28 fevereiro 2006

Boa Noite e Boa Sorte



Nota: 9,5

George Clooney é uma espécie de Robin Hood de Hollywood: rouba dos ricos (leia-se bobagens que aceita fazer para grandes estúdios por cachês que batem nos US$ 20 milhões) para dar aos pobres (filmes independentes que financia ou viabiliza por meio da produtora que divide com o amigo Steven Soderbergh, diretor e pioneiro do cinema independente contemporâneo). Assim, é mais do que justo que finalmente tenha sido reconhecido pelo Oscar, prêmio que o ignorava sistematica e metodicamente em suas mais de duas décadas de carreira. O ator foi agraciado com três indicações e deve subir ao palco pelo menos uma vez, a primeira de sua vida.

Se pode alienar o espectador médio local por tratar de um episódio excessivamente norte-americano, merece o ingresso pelos valores universais que defende, como a liberdade de imprensa e o direito de discordar, e pelo resgate histórico que faz para as novas gerações da história dos Estados Unidos na década de 50, ponto de partida para a implantação de ditaduras nas Américas.

O filme ganha mais importância quando se leva em conta o desastre democrático que é a administração de George W. Bush, com sua própria caça às bruxas, desprezo pela imprensa livre e independente e diminuição consentida das liberdades individuais em nome de uma "guerra ao terror" duvidosa. Qualquer semelhança entre o período atual com o de cinquenta anos atrás, não é mera coincidência.

Boa Noite e Boa Sorte trata da história verídica do jornalista Edward R. Murrow (1908-1965), que no começo dos anos 50 apresentava o programa semanal "See It Now" (Veja Agora) na CBS, então uma das três principais emissoras de TV norte-americanas. À época, com poucas exceções, a grande imprensa norte-americana em geral, mas a televisiva principalmente, pisava em ovos na cobertura do senador republicano Joseph McCarthy (1908-1957), do Estado do Wisconsin, que, via Subcomitê Permanente de Investigações do Senado, promovia uma verdadeira Inquisição contra o que ele chamava de "ameaça vermelha".

Murrow foi um dos que teve coragem de desafiá-lo, de maneira séria e objetiva, contrapondo fatos às maquinações do celerado político. Isso acabou custando seu emprego, mas deixou uma boa história e um bom exemplo, que agora Clooney resgata.
Um dos motivos é que seu pai, que também sofreu por ser um jornalista combativo na mesma época de Murrow, o considerava o paradigma da imprensa livre.

Pois tem futuro o menino. No comando do filme, ele só toma decisões acertadas. Uma delas é optar pelo preto-e-branco, em vez do colorido, o que confere a desejada sobriedade que o diretor queria. Outra é a escolha do elenco, raras vezes tão acertada. Destacam-se principalmente o personagem principal, interpretado pelo grande e freqüentemente injustiçado ator David Strathairn, e seu chefe, William Paley, vivido pelo veterano Frank Langella, sempre contido. Outro trunfo do filme é usar cenas de arquivo do verdadeiro Joseph McCarthy nas seqüências em que o senador aparece, em vez de optar pelo caminho fácil de um ator que provavelmente não resistiria à tentação de fazer um vilão caricato de cinema mudo. McCarthy em ação, McCarthy como McCarthy, é mais caricato e mais vilão do que supúnhamos nós, espectadores, familiarizados com o político apenas de leituras.

Não há como não tirar o chapéu para George Clooney. Ator egresso da televisão - onde ganhou fama ao viver o médico bonitão da série E.R. -, planejou sua carreira como poucos e, ao lado do cineasta Steven Soderbergh, fundou a produtora Section Eight, que tem um currículo invejável de boas produções - sejam elas blockbusters ou obras autorais.

O segundo filme de Clooney como diretor - o primeiro foi o bacana, mas um tanto pretensioso Confissões de uma Mente Perigosa - tem arrancado elogios e indicações para os principais prêmios da indústria. Merecidos, vale dizer. Boa Noite e Boa Sorte (Good night, and Good Luck, 2005) é uma produção ousada, que passa ao largo - e com enorme louvor - de todos os aspectos dito "comerciais" da Hollywood moderna. A começar pela opção estética do preto e branco, para a qual a maioria das pessoas torce o nariz.

A história nos situa nos anos 1950, quando o senador Joseph McCarthy (imagens de arquivo no filme) empenhou-se numa caça às bruxas buscando supostos comunistas no seio da nação. É por esse cenário de insegurança que o filme passeia, mostrando o âncora de TV Edward R. Morrow (David Strathairn), o produtor Fred Friendly (o próprio Clooney) e sua equipe de repórteres desafiando o governo em sua luta para apresentar os dois lados da nebulosa questão. Em seu programa, Morrow - que usa o bordão "boa noite e boa sorte" como frase de encerramento - revela o jogo sujo de McCarthy e torna-se alvo do senador, iniciando um acalorado debate pela liberdade de expressão e conseqüente queda de McCarthy.

Da escolha de seus protagonistas aos enquadramentos e à fotografia estonteante de Robert Elswit (Embriagado de amor), Clooney obtém enorme sucesso em fazer sua fita exalar integridade. Strathairn se entrega de tal forma ao seu personagem que a luta e a idoneidade dele ganham um ar sexy. Claro que a fumacinha do cigarro subindo em todas as cenas e sendo cruzada pelas luzes do estúdio também ajudam nessa construção... e muito. É o glamour do film noir vivo e muito bem empregado com mãos firmes.

Mas não se apresse em pensar que toda essa construção artística existe para ocultar falhas no roteiro ou algo assim. Boa noite e boa sorte é excepcional também nesse aspecto. Com extrema segurança, sem recorrer jamais à saída fácil da explicação didática, os diálogos são disparados com tanta velocidade e veemência que parecem extrapolar o filme, não cabendo nele.

E se o falatório já era relevante em 1950, parece ainda mais importante hoje, tempos em que a integridade na mídia e na política rareia a cada eleição, a cada renovação editorial. Clooney tem plena consciência disso e a mensagem está lá pra quem quiser - ou puder - pegar. Sai o macartismo, entra o Bush do Patriot Act, a Fox News... Tudo implícito, mas o cutucão é incisivo. Talvez com isso - e alavancado pelas indicações ao popular Oscar - o filme até consiga abrir alguns olhos... quem sabe? Boa noite e boa sorte para todos nós.