10 novembro 2005

Cidade Baixa




















Nota: 7

O cineasta baiano Sérgio Machado não esconde uma certa satisfação quando comparam o seu Cidade Baixa ao clássico francês Jules e Jim. Mas ele também deixa claro que ao criar um triângulo amoroso em Salvador, ele tinha outros objetivos, diferentes do mestre François Truffaut.

"Eu queria fazer um triângulo amoroso diferente do tradicional - sem a morte e a punição", contou em entrevista à Reuters. "Também tinha um desejo de tentar entender esses jovens de 20 anos, de classe baixa. Foi isso que me impulsionou a escrever o filme."

O longa é protagonizado por Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga e conta a história de um amor inusitado entre o trio. Machado deixa claro que com seus personagens não queria fazer "um tratado sociológico sobre malandros, sobre prostitutas e sobre a Bahia". Ele sabe que a história é universal. "O essencial é comum às pessoas", definiu.

Para realizar esse desejo de fazer um roteiro sobre esses jovens, Machado contou com a ajuda do cineasta e roteirista cearense Karim Ainouz (Madame Satã), além de uma extensa pesquisa de campo visitando barzinhos e casas de strip em Salvador durantes 3 meses.

"O roteiro do filme tem muito das histórias que ouvi dessas pessoas da noite. Muitos até aparecem no filme, ficaram meus amigos", disse o diretor.

O estroboscópio, peça onipresente nas boates-prostíbulos de Salvador, é um dos símbolos fortes do belo Cidade Baixa. A luz pulsa o tempo todo como os altos e baixos do triângulo amoroso da história.

Menina com jeito de mulher, Karinna está deixando o quarto que tem foto de Rodrigo Santoro na parede. No bar, ela pergunta por carona de estrada e quem responde são os barqueiros Deco e Naldinho. Podem levá-la até Salvador em troca de sexo, oferecem. Começa aí, no primeiro minuto de filme, uma relação que vai gerar ciúme e rancor na capital.

Alice Braga, a pretendida de Buscapé em Cidade de Deus, é quem vive Karinna. Lázaro Ramos (O Homem Que Copiava) e Wagner Moura (O Caminho das Nuvens) são Deco e Naldinho. Os personagens têm muito da personalidade dos atores. Karinna é meiga, mas determinada. Deco esconde medos por trás da carranca. E Naldinho banca o impulsivo. Os dois se conhecem de infância, administram o barco juntos, são inseparáveis, como os melhores amigos Lázaro e Wagner.

A idéia do estroboscópio se encaixa bem aqui. Como na lâmpada que alterna luz e escuridão em ritmo acelerado, a fim de garantir uma sensação truncada de movimento, Cidade Baixa avança enquanto força o espectador a preencher as lacunas, os escuros da trama. O que o roteiro oferece dos perfis de Deco e Naldinho – cumplicidade em vida e morte, juras de amizade - é proporcional ao que esconde – segredos de adolescência, rivalidades veladas, competição em todos os níveis.

Falou-se até aqui apenas dos personagens e das atuações porque todo o trabalho do diretor estreante em longas de ficção Sérgio Machado (do documentário Onde a Terra Acaba) foi pensado em função do trio. No material cedido à imprensa, ele diz que não queria um tratado sociológico sobre a zona portuária ou os bares de Salvador, apesar de titular o filme com a região e enquadrar constantemente a população figurante. Queria falar de gente, de pessoas que sentiriam a mesma coisa – medo, decepção, desespero, paixão, raiva – se estivessem em qualquer outro lugar do mundo.

Esse "investimento no pessoal" começa pela preparação do elenco, papel de Fátima Toledo (de Cidade de Deus). Profissional de pouca visibilidade junto ao público, é ela quem esquenta os atores para a jornada carnal que na tela parece de verdade. Foi Fátima quem disse no primeiro dia de ensaio: "Ninguém aqui vai compor personagem, vocês são vocês".

A opção pela câmera na mão e pela iluminação baixa também ajuda nesse privilégio da liberdade cênica. Sem tripés ou holofotes ao redor, os atores podem se movimentar, improvisar, extravasar – a câmera é quem corre para acompanhá-los. O resultado é uma película com tom de urgência, granulada, de cores vivas e tons que vão sem medo do preto completo ao branco cegante, novamente como a luz estroboscópica.

"A gente não sabe nunca ao certo onde colocar o desejo", cantava com sabedoria Caetano Veloso em "Pecado Original", que embalava as desventuras eróticas de "A Dama do Lotação". O filme é outro, mas a canção não soaria deslocada se acompanhasse os encontros e desencontros de Deco, Karinna e Naldinho em "Cidade Baixa", bela estréia na ficção de Sérgio Machado.

A sós, a dois ou a três, não importa o número, o fato é que com o desejo a conta nunca fecha. É o que experimentam na pele e na alma os amigos barqueiros, que levam uma vida aparentemente ordenada até que cruzam o caminho de Karinna, garota capixaba que ganha a vida na prostituição.

Cidade Baixa é o recorte dessas vidas desde o momento em que elas se encontram até o momento em que elas não acabam. Por isso não busca o inverossímil das ficções completas. O filme começa como um boat-movie e continua como perambulação pelas ruas de Salvador, ambas condições que permitem a Machado deixar a ficção aberta, com as linhas do destino combinando-se e recombinando-se não de modo aleatório, mas desenhando os fluxos do desejo, na medida em que este traça as linhas de atração e de repulsão entre seus personagens.

Ao fazer isso, opta por uma tradição moderna da ficção cinematográfica incompreensivelmente sem muitos representantes no Brasil. Nela, o filme resulta menos de um roteiro elaborado demais, mas, aparentemente deixa-se levar, ou melhor, nutre-se de uma atenção da câmera aos atores, guiada por seus gestos e olhares.

Nada disso seria encantador se não fosse a presença magnética da trinca Alice Braga, Lázaro Ramos e Wagner Moura, que se distancia do modo de representação da TV em proveito de composições de riscos. O naturalismo que alcançam não tem a ver com o "parecer natural" dos atores de novela. Aqui, eles são postos em cena inteligentemente menos como máscaras e mais como corpos, que a câmera não poupa de capturar em sua beleza e em sua feiúra, marcas, suor e lágrimas.

Em vez de buscar um cinema de fórmula, Machado acha seu lugar tomando um atalho no qual valoriza em detalhe a imperfeição: da história, dos atores, do roteiro e de tudo o que emana da vida.

Sem almejar uma indicação ao Oscar nem arrastar multidões ao cinema, Cidade Baixa representa aquilo que deve ser essencial na busca de uma cinematografia sólida: um ponto de vista assumido, a recusa do clichê, uma capacidade de traduzir idéias e emoções sem precisar mimetizar soluções alheias, enfim, um modo de expressão capaz de ser admirado pelo próprio país e pelo mundo.