Marcas da Violência
Nota: 8,5
Edie (Maria Bello) prepara uma bela surpresa para seu devotado marido, Tom Stall (Viggo Mortensen). Busca-o na lanchonete onde ele trabalha, deixa as crianças numa amiga... E veste no quarto do casal um uniforme curto e colante de líder-de-torcida de tirar a razão. Edie e Tom não foram namorados na adolescência, como é característico do interior dos Estados Unidos. Ela está agora realizando essa fantasia que lhes falta - e que não deixa de ser também a fantasia-padrão do estadunidense, transar com a cheerleader, de pompom e tudo.
O título original de Marcas da Violência, A History of Violence, já deixa implícito que não trata apenas de uma trama particular, de uma story, mas também da História com maiúscula, muito bem localizada geográfica e temporalmente nos grotões da "América". São os Estados Unidos dos xerifes que tomam café na sua casa, dos chapeiros que dizem bom dia, das filhinhas loirinhas que botam a mesa do jantar.
Essa imagem é um estereótipo que corresponde, em certa medida, à verdade daquele lugar. E é com estereótipos que David Cronenberg (Spider - Desafie Sua Mente) decide trabalhar - nesta adaptação da HQ escrita por John Wagner (Judge Dredd) e ilustrada por Vince Locke - para mostrar até que ponto o teatro que se monta ali é um teatro de aparências.
Além da lanchonete do solícito e inofensivo Tom, um dos elementos consagrados desse teatro é o colégio. Jack (Ashton Holmes), filho dos Stall, foi educado a nunca revidar. O problema é que os outros resolvem tudo no braço. Loser típico, nerd clássico, Jack se anima no campo de beisebol quando consegue pegar a rebatida do fodão da turma. No vestiário - outra situação-clichê - ele é prensado contra os armários pelo fodão-vilão e seus comparsas, todos cheios de frases de efeito.
Pode parecer que Cronenberg acredita de verdade nessa encenação - como se estivesse mesmo do lado de Jack, dos mocinhos, dos self-made men, dos puros, enfim, dos valores bons. Nada mais equivocado. Porque Marcas da Violência é um filme onde nem tudo é o que parece. De uma vidinha normal à uma vida desregrada. O diretor vai, sem perder a mão, da típica família americana, com seu mundo ilusório, falso, para a família norte-americana violenta, preconceituosa, mentirosa, que esconde mais do que revela.
O momento que quebra o faz-de-conta é o aparecimento do carro preto. Certa manhã estaciona em frente à lanchonete de Tom um carrão com vidros escuros, totalmente estranho àquele mundo de picapes, meio como uma nave espacial, de onde desce o misterioso Carl Fogarty (Ed Harris). Logo se percebe que é um tipo mafioso dos piores, vindo da cidade grande. Fogarty viu pela TV o que Tom fez, numa situação de perigo, com dois matadores que tentavam assaltar a lanchonete. Foi assim que o forasteiro localizou o Sr. Stall, o novo herói involuntário da cidadezinha - que não se chama Tom Stall e muito menos pode ser considerado um herói, é o que diz Fogarty, mostrando a cicatriz que atravessa de cima a baixo seu olho esquerdo cego.
Está posta a dúvida: Tom é quem diz que é? Esse se torna o epicentro dramático do filme, mas acima dele está a evidência de que o personagem interpretado com enorme talento por Mortensen vive enterrado em introspecção. Essa introspecção pode ou não ser um sentimento de culpa - e é somente fora do mundo de mentirinha, da família perfeita e da cidadezinha perfeita, que essa eventual culpa encontrará alguma redenção.
A escolha de Cronenberg para demarcar o novo "mundo real" não poderia ser mais palpável: sangue, fraturas expostas, agressões em close-up. Desde aquela rixa do colégio até o acerto de contas com o mafioso, todo conflito se resolverá com muito sangue, filmado sempre de modo muito veemente. Afinal, o Mal pode não ser bonito de se ver, mas de certo é mais honesto que o Bem.
Essa idéia das verdades sangradas também vale, no sentido figurado, para o (des)arranjo familiar. A certa altura, Edie e Tom transam novamente. Marcas da violência não seria o mesmo filme sem essa cena. Dá pra dizer que é a sua sequência mais importante, no que diz respeito às aparências do começo, em contraponto à verdade dura da segunda metade da história. Porque a fantasia com a líder de torcida não vai além disso: uma mera fantasia. A realidade - metáfora da vocação para a dominação e da tentação da violência que são a essência da sociedade dos EUA - é outra, Edie aprende depois, é esse sexo lutado e agredido e conquistado.
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