Manderlay
Nota: 8,5
Em 2003, com Dogville, o diretor dinamarquês Lars von Trier criou uma nova linguagem na maneira de fazer cinema. O filme foi ovacionado por boa parte da crítica. Na época, o polêmico diretor anunciou que aquele era o primeiro de uma trilogia que tinha como tema central a intolerância nos Estados Unidos e isso criou ainda mais expectativa.
A inventividade e o espanto ficaram para trás, é verdade, mas o impacto, mesmo menor que o anterior, é ainda cortante. O festival de Cannes deste ano foi o primeiro a conferir Manderlay (2005), capítulo central dessa trilogia. A história continua no exato momento em que termina o primeiro. Após deixarem para trás o vilarejo de Dogville, Grace e o pai acabam, por acaso, nos portões da fazenda de Manderlay, no sul dos Estados Unidos. Lá, Grace descobre uma estrutura escravagista em pleno funcionamento, numa época em que a escravidão já havia sido abolida. Ela se envolve então nas relações entre os empregados negros e seus patrões, apenas para descobrir que os laços entre as duas classes são bem mais complexos do que ela pensava.
Mais uma vez von Trier filmou num estúdio e utilizou os mesmos recursos que em Dogville: casas e outros cenários são apenas marcas no chão, deixando por conta da imaginação do espectador sua visualização. Ele também dividiu a trama em capítulos e manteve a narração sarcástica do ator John Hurt. Em suma, a estrutura dos dois filmes é idêntica.
A grande diferença ficou mesmo por conta dos protagonistas. A atriz Nicole Kidman não retornou à personagem. Bryce Dallas Howard (A Vila) assumiu o papel com muita competência. Mas não dá para competir com o carisma de Nicole. Bryce ainda precisa comer muito arroz com feijão - este é apenas seu segundo papel de destaque no cinema. James Caan, que fazia o papel do pai Grace, também foi substituído e passou o mafioso a Willem Dafoe.
Sem o elemento-surpresa do primeiro filme, von Trier precisava adicionar algum elemento novo e poderoso para equilibrar a balança. Restou ao cineasta apostar na história - e ele acertou em cheio. A trama é muito mais ousada e irônica. A intolerância da vez é o racismo. Mesmo aconselhada por seu pai a não se envolver com os problemas em Manderlay, Grace resolve levar justiça à cidade. Após a morte de M´am (Lauren Bacall, que fazia outra personagem em Dogville), a matriarca da cidade, Grace começa a reestruturá-la com a ajuda de alguns capangas deixados por seu pai. Ela liberta os negros e força os brancos preconceituosos a trabalharem ao lado deles.
Nesse momento, não há como desassociar essa democratização empreendida por Grace, com as atitudes do governo estadunidense em relação ao Iraque, entre outros atos de "democracia à força". Será que as pessoas podem ser forçadas a seguir esse modelo? Os libertados de Manderlay, por exemplo, não mostram qualquer tipo de iniciativa. Grace não desiste e, em seminários, começa a ensiná-los a agir democraticamente, utilizando os votos da maioria, deixando para trás as decisões arbitrárias. Contra todos os reveses, a cidade acaba tendo sucesso com o comando de Grace. E, depois da colheita do algodão, ela declara que os habitantes da cidade agora estão verdadeiramente “formados” americanos. Só por essa crítica pertinente, von Trier já merecia ser saudado, já que a construção dessa idéia é de extrema simplicidade e sutileza.
O raciocínio que desenvolve é cheio de ironia - como sempre que Von Trier trata dos EUA. Uma ironia que começa com sua afirmação de que nunca pôs os pés nos EUA. E que continua com esses estranhos escravos, que seguem sua nova líder como até há pouco seguiam cegamente sua senhora.
Grace é um apóstolo da liberdade, uma pura americana. Mas ela carrega algo bem dinamarquês, um protestantismo pouco propenso a aceitar as limitações e fraquezas humanas. Com isso, Manderlay, dando seqüência à saga de Dogville, explica ainda melhor o nome do primeiro filme da série, onde o dog, não vem de cachorros, mas do caráter dogmático da heroína, da postura absolutista que se impõe por trás de sua figura cada vez mais doce. E ela se chama Grace, designando a graça -aquela que por sua ação pode levar a salvação aos homens. Ainda não consegui descobrir se Lars Von Trier não suporta as fraquezas humanas ou se, mais condescendente, as observa com amarga ironia.
Se ao final o dinamarquês não repete a obra-prima que é Dogville, consegue tratar de tema mais reconhecível, apesar de não menos complexo. Resta saber o que vem a seguir... ele já anunciou que a última parte, Washington, só será produzida em 2007.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home