O Fim e o Princípio
Nota: 8,5
O documentarista Eduardo Coutinho (Cabra Marcado Para Morrer, Edifício Master, Peões) é notório por ser um ótimo entrevistador, daquele tipo que entra na casa de desconhecidos - normalmente assustados pelo caráter invasivo da câmera e do microfone - e arranca depoimentos, confissões até, como se fossem amigo íntimo da família. Coutinho não tem pudor de exibir equipamentos e equipe técnica em cena, nem de aparecer diante da câmera. Ao mesmo tempo em que evidencia as engrenagens da linguagem, é como se tivesse vaidade do dom de perguntar.
Esse talento é colocado à prova em O Fim e o Princípio (2005), filme no qual Coutinho escolhe, mais ou menos a esmo, um vilarejo do sertão da Paraíba para colher relatos. Ele não leva roteiro, nem temas, não fez muita pesquisa prévia. A idéia é estacionar num lugar que tenha hotel decente e trabalhar. Uma vez eleito o Sítio Araças, região em que 86 famílias conservam algum parentesco entre si, ele decide ouvir o que os idosos, faixa etária predominante, têm a dizer. O problema é que sertanejo, desconfiado, não gosta de falar de si mesmo.
Depois de meia-dúzia de tentativas falhas, um dos moradores esclarece: "O cabra que conta tudo o que sabe fica abestado". É possível que Coutinho nunca tenha suado tanto para tirar palavras de seus documentados. O saldo é truncado, muita gente fala para dentro, introspectivo, fica impossível entender o que dizem. Outros tantos comentam o dia-a-dia da lavoura, falam do tempo - coisa que não interessa ao cineasta, que viajou meio Brasil para ouvir experiências de vida.
Mas eis que O Fim e o Princípio, filme aberto aos acasos, começa a se construir conceitualmente em volta desse não-relato. Não chega a ser um anti-documentário. Coutinho realiza, isso sim, não só o exercício básico da reportagem como do próprio cinema: a observação. Pode soar uma obviedade, mas quantos documentários panfletários recentes não chegam diante do entrevistado com a pauta pronta, o discurso pronto, enfim, a opinião pronta? Observar, nestes casos, é impossível quando já existe o pré-julgamento (termo da moda, esse).
E sabe aquele ditado da imagem que vale mais do que mil palavras? Então, ele é verdadeiro. Não tem nada mais eloqüente do que o close no rosto de um senhor de noventa anos, onde não cabem mais rugas, pele castigada do sol a pino de uma existência inteira. O velho É o sertão. A resistência ao contato, ao diálogo, é o símbolo fidedigno da dureza da terra seca, de um espaço que não trava com o homem uma relação de retribuição, mas de combate.
Claro que, em quatro semanas de entrevistas, alguns baixam a guarda. Há o senhor letrado (e por isso tido como esnobe e desvairado pelos demais), desconfiado de Deus, proferindo lições para a câmera. Há casais reforçando juras de décadas de amor. Há o trabalhador orgulhoso criticando a preguiça alheia. E há o outro que questiona a realização do filme, pergunta se Coutinho crê em Deus. O fato do documentarista - que não se incomoda em aparecer na tela - ser pego de surpresa e transformado em documentado é a chave fundamental desse belo exercício de cinema. Ele não está acima dos sertanejos. Uma vez exposto, passa também a ser observado - e julgado por nós.
É a riqueza da vida como ela é, sem representações, dura e crua. Pessoas humildes, pobres, marcadas pela vida, podendo expor o que sentem, o que acham, da maneira como desejarem. Podemos perceber e sentir que ali estão pessoas autenticas, que não precisam vestir máscaras para transitar no meio social. São pessoas unidas pela desgraça da vida, pela injustiça, e se mostram muito mais solidários e amigos do que todos os outros que se encontram em camadas superiores da divisão social.
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