21 janeiro 2005

Machuca



Nota: 9,5

Em 1970, o Brasil já vivia a ditadura militar, que, chegou até mesmo a levar o atacante Dadá Maravilha para ser tricampeão do mundo no México. Enquanto isso, o Chile vivia uma época de grandes mudanças políticas e sociais, a começar pela escolha de um presidente mais preocupado com o povo. Salvador Allende era visto como um perigo não apenas pela burguesia dominante do país como também pelo principal inimigo do bloco vermelho, os Estados Unidos, que já viam em Cuba um problema grande suficiente para sua soberania capitalista nas Américas.

Nos três anos que se seguiram, Allende tentava diminuir os abismos sociais que separavam ricos de pobres. Na capital Santiago, um padre norte-americano que comandava uma escola de classe média-alta seguia pelo mesmo caminho, dando espaço para que jovens vindos da periferia tivessem o mesmo acesso à educação que os ricos. Um destes filhinhos de papai era o economista e hoje cineasta Andrés Wood, diretor de Machuca (2004), o maior sucesso do cinema chileno e escolhido pelo país para tentar uma vaga no próximo Oscar.

De forma semi-autobiográfica, Wood cria o Colégio Saint Patrick, dirigido por um Padre McEnroe (Ernesto Malbran), o narrador Gonzalo Infante (Matias Quer), Pedro Machuca (Ariel Mateluna), e ainda recria o Chile às vésperas do golpe de 11 de setembro de 1973, que derrubou o esquerdista Allende e instaurou o regime militar de quase duas décadas em que o general Augusto Pinochet comandou o país de forma ditatorial.

A chegada de Machuca e outros meninos ao colégio, vista por alguns jovens burgueses e seus pais como um absurdo comunista, mudou a vida de Gonzalo. A improvável amizade entre os dois é usada para levar o espectador a descobertas. Junto com Gonzalo, descobrimos o mundo das favelas em que vivia Machuca, um local com barracos de madeira, esgoto a céu aberto e miséria. Ao lado de Machuca, somos apresentados à exuberância dos bairros ricos, dos aparelhos de TV, dos tênis Adidas importados, dos gibis do Zorro. Junto com os dois meninos relembramos o primeiro porre, o primeiro beijo, as eternas amizades relâmpados da juventude.

Mas não devemos imaginar que a vida de um menino de 11 anos seja fácil. Gonzalo sofre com as saídas de sua mãe, que leva o garoto para os furtivos encontros vespertinos com um ricaço que vive na ponte-aérea Santiago/Buenos Aires e traz para eles produtos que estão em falta no Chile socialista de Allende. Machuca, por sua vez, além da discriminação que sofre na escola, tem de ajudar um tio/vizinho que passa as tardes vendendo cigarros e banderinhas nas passeatas, que abundavam o país naquele momento. Preocupado mais com o dinheiro do fim do dia do que com suas convicções políticas, eles gritavam bordões direitistas contra o governo Allende e também bradavam contra o imperialismo nas passeatas esquerdistas.

A escolha de contar a história pelos olhos de meninos inicialmente "virgens" politica e socialmente falando dá a Wood a liberdade de mostrar estes dois mundos sem preconceitos ou julgamentos. Como se percebe ao longo da fita, eles pouco podem fazer para mudar o país naquele momento, seus papéis são de espectadores. Até o momento em que se tornam vítimas ou, pior, estatística. Foram mortos durante a ditadura no Chile mais de 3 mil pessoas e outros 28 mil foram torturados entre chilenos e até mesmo estrangeiros.

A queda do governo Allende, como se pode ver, teve conseqüências no mínimo tão grandes quanto as quedas das duas torres gêmeas de Nova York, mas deste 11 de setembro os norte-americanos parecem não se recordar muito, afinal, as cicatrizes estão em outros corpos.

O Operário



Nota: 7

Em seu quinto longa, o diretor Brad Anderson continua explorando os limites da mente humana. Encontramos em O Operário (The Machinist, 2004) todos os temas favoritos de Polanski e Hitchcock, como culpa, repressão, fixação materna e paranóia. Sem dúvida um filme denso e que requer atenção.

O filme abre com a cena de um sujeito esquálido e todo arrebentado carregando uma pessoa morta enrolada num tapete. Em seguida, ele retrocede e nos mostra que o tal sujeito que puxava um cadáver é Trevor Reznik. A última vez que ele dormiu foi um ano atrás e desde então o cansaço vem destruindo progressivamente sua saúde física e mental. Ele trabalha numa fábrica, operando maquinário pesado, faz de tudo para manter seu emprego e, envergonhado por causa de seu problema, isola-se cada vez mais, tornando-se também paranóico. Depois de se envolver num acidente em que um homem perde um braço, Trevor começa a crer que seus colegas de trabalho estão conspirando para demiti-lo. Ele precisará lutar não apenas para se sustentar no cargo, mas também para manter a sanidade.

Brad Anderson não conseguiria fazer esse filme sem a presença de Christian Bale (Psicopata Americano). Um ator da mesma escola de Sean Penn e Johnny Depp, do tipo que, quando abraça um projeto, identifica-se visceralmente com seu personagem. Bale simplesmente emagreceu um terço de seu peso para o papel. Sua figura na tela causa nervoso ao público. Para se ter uma idéia, ele parece um daqueles pobres famintos da Etiópia. Alguns podem pensar que foi um exagero sua atitude. Não foi. Para que o final do filme tivesse a credibilidade que tem, essa autodegradação era mesmo necessária.

Sua performance não se resume só ao físico. Suas expressões faciais e movimentos estão de tirar o fôlego. Bale é um ator completo, que não se importa em manter uma aura de estrela. Se precisar beijar outro homem na boca, cometer atrocidades ou simplesmente ser o bom rapaz, ele fará. Tudo em nome do projeto. Não é à toa que foi escalado para desenterrar o Homem Morcego em Batman Begins. Uma ótima escolha, devido às nuances múltiplas do milionário Bruce Wayne e do Cavaleiro das Trevas. Jennifer Jason Leigh (Em carne viva) também é uma grata surpresa no filme.

