas e o Amor e A Mulher do Lado, que repercute intensamente em Ponto Final.

Com uma ambigüidade certeira, o diretor decide a partida. No tênis, Chris está em campo seguro, controla as forças, sabe manipulá-las e é tão regulado que pode desempenhar a função de mestre.

No tênis, ele conhece os irmãos Tom e Chloe, exemplares de uma civilização da sociabilidade sem arestas. Mas é numa mesa de pingue-pongue que seu caminho vai ser bloqueado pela atriz Nola, personagem cujas origens são obscuras e que se aferra a uma ilusão. Numa palavra, instável. Ambos conjugam um só verbo (to play, em inglês). A diferença é que o jogo de Nola a condena ao fracasso, e Chris, para vencer, se for preciso, vai até o fim.

Em outro momento, quando a paixão abre de vez as portas, Allen antecipa para o espectador a chave do que lhe interessa nesta história. No primeiro beijo sob a chuva, será a vez de Nola interrogar Chris: "Você não tem culpa?".

Ora, estamos postos a partir daí no atalho da paixão que conduz ao crime, mas cuja resolução passará longe das ficções apaziguadoras. Pois o que interessa a Allen não é a solução de um mistério. Solucionado ou não, punido ou não, resta, como uma cicatriz, seu efeito: a culpa.