23 novembro 2005

Cinema, Aspirinas e Urubus



Nota: 7

É muito bom ver o bom cinema brasileiro representado na tela. A agradável surpresa da vez - talvez não tão surpresa assim, pelo passado como roteirista e curta-metragista - é o diretor Marcelo Gomes, com seu muito bem realizado: Cinema, Aspirinas e Urubus.

Passa-se no sertão nordestino, em 1942, durante a II Guerra Mundial, por onde viaja um alemão, Johan (Peter Kenath), como representante da Bayer, vendendo de maneira engenhosa o famoso remédio para dor de cabeça - leva consigo uma tela e um projetor de cinema, e em cada parada exibe documentários, sobre a pujança de São Paulo, por exemplo, e também pequenos filmes publicitários sobre o seu produto. No caminho, dá carona a várias pessoas, mas entra em cena Ranulpho (João Miguel), que passa a acompanhá-lo e ajudá-lo, por uma compensação monetária, já que seu objetivo é fugir daquela pobreza para o Rio de Janeiro. Companheiros de viagem, eles formam uma amizade que põe em relevo diferenças culturais, impasses históricos, aspirações díspares.

O filme é primorosamente bem fotografado, com luz "estourada" - que vista através do pára-brisas do carro passa a sensação de um calor infernal e interminável, transmitido junto com suas imagens áridas numa pequena tela de cinema. Não é um suposto "sertão real", mas é o sertão visto pelo olhar de quem conta a história. É um sertão imaginado, ou inventado, pela ficção e pela memória.

O diretor fala de preconceitos, invertendo o clichê, e criando um nordestino que fala mal, o tempo todo, de seus conterrâneos - numa interpretação superbacana e cheia de nuances de João Miguel - e colocando na telona um alemão - pacifista em tempo de guerra, que foge do conflito que atravessa o oceano e bate na orla nordestina (não, não é momento de se discutir a real origem das bombas que afundaram navios na nossa costa) incutindo dúvidas e medo no seu porvir.

Gomes optou por trafegar na contramão do cinema "de mercado", empobrecido pela televisão e empetecado pela publicidade, que se faz hoje no Brasil e no mundo. Em vez da redundância expositiva e da ênfase melodramática dos filmes que tratam o espectador como uma criança, Cinema, Aspirinas e Urubus investe no tempo, no "menos é mais", que deixa ao público espaço para pensar.

Nada, portanto, de locução em "off", nada de música induzindo o público a esta ou aquela emoção, nada de diálogos explicativos, nada de montagem que imponha uma visão única do objeto abordado. O filme é feito em grande medida de silêncios.

A essa economia narrativa corresponde um despojamento estético análogo. Não há nada de ornamental na fotografia (nenhum céu exuberante, nenhum cacto na contraluz do crepúsculo), o que não quer dizer que a apreensão da realidade seja ingenuamente "natural" ou documental.

Não é casual que o filme comece com a tela branca por excesso de luz e vá aos poucos alcançando a abertura e o foco justos para apresentar personagem e ambiente, com o mesmo processo sendo invertido no final. Há aí toda uma estética lacônica e poderosa.
Nada disso teria efeito se não fosse a competência dos dois atores principais, o brasileiro João Miguel e o alemão Peter Ketnath, e a perfeita alquimia entre os dois, feita de comunhão humana e tensão cultural.