Tendo um Bale inspiradíssimo ao seu lado, Anderson tratou de construir sua obra dando um tom cinza azulado à película. Uma escolha acertada, devido ao ritmo sufocante do enredo. O filme acaba ganhando um mix que fica entre o clima noir e os ares industrial e gótico da série Além da Imaginação. A única cor viva do filme é a do carro de Ivan, vermelho. Explicar o porquê entregaria a história. A trilha sonora de Roque Banos é abertamente uma homenagem a Bernard Herrmann, compositor favorito de Hitchcock. Para aumentar o clima, ele até adicionou um órgão tipicamente usado nas produções inglesas da Hammer Films.

Mesmo influenciado pelo Clube da Luta, Amnésia e Insônia, Brad Anderson realiza um filme único. O espectador fica tentando descobrir o que está acontecendo, e conforme vai juntando as peças, entende o porquê da magreza e da expressão cadavérica do protagonista.

Meu Tio Matou um Cara



Nota: 4

O diretor Jorge Furtado continua firme no seu projeto de fazer cinema jovem, indo na contramão de seus curtas políticos da década de 80 e 90. Todos achavam que com Furtado no cinema sairíamos daquela mesmice nacional, e não foi o que ocorreu. O diretor enveredou em filmes para adolescentes, que destoam sim dos enlatados norte-americanos e dos infantilóides brasileiros, mas está muito aquém duma crítica a esse período. Foi assim em seu longa de estréia Era uma Vez Dois Verões, continuou na mesma linha em O Homem que Copiava - visto por quase 700.000 espectadores. Neste terceiro longa, Meu Tio Matou um Cara, Furtado associa-se a Guel Arraes no roteiro e a receita mantém o pique. Furtado mostra jovens brincalhões, espertos, felizes, uma certa classe média urbana. Não vejo crítica alguma social, apenas um constatação de um parte minoritária da sociedade. O diretor é queridinho da crítica nacional, mas se não faz um cinema alienante, não faz um cinema tão crítico como dizem por aí. Eu diria que é um filme bonitinho, com atuações pouco convincentes.

Desde o título, a história brinca com a tentativa aflita dos adultos para manter as aparências diante de uma situação-limite, compensada pela ironia e a clareza com que os adolescentes percebem e analisam tudo, não raro melhor do que os pais. Parte-se de uma família de classe média balançada por um crime. O tio que matou o cara é Éder (Lázaro Ramos), aquele típico indivíduo que nunca deu muito certo em atividade nenhuma e toda hora se apaixona pela pessoa errada. Desta vez, foi Soraia (Débora Secco), escultural mulher casada, de quem Éder mata o marido num confronto muito mal-contado.

Para o irmão mais velho de Éder, Laerte (Ailton Graça) e sua mulher, Cléa (Dira Paes), é o fim do mundo. Para o filho do casal, Duca (Darlan Cunha), abre-se oportunidades para muitas descobertas. Parte de uma geração alimentada desde o berço por gibis, seriados de tevê e internet, Duca é capaz de conselhos preciosos sobre como Éder e seus pais devem lidar com o problema.

A notícia inesperada coloca Duca em evidência em sua escola - e não de maneira negativa. Nestes tempos em que a notoriedade é um valor em si, ter um tio nos noticiários é motivo de prestígio, independentemente do motivo. Sem contar que as pontas soltas no depoimento do tio estimulam Duca e seus melhores amigos, Isa (Sophia Reis) e Kid (Renan Gioelli), a brincar de detetives.

O trio de amigos vive também a ambigüidade de um triângulo amoroso não-declarado, às voltas com o despertar da sexualidade. Tal como acontecia em Era uma Vez Dois Verões, Furtado revela os sentimentos divididos dessa idade com uma sinceridade bonita, mas fugaz. Os atores tentam, mas não convencem. E isso soa forçado, em muitos momentos.

A questão racial, mais uma vez ventilada, como em O Homem que Copiava, é abordada de forma impecável, já que normaliza a presença de negros na classe média e a convivência entre todas as cores do arco-íris nacional sem chamar a atenção para isso nem fazer discurso.

Casa dos Bebês



Nota: 6

A gravidez é uma dádiva, mas pode ser também uma maldição. Este é um dos temas utilizados pelo diretor, roteirista e montador John Sayles em seu novo filme, Casa dos bebês (Casa de los babys, 2003). A história se passa em um país não definido da América Latina e mostra o drama de seis mulheres estrangeiras que chegam do rico Estados Unidos com uma missão simples: voltar para casa com um nenê nos braços.

Cada uma com seus problemas passados e atuais, as seis esperam a burocracia local legalizar seus pedidos de adoção morando no mesmo hotel. Comandado pela señora Muñoz (Rita Moreno), o lugar é conhecido pelos nativos como "Casa de los babys", assim, com erro mesmo, afinal estamos falando de um povo sem cultura e pobre, que acorda antes do sol nascer para descer o morro e ir trabalhar para os burgueses. Uma destas proletárias é Asunción (Vanessa Martinez), que trabalha na Casa como arrumadeira dos quartos, e faz de tudo para cuidar de seus irmãos mais novos.

Num lugar com tantas desigualdades sociais, é possível ver meninos de rua que passam o dia arquitetando pequenos golpes e cheirando spray, e uma mãe que planeja levar sua filha adolescente, grávida, para Miami e assim não correr o risco de ficar mal falada.

Sayles foi audacioso ao criar um país cujo principal produto exportador são justamente os bebês, afinal, se esta (ainda) não é a principal fonte de renda de nenhum país do terceiro mundo, é impossível negar que este tráfico existe. Outro ato de coragem do cineasta foi reunir um elenco grande, estrelado e criar uma história sem protagonistas. O que une os personagens não é esta ou aquela pessoa, mas sim o tema central: ser mãe. Ou seria o capitalismo?

A verdade é que ao não se aprofundar em nenhum dos personagens, ao não contar uma história com finais conclusivos, Sayles dá a chance do espectador sair da sua confortável posição passiva e pensar. O que acontecerá com aquele homem que, desempregado, sonha em se mudar para a Filadélfia, um lugar que ele chama de "o berço da liberdade"? É interessante imaginar também o que vai acontecer quando Jennifer (Maggie Gyllenhaal), cujo casamento está por um fio, conseguir seu filho. Ou então como serão as vidas da ex-alcóolatra Gayle (Mary Steenburgen) e da solteirona independente Leslie (Lili Taylor). Será que Skipper (Daryl Hannah) vai ser a mãe perfeita que ela tanto sonha, ou sua paranóia com a ginástica vai atrapalhar esta nova fase? E como a malvada e já cheia de problemas Nan (Marcia Gay Harden - ótima) vai dar amor ao seu bebê se ela própria parece não saber o significado deste sentimento? Os sonhos e dúvidas expostos no "diálogo" que a irlandesa Eileen (Susan Lynch) tem com Asunción são a síntese de tudo o que se sonha sobre ser mãe (ou pai) e do que se espera para seu filho(a).

Mesmo contando com atrizes de certo renome em Hollywood, o filme é considerado independente, pois seu orçamento ficou em torno de 1 milhão de dólares e sua exibição foi praticamente restrita a festivais e circuitos alternativos. E é justamente esta independência que o torna interessante. Nestes dias em que projetos pejorativos sobre países de terceiro mundo, como Chamas da Vingança, teimam em aparecer nos cinemas, chega a ser um enorme alívio ver fitas que tratam a realidade com um olhar livre de clichês. Faz bem para a alma ver que há, sim, inteligência no cinema norte-americano, que há, sim, vida inteligente nos Estados Unidos. Não acredita? Então entre no site www.sorryeverybody.com e veja com seus próprios olhos.

Alexandre



Nota: 5

Alexandre III da Macedônia, dito “Magno” ou “o Grande”, é uma das figuras mais impressionantes da História.

Em sua curta vida (faleceu na tenra idade de 33 anos), ele venceu inúmeras batalhas, criando um império que se extendia da Grécia à Índia, e, no processo, espalhou a cultura grega pelo mundo, tornando-se então um dos principais arquitetos da civilização ocidental. Sua vida é repleta de feitos incríveis (mesmo a mais burocrática biografia de Alexandre Magno é mais empolgante e movimentada que muitos romances de aventura) e foi objeto de estudo de muitos dos maiores escritores da antiguidade (e diversos escritores modernos), que analisaram a fundo seu polêmico comportamento, que podia variar entre o sábio e o brutal, entre a mais pura racionalidade e a emoção incontida, mas que mantinha sempre uma constante: Sua coragem em batalha e a sede de descoberta e conquista.

Com tudo isso, Alexandre deveria ser uma escolha óbvia para protagonizar épicos do cinema, certo? Errado! Fora uma falha e esquecida superprodução dos anos 50, a atribulada vida do grande conquistador nunca rendeu um filme! Levando em conta quantos longas já foram feitas em torno de outros grandes nomes da antiguidade (como Júlio César ou Átila, o Huno), isso é absolutamente incompreensível! Agora o polêmico diretor Oliver Stone decidiu aceitar o desafio de levar a vida do conquistador helênico às telas, mas será que a produção está à altura da grandeza do protagonista?

A resposta é não. Mas por quê? Bem, para justificar isso é preciso explicar como o filme conta a história do soberano.

A produção começa com um envelhecido Ptolomeu (Anthony Hopkins, burocrático) ditando a história de seu antigo amigo e regente para seus escribas (Ptolomeu realmente escreveu uma biografia de Alexandre, que se perdeu no incêndio da biblioteca de Alexandria). É através de suas reminiscências que nós acompanhamos a vida do conquistador desde sua infância, marcada pelas desavenças entre seu pai - o soberano da Macedônia Filipe (Val Kilmer) -, e sua mãe - a manipuladora sacerdotisa Olímpia (Angelina Jolie, em papel que deveria ser de uma atriz bem mais velha...) -, até sua morte, como senhor do mundo conhecido. Esse sendo outro detalhe colocado em cena, devido a cabeça mirabolante do diretor.

Com tanto terreno a percorrer, é óbvio que Stone precisa deixar alguns detalhes de lado e, no processo, ele omite toda a vida de Alexandre entre sua adolescência e a batalha de Gaugamela (o auge de sua carreira de general, quando ele vence definitivamente o imperador persa Dario)! Isso é equivalente a fazer uma biografia do presidente Lula que passe direto de sua adolescência até sua posse como presidente da república! Muita coisa importante fica de fora (a fundação de Alexandria, o primeiro embate com Dario, a famosíssima história do Nó Górdio) e, embora o filme arrisque um flashback próximo ao final para mostrar alguns detalhes essenciais, a essa altura todos os espectadores que não têm um conhecimento razoável de história já perderam o fio da meada. Um erro imperdoável e incompreensível.

Mas a falha mais séria está no ator escolhido para viver Alexandre. Colin Farell simplesmente não consegue convencer ninguém como grande consquistador. Tudo bem que o roteiro não ajuda, afinal, mostra um Alexandre incompreensivelmente fraco e inseguro (o homem que arrastou um exército por meio mundo, comandou seus homens com pulso de ferro e lutou na linha de frente em todas as suas inúmeras batalhas, fraco? Sei...), mas Farell piora a situação com uma total falta do carisma necessário ao papel e uma atuação nada grandiosa.

Para agravar ainda mais a situação, Stone não perdeu a oportunidade de inserir suas manias particulares na produção. No “universo Stone” tanto Filipe quanto Alexandre foram mortos por complexas conspirações e a batalha dos macedônicos contra as forças indianas e seus elefantes de guerra foi travada em uma improvável floresta tropical no melhor estilo vietnamita (literalmente! A cena foi gravada na Tailândia!). Isso é, no mínimo, dispersivo e um sinal claro de que este talvez não fosse o filme mais indicado para Stone fazer.

Por fim, deve ser mencionado o elemento mais polêmico do filme. Antes de mais nada, é preciso lembrar que a maioria dos historiadores considera, tendo como base uma boa gama de evidências, que Alexandre era bissexual e que o grande amor de sua vida foi provavelmente seu companheiro de armas Hefastion (Jared Leto). Na produção, o personagem aparece exatamente nessa condição, o que faz do filme talvez o primeiro grande blockbuster com um protagonista que tem um relacionamento abertamente homossexual! Porém, essa ousada e louvável inovação acaba criando outro dos grandes defeitos da fita, já que Alexandre é mostrado quase que exclusivamente como um homossexual, sem que seja levado em conta seu também considerável apetite sexual pelo sexo oposto. Historicamente, o conquistador viveu uma grande paixão pela sua primeira esposa, a bela Roxane (Rosario Dawson), e se casou por interesse político outras duas vezes (fato que é mencionado muito rapidamente no filme e só serve para confundir ainda mais o público). Ironicamente, é com Roxane que ocorre a única cena de nudez e sexo do filme, provando que Stone, apesar da ousadia, ainda sabe muito bem para que público se destina o seu filme...

Ainda assim o filme tem qualidades. Apesar da interpretação um tanto errônea dos fatos (que resultou no Alexandre bundão que aparece choramingando nas telas entre seus companheiros), Stone mostra uma fidelidade insuspeita à história registrada, algo incomum e louvável nestes tempos de Gladiadores e Tróias! Ele também não poupa nos cenários grandiosos, figurinos impecáveis e, principalmente, na reconstituição da batalha de Gaugamela, que resulta numa das melhores adaptações que o cinema já fez de uma batalha real da antiguidade, humilhando os anêmicos combates de Tróia. Além disso, existe o mérito extra da batalha ter sido realizada majoritariamente com legiões de atores ao invés de figuras de computador! Um feito nada desprezível que ajuda a equilibrar a grande quantidade de problemas do filme.

O problema é que ao final de seu longo tempo de projeção (quase três horas) a fita deixa a sensação de ter sido ao mesmo tempo cansativa e insuficiente. Tendo um das figuras mais “filmáveis” da História nas mãos, Stone preferiu se perder em digressões sobre sua vida pessoal e suas inseguranças, em vez de mostrar sua interessantíssima carreira. Pior: Ao tentar julgar uma figura do passado distante com os olhos do presente ele criou um Alexandre asséptico e politicamente correto (!), bem diferente do passional, obsessivo e, por vezes, brutal conquistador dos livros de História. Muito próximo dos "conquistadores" modernos, Stone se perdeu numa norte-americanização do herói macedônico. Em vários momentos do filme nos questionamos se esse imperialismo, querendo levar a "liberdade" aos "bárbaros", não tem mais um quê de Bush, do que de Alexandre. Ao seguir na contramão de Hollywood (que costuma romancear mais a vida algo monótona da maioria das figuras históricas que aparecem em suas produções), Stone fez um filme que não está à altura da grandeza da personagem que decidiu retratar.

12 janeiro 2005

O Grito



Nota: 7

O cinema asiático tem demonstrado sua competência para fazer filmes de terror com criatividade. Ringu(1998), de Hideo Nakata, é um dos exemplos mais categóricos disso. A história de Sadako, a menina que volta para matar as pessoas que viram as imagens de sua fita, foi tão aterradora que ganhou uma refilmagem nos Estados Unidos em 2002. O problema é que O Chamado (02) não se comparava à sua versão nipônica, já que, além de copiarem mal, erraram em grande parte da história. Resultado: não se falou mais de suas sequências.

O Grito lembra - e muito - o seu compatriota. Ambas trabalham com a idéia de "Ju-on". O termo oriental corresponde à uma maldição gerada pelo rancor que alguém sente quando morre em estado de fúria. Essa maldição se concentra nos lugares em que a pessoa viveu e faz sofrer todos aqueles que, mesmo sem querer, se depararam com ela.

Potencial não falta para criar uma atmosfera rica em suspense, sem apelar para os sustos forçados que desencorajam espectadores mais exigentes. É original, bem feito, e mantém a todos em estado de completa tensão, capacidade que Hollywood perdeu nas últimas décadas.

Em O Grito, tudo começa com o aparente suicídio de Peter (Bill Pullman), que cai da varanda de seu apartamento numa cidade japonesa. Logo depois, vêem-se breves cenas que parecem ser de um múltiplo assassinato. Anos mais tarde, uma jovem assistente social vai à casa onde aparentemente ocorreram os crimes para ajudar a uma idosa enferma, mas acaba se deparando com uma sinistra presença que colocará em perigo sua vida e a de todos que a rodeiam.

De fato, O Grito é um filme que não está muito interessado em dar muitas explicação, mas sim, aterrorizar. A narrativa não linear segue paralelamente a vários personagens, examinando os contatos que eles têm com a maldição e suas conseqüências. Só se entende realmente o que aconteceu na casa e a complexa rede de conexões entre as vítimas no fim, quando as peças que faltam se encaixam.

O truque de fragmentar a narrativa se emprega em certas ocasiões para dar maior peso emocional a histórias simples (tal como em 21 Gramas). E, no caso de O Grito, funciona muito bem, já que o pausado desenvolvimento contribui para o clima de mistério da trama e potencializar o terror da trama.

Mesmo assim, seria um erro dizer que se encontram no filme muitas novidades. Os clichês do gênero estão todos ali, como a criança maligna, a espectral mulher com cabelos longos e pretos, as aparições fantasmagóricas, ou seja, muito do que já foi visto em Ringu. A preferência comercial por um elenco americano não ajuda, especialmente porque a escolha recai sobre Sarah Michelle Gellar (a Buffy do seriado televisivo), já que a moça não tem muito carisma para levar o filme.

Na hora de dirigir o remake ocidental, O Grito (The Grudge, 2004), Shimizu tem à mão uma série de vantagens técnicas. Efeitos visuais aperfeiçoados tornam sustos mais eficientes, como aconteceu com O Chamado. Permanecem iguais a narrativa não-linear, o largo alcance do espírito rancoroso. Muitos planos são inclusive idênticos aos originais. Mas o diretor se depara com um paradoxo: precisa dar espaço e valorizar a estrela Sarah Michelle Gellar numa história que, como vimos, tem força por não consagrar personagem algum.

A eterna Buffy vive Karen, assistente social escalada para cuidar de uma senhora idosa na tal casa misteriosa, onde barulhos e cantos escuros escondem um passado escabroso. Sabemos pouco de Karen. Ela gosta muito do seu namorado e ruma ao serviço com a disposição de quem acabou de chegar ao Japão e torce para que tudo dê certo. O problema é que o desenho do seu perfil pára por aí, já que outros tantos personagens ocuparão a tela com papel semelhante. Até o fim do longa caberá a Sarah gritar, correr, tremer, e só.

Convocado a dar maior relevância a essa heróina de última hora, a essa vítima de luxo, Shimizu não consegue “instalar a situação dentro dela” – não consegue fugir da armadilha do filme-mosaico que ele mesmo criou. E assistir a uma Sarah desnorteada, mal aproveitada e mal dirigida, não compromete a experiência, mas deteriora boa parte do potencial de O Grito.

11 janeiro 2005

Blade Trinity



Nota: 2

De tantos males que acometem Hollywood, um especialmente marca as continuações: a síndrome do "next level". Toda sequência de sucesso deve ser maior, mais endinheirada, mais ambiciosa que o original. Repare como os envolvidos pontuam entrevistas dizendo que tal filme leva tal gênero ao famigerado "próximo patamar". No caso de Blade: Trinity (2004), David Goyer - roteirista dos dois primeiros longas da franquia e agora promovido também a diretor - já considera, na narração que abre a sessão, o legado de Blade maior que o próprio mito de Drácula.

Este ano de 2004 definitivamente não foi um bom para o Conde. Primeiro Stephen Sommers o destruiu em Van Helsing ao fazer do ícone um afetado amestrador de Shakiras histéricas. Agora Goyer o transforma num ser meio Enrique Iglesias meio Clóvis Bornay - Érico Borgo foi feliz na antevisão - para rivalizar com o caça-vampiros vivido por Wesley Snipes. Este, por sua vez, se vê obrigado a agrupar-se com uma força especial de humanos, os Nightstalkers, nessa nova fase que mistura ainda grandes corporações, exércitos de agentes federais e a disseminação de um vírus capaz de atingir o planeta inteiro.

Percebe que proporção tomou aquele argumento adaptado em 1998 de uma obscura HQ da Marvel? O Blade de Stephen Norrington, que deu início à atual onda de super-heróis nos cinemas, se saiu bem justamente por sua despretensão. Em 2002 a marca cresceu, mas o diretor Guillermo del Toro soube segurar as rédeas da produção com uma trama bem elaborada - a melhor dentre as três. Agora as barragens romperam em honra do "next level": a histeria, a caricatura, a queda do personagem em seus próprios clichês e a descarada elaboração dos Nightstalkers visando uma franquia paralela falam bem mais alto.

Contribui para a implosão de Blade: Trinity a mão pesada de Goyer. Como roteirista, os seus chavões eram amenizados pelo trabalho dos estetas Norrington e Del Toro. No comando da coisa, ele deixa descambar para o trash um produto que já vivia na corda bamba entre o cool e o ridículo. Tem até poodle vampiro no meio. Quem gosta de lixo não tem do que reclamar. Em certa cena uma menina pergunta a Blade por que ele não pode ser uma pessoa mais legal. Sobe a música, a câmera faz a volta e fecha em close no rosto de Snipes, que diz: "porque o mundo não é legal".

E pensar que esse sujeito responde pelo roteiro do novo Batman...

A Lenda do Tesouro Perdido



Nota: 5

Nossas distribuidoras continuam insistindo na tática de não exibir certos filmes para a imprensa especializada e assim tentar poupá-los de duras (e justas) críticas. O mais novo escolhido para essa manobra foi A lenda do tesouro perdido (National Treasure, 2004), da Buena Vista International, empresa da Disney. O mais patético é que dizem que a produção ficou por duas semanas na liderança do ranking norte-americano dos filmes mais assistidos. Tanto alarde e mesmo assim não exibiram o filme...

Talvez tamanha preocupação seja porque o roteiro parece o samba do crioulo doido. É uma mistura de Indiana Jones com o popular Código da Vinci. São tantos absurdos que fica difícil levar a sério o que se passa na tela. Logo no inicio, John Adams Gates (Christopher Plummer) revela a história do lendário tesouro perdido para seu neto, Benjamin Franklin Gates, ainda criança. A família Gates vem procurando esse tesouro desde o século 19. Ele foi escondido pelos fundadores dos Estados Unidos numa câmara subterrânea durante a guerra pela independência contra a Inglaterra. Já adulto, Ben (Nicolas Cage) tornou-se um arqueólogo aventureiro e acaba decifrando a última pista. Ele descobre que a tal Charlotte que tantos procuraram é um barco que congelou na costa do Pólo. A explicação para o congelamento do barco é tão ridícula que nos lembra as teorias de O Dia depois de Amanhã (2004).

Conforme a trama prossegue, começamos a desconfiar que George Washington, Benjamin Franklin, John Hancock provavelmente não tiveram muito trabalho em vencer a guerra contra os ingleses, pois a cada momento surge uma nova pista que leva a outra, mostrando que, durante as batalhas, os fundadores da América tiveram bastante tempo para elaborar o complexo caminho que leva ao tesouro. Durante sua busca, Ben acaba sendo traído por Ian (Sean Bean), patrocinador da empreitada. Isso ocorre quando Ben descobre que a próxima pista está atrás da declaração de independência. Sabendo que Ian irá roubar o documento, Ben resolve roubá-la antes.

A trama é tão inverossímil que chega a causar gargalhadas e os roteiristas ainda conseguiram criar uma origem ainda mais estapafúrdia para o tal tesouro. Segundo contam em sua história, os Cavaleiros Templários conseguiram acumular esse tesouro incalculável durante as Cruzadas. É interessante notar que para os roteiristas acúmulo é o sinônimo de pilhagem, já que nas Cruzadas, os Templários massacravam e roubavam em nome de Deus. A fim de esconder o tesouro dos ingleses, os maçons, descendentes dos Templários, resolveram enviá-lo para o Novo Mundo. Realmente os Templários tinham esse tesouro que sumiu misteriosamente no século XIV. Mas daí a dizer que ele está escondido nos Estados Unidos, nem Julio Verne conseguiria explicar.

Se o roteiro é uma desculpa mal dada para várias cenas de ação, o elenco também não faz muito esforço. Nicolas Cage repete todos os seus típicos cacoetes, não encontrando o tom do personagem. Diane Kruger, que interpreta Dra. Abigail Chase, esta lá apenas para representar o sexo feminino. John Voight deve gostar de interpretar pais de arqueólogos aventureiros, já que antes deste filme foi o pai de Lara Croft em Tomb Raider. Já Harvey Keitel parece ter aceitado interpretar o agente do FBI responsável em recuperar a declaração da independência, só pelo salário. Mas a pior atuação é de Sean Bean. Nesse tipo de filme, o vilão normalmente costuma roubar as cenas do herói. Bean, porém, demonstra que não tem o carisma necessário para interpretar o bandido.

A trilha sonora de Trevor Rabin, ex-guitarrista do Yes, incomoda mais do que empolga. Ele precisa ter umas aulas com John Williams. Definitivamente, o produtor Jerry Bruckheimer errou a mão em todos os campos dessa vez. Depois de 2 horas de projeção só conseguimos chegar à conclusão de que a Disney abraçou o projeto pensando muito mais em uma nova atração para seu parque temático do que em realizar um bom filme de aventura.

07 janeiro 2005

Papai Noel às Avessas



Nota: 6,5

Entra ano, sai ano e as táticas dos executivos de Hollywood continuam as mesmas, sempre em busca de alguma fórmula que garanta milhões e milhões de dólares em lucros. Além de reeditar os filmes (e eventualmente mudá-los completamente, como em Exorcista - o início), eles escolhem quando e quais produções devem chegar aos cinemas e as que serão lançadas direto no mercado de vídeo. Mas não pense que essas manobras são exclusividade do mercado norte-americano. Aqui no Brasil também existem dessas “mentes brilhantes”. E, como sempre, o maior prejudicado é o público, que acaba tornando-se refém dessa engrenagem. Um exemplo dessa (falta de?) estratégia é Papai Noel às avessas (Bad Santa, 2003), de Terry Zwigoff. O filme foi lançado mundialmente no Natal de 2003, mas só agora chega ao Brasil.

O motivo desse atraso é a mensagem politicamente incorreta da produção. A história de um Papai Noel assaltante, que de tanto encher a cara acaba urinando nas próprias calças, não agradava as distribuidoras nacionais, que procuravam um entretenimento mais leve para o período das festas de fim de ano. Ainda existe por aqui a máxima de que filme de Natal, por mais inescrupuloso que seja, precisa passar uma mensagem edificante. Assim, o filme não foi lançado ano passado e quase chegou agora direto nas prateleiras das locadoras.

Felizmente, devido à escassez de filmes de Natal esse ano (ou uma iluminação divina), a produção finalmente chega aos nossos cinemas. E trata-se, sem dúvida alguma, do melhor filme sobre o tema em anos, uma comédia de humor negro que esculhamba com toda a tradição natalina. Papai Noel às avessas conta a história de dois trapaceiros que visitam as grandes lojas de departamento do país vestidos como Papai Noel e um de seus duendes ajudantes. Em vez de espalhar alegria, eles usam seu disfarce para driblar o sistema de segurança e roubar as lojas onde trabalham, uma estratégia que se torna complicada quando eles encontram um garoto de oito anos. Não tem como aprofundar mais sem entregar a trama e as críticas embutidas no roteiro. Até no presente (elefante cor de rosa) pedido pelo garoto ao Papai Noel existe uma clara alusão freudiana de identificação. O filme não tenta conquistar o espectador com tombos ou peripécias. Seu trunfo reside nos diálogos hilariantes e sarcásticos dos personagens.

Billy Bob Thornton, como o Papai Noel devasso, interpreta mais um dos grandes papéis de sua vida. Sua fisionomia e trejeitos são excelentes. Um personagem perfeito para o ator destilar toda a sua ironia. Na edição especial do DVD importado, ele comenta que adorou o projeto, pois já estava de saco cheio da idiotice instalada durante o governo Bush. Para ele, o Natal virou um grande negócio e os filmes normais retratam essa realidade.

Assim como o ex-Sr. Angelina Jolie, todo o elenco está afinadíssimo. Tony Cox faz o anão que se veste de duende para ajudar o Papai Noel nos roubos. Com sua língua rápida e ácida, ele dispara ótimas tiradas. Pena que nas legendas, os palavrões cascudos e expressões preconceituosas foram trocados por palavras mais amenas. Estreando no cinema, Brett Kelly foi a escolha perfeita para o papel do garoto patético. Cloris Leachman, veterana de comédias de Mel Brooks e Gene Wilder, interpreta a avó senil do garoto numa participação não creditada e John Ritter, em seu último papel para o cinema, faz o gerente caretão do shopping, Bob Chipeska. Para completar, Bernie Mac vive o chefe da segurança e Lauren Graham, a tarada por homens que se vestem de Papai Noel. É interessante notar que todos os personagens do filme são escroques ou, no mínimo, muito bizarros.

Na trilha sonora estão todos os clássicos utilizados em filmes de Natal. Isso é mais um ironia proposital do diretor Terry Zwigoff, do ainda inédito por aqui Mundo Cão (Ghost World, 2001). O roteiro de Glenn Ficarra e John Requa ganhou um brilho especial nas mãos de Zwigoff e dos famigerados Joel e Ethan Coen, que assinam a produção executiva e são os responsáveis por certas seqüências de cair o queixo.

Talvez num primeiro momento você possa ficar apreensivo com tanta loucura, mas conforme o tempo passa é impossível ficar alheio ao filme. Inclusive não se sinta horrorizado se alguns dias após a sessão, você ainda estiver rindo das situações.

06 janeiro 2005

Doze Homens e Outro Segredo



Nota: 4

Doze... é o novo Onze... e, como na maioria das continuações de sucessos hollywoodianos, a regra é multiplicar. Não apenas um outro segredo, mas também o dobro de complicações amorosas, o dobro de golpes insólitos, o dobro de comida ingerida por Brad Pitt, reviravoltas e piadinhas internas elevadas à enésima potência. Se você prezava no filme de 2001 o fiapo de concisão, esqueça. O que conta aqui é a megalomania.

A começar pelo primeiro roubo que Danny Ocean (George Clooney) e os seus onze comparsas planejam na Europa para compensar a grana que pegaram dos cassinos de Terry Benedict (Andy Garcia) e agora terão que devolver. O alvo é uma mansão em Amsterdã. Sabe aquela piada dos astronautas norte-americanos que gastaram milhões para inventar uma caneta que escrevesse de cabeça para baixo, enquanto os russo usaram lápis? Pois os onze de Ocean pensam como os engenheiros da NASA: por que rebaixar uma simples mureta quando se pode erguer um prédio inteiro pelos canais submersos da metrópole holandesa?

E olha que isso é só o começo... Um talentoso larápio rival (interpretado por Vincent Cassel) e uma bela inspetora (Catherine Zeta-Jones) ainda se colocarão no caminho. Exageros e verossimilhanças à parte, o diretor Steven Soderbergh (Traffic) sabe que o público só se preocupa em ver os seus astros preferidos em ação. Já era assim quando o Rat Pack de Frank Sinatra fez o Onze... de 1960 apenas para se exibir e se divertir. Pouco importa se a trama da refilmagem de 2001 é melhor que a atual. Vale mesmo é ver que Catherine e Cassel adicionam charme a um elenco cuja fotogenia já era um tanto anabolizada.

Não à toa, Clooney se mostra preocupado com a meia-idade que chega. Matt Damon exige, metáfora de sua condição na própria indústria do cinema, um papel de protagonista na gangue. Até Bruce Willis, marca em baixa nas bilheterias, aparece para tirar um naco da brincadeira... Colocar os nomes do star system (sistema de trabalho hollywoodiano criado na década de 1920 para criar e valorizar estrelas) para fazer um papel próximo de si mesmos é o artifício mais manjado, nestes tempos de paparazzi e invasão de privacidade, na hora de seduzir o público.

O fato de uma Julia Roberts cínica adicionar hipocrisia à receita, tipo cuspir no prato em que come, não estraga o êxito dessa artimanha reality show. Desde meados dos anos 30, quando criou o conceito de box office, caixa postal que aproximava os astros dos fãs, Hollywood sabe se aproveitar dessa sede pela vida particular dos seus ícones. Não seria diferente nos dias atuais em que os filmes de arte de Soderbergh naufragam junto à audiência e poucas coisas parecem render tanto dinheiro quanto o mercado de celebridades.

Código 46



Nota: 6,5

A equipe do badalado A festa nunca termina (24 hour party people) surpreende com sua nova produção. Código 46 (Code 46) é um excelente filme de ficção científica como há muito não se via. Sem naves espaciais, raios laser ou heróis marombados para servir de decoração na tela, a produção vai direto na temática central do gênero: como as mudanças na tecnologia e na sociedade do futuro afetam os seres humanos que a habitam.

O roteiro do filme é complexo: em um futuro não muito distante a humanidade é governada por uma entidade Orwelliana (a Esfinge), a sociedade se divide entre os privilegiados habitantes das cidades e a ralé que mora nas regiões áridas fora dos perímetros urbanos. Para entrar em uma cidade ou viajar de uma para outra, as pessoas precisam de passes especiais, emitidos apenas pela Esfinge, que exerce um controle rigoroso sobre a emissão. Um vazamento de passes está acontecendo na cidade de Shangai e William (Tim Robbins), que possui poderes quase telepáticos, vai até lá para investigar o crime. Porém, ele se apaixona pela culpada, Maria (Samantha Morton), mulher de passado misterioso que tem estranhos sonhos que se repetem cada vez que ela faz aniversário.

A trama do filme é cativante, com protagonistas complexos e bem desenvolvidos interagindo em uma das ambientações mais interessantes e detalhadas da ficção científica moderna. Aliás, o roteiro é um exemplo textual de aproveitamento de tempo. O longa tem apenas uma hora e meia de duração, porém mais conteúdo do que qualquer FC recente de duas horas ou mais! Muito do mérito se deve aos atores, em especial os dois protagonistas. Eles são os únicos personagens de destaque e conseguem segurar a trama sozinhos - tarefa nada fácil e que ainda é agravada pelas ocasionais mudanças de personalidade que o roteiro lhes impõe.

Visualmente, o filme também é impecável. Não tem o esplendor visual de um Matrix ou Senhor dos Anéis, mas consegue mostrar com perfeição o futuro imaginado pelo diretor. Mesmo sendo uma produção britânica (da BBC) de orçamento relativamente baixo, não fica devendo nada em termos de fotografia ou efeitos visuais.

Mas o grande mérito de Código 46 é o cuidade com as pequenas coisas. A sociedade do futuro foi pensada e desenvolvida pelo escritor nos mínimos detalhes. Por exemplo, embora a história se passe, em sua maior parte, em uma cidade chinesa, ela é incrivelmente cosmopolita, com personagens chineses, árabes, negros e europeus por todos os lados, como se espera de um futuro em que as barreiras culturais sejam derrubadas. Analogamente, os diálogos dos personagens (em inglês) são repletos de expressões francesas, árabes, espanholas e de várias outras línguas. Isso fortalece a sensação de se estar vendo uma real sociedade do futuro, e não uma civilização medieval com naves espaciais - vício comum na FC cinematográfica.

O que gera um certo incômodo é que, talvez na vontade de condensar o máximo possível, algumas coisas ficam sem explicação. Podemos ver que o planeta está mais árido e que os personagens evitam sair à luz do dia porque temem a luz do sol, mas por quê? Bem, não ficamos sabendo da resposta, mas, por outro lado, isso não é algo essencial para a trama. Então não chega a atrapalhar.

Código 46 é, no final das contas, um belíssimo filme e uma demonstração do potencial da ficção científica. É de lamentar que, por sua origem e falta de estrelas de primeira grandeza, ele será assistido por muito menos espectadores do que merece. Faça um favor para si mesmo, quando o filme estiver em cartaz na sua cidade, vá vê-lo e deixe o pipocão hollywoodiano da vez outro dia. Você dificilmente se arrependerá.

04 janeiro 2005

Zatoichi



Nota: 7,5


Sempre se falou de como Takeshi Kitano era violento e sensível ao mesmo tempo, mas nunca se falou o quanto ele é engraçado. Pois "Zatoichi" é a perspectiva de Kitano sobre a fábula de um famoso personagem do folclore japonês, um filme tão sangrento quanto hilário e inusitado.

O personagem Zatoichi, um samurai/massagista cego que cruza o Japão Feudal numa série de aventuras, já rendeu "n" filmes, mas nenhum deles deu a sorte de ser feito numa época em que o cinema japonês estivesse em foco. Mais sorte do que isso, a história de "Zatoichi" encontra um abrigo perfeito sob os olhos e a imaginação de Kitano. Sem se prender a regras, sejam elas do folclore, sejam elas cinematográficas, "Zatoichi" é um filme híbrido, genial do início ao fim, mas que vai irritar aquele espectador mais xiita, que acredita que se um filme for drama, ele não pode se transformar em uma ficção-científica.

Antes que você quebre a cabeça, "Zatoichi" é uma mistura de filme de samurai/comédia rasgada/musical da Broadway. A mistura de gêneros é anunciada cedo no filme e trabalhada para que não seja causada tanta estranheza. O próprio Kitano interpreta Zatoichi, recém chegado numa cidadezinha controlada por um clã de mal-feitores. Ele encontra abrigo junto à uma gentil senhora, sofredora da extorsão dos bandidos. Zatoichi acaba criando amizade com o sobrinho azarado da mesma e um casal de irmãos viajantes, em busca de vingança pela morte dos pais. À medida em que os personagens acabam se transformando em uma estranha família, a fama do ceguinho bom de faca vai se espalhando. Meio sem querer, Zatoichi vai dando cabo na turma do mal e seu caminho fatalmente cursa um encontro com um habilidoso Ronin mercenário, contratado como guarda-costas do chefão salafrário.

"Zatoichi" é rico na delineação de seus personagens. Todos tem uma motivação em seus atos, suas decisões não são insensatas ou incompreensíveis. O protagonista é mantido um mistério - tanto para nós quanto para os outros personagens -, mas isso não nos impede de simpatizar com sua simpática figura, especialmente quando ele bota pra capar ao lutar com seus inimigos. Principalmente intrigante é o personagem do Ronin, que apenas decepa membros alheios para conseguir dinheiro a fim de pagar o tratamento de sua mulher, severamente doente.

A miscigenação é o que distingüe "Zatoichi" de outros filmes do gênero. O look remete a uma obra de época, com a belíssima reconstituição e direção de arte impecável, mas a trilha sonora é composta por sintetizadores e batidas eletrônicas. O avant-garde está presente também na opção de Kitano em fazer todo o sangue e tripas atravessadas em CGI. Há um método nessa loucura: propositalmente falso, o diretor quis reproduzir a sensação de mangá - os jatos de hemoglobina são praticamente desenhos animados. A coreografia das lutas são ágeis e o espectador não fica com a menor dúvida de que Kitano, um senhor, não seja capaz de botar para fuder como está na tela. A expectativa para as cenas de luta de espada são recompensadas através de incríveis - mesmo que rápidos - momentos onde tanto Zatoichi e o Ronin tornam-se exércitos de um homem só.

"Zatoichi" consegue ganhar o espectador por não deixar haver tempo morto em sua história (e Kitano não confunde isso com: "vamos colocar ação atrás de ação" como Jerry Bruckheimer). Se a história principal não está se desenvolvendo, ou há uma luta, ou há uma piada. O humor é até singelo, mas vem como uma brisa fresca no meio de tantas intrigas. A comédia está concentrada na segunda metade, quebrando o princípio que o começo deve ser leve e o resto deve ser carregado de tensão, que assolam a maioria dos filmes. O melhor: é realmente engraçado, humor bobo sem pedir desculpas.

O lado musical (!) do filme é indicado através da incorporação de sons ambientes á própria trilha sonora (imagine "Dançando no escuro"). "Zatoichi" guarda um grand-finale tipo "Stomp!", mesclado com batalha de samurais e deve ser um dos finais mais absurdos, inventivos e excitantes dos últimos tempos. O clímax de "Zatoichi" praticamente catapulta o espectador - de mente aberta - para fora do cinema, numa explosão de alegria. Ao que acaba, a platéia está refletindo, mas sorrindo por ter acabado de testemunhar o que acabou de ver.

Sob o Céu do Líbano



Nota: 6

O Oriente Médio, de fato, ocupa o centro das atenções mundiais já há um bom tempo. Natural que este interesse também se volte para a parte cultural que os árabes podem nos oferecer. Da música, como na canção "Galvanize" do próximo álbum do Chemical Brothers, ao cinema - em especial o iraniano -, o universo artístico de lá está muito presente por estes lados.

Então, nada mais bem-vindo que o filme Sob o céu do Líbano (Le cerf-volant, 2003), de Randa Chahal Sabbag, para acrescentar ainda mais repertório nesta popularização da cultura árabe. Melhor ainda é saber que a película, vencedora do Leão de Prata em Veneza 2003, vem do Líbano, algo bem raro de acontecer, e ganha lançamento no circuito comercial no Brasil.

O filme não apresenta mistérios. É a legítima história de Romeu e Julieta transportada para as Colinas de Golã, em tempos de invasão israelense - trama similar à de A noiva da Síria (The syrian bride, de Eran Riklis, 2004), obra exibida na 28ª Mostra BR. Sabbag focaliza as aventuras de Lamia (Flavia Bechara), uma garota de quinze anos que vive na fronteira entre Israel e Líbano. De um lado da cidade, os árabes. Do outro, israelenses. Prometida para o primo Samy, que vive no lado judeu, Lamia tem que cruzar o posto de checagem o tempo todo. Ali, encontra o entediado Youssef (Maher Bsaibes), um soldado israelense.

Youssef não é nem um pouco popular na cidade. E o envolvimento dos dois é, certamente, algo muito complicado. O mais curioso é que a filosofia amorosa fica sempre fora da questão. Os dois personagens, ao contrário dos de Shakespeare, sabem muito bem toda a carga terrível que os rodeia. Nisto, uma cena é emblemática, logo no começo do filme, quando Lamia persegue seu animalzinho que invadiu o território israelense sem querer. A simbologia deste conflito está nua e crua, exposta na tela de maneira sublime.

Assim como a dura realidade que os rodeia, a aventura dos personagens, ainda que em vários momentos seja hilária, é uma ode melancólica, em que a animosidade está sempre massacrando o amor. Triste. Mas a vida naquela região em conflito é muito pior. Os sonhos de Sabbag somente eternizam as situações. É uma estirpe de cinema romântico, no literal sentido do movimento artístico do século 18.

Jornada da Alma



Nota: 7,5

A história do amor proibido do famoso psicanalista Carl Gustav Jung e Sabina Spielrein finalmente chega às telas. Esse drama secreto tem fascinado historiadores e profissionais da área. Muito já foi escrito sobre o assunto, servindo de inspiração para novelas e peças de teatro. Jornada da Alma (Prendimi l'anima, 2003) é uma história real que até hoje abala as fundações da psicanálise.

Esse fato histórico chegou ao nosso conhecimento em 1977, quando foi encontrado o diário de Sabina e as cartas em que ela, Jung e Freud trocaram entre si. Sabina era uma judia russa de 19 anos que sofria de histeria. Em 1905, ela foi internada em um hospital psiquiátrico de Zurique, na Suíça. Seu médico é o jovem Jung, que aproveita a chance para aplicar pela primeira vez as teorias que aprendera com o mestre Sigmund Freud.

A cura de Sabina vem acompanhada de um caso amoroso com Jung. Anos se passam e ela retorna à Rússia e acaba se tornando psicanalista também. Em sua clínica Creche Branca, ela se especializa no tratamento de crianças. Suas teorias são perseguidas no regime de Stalin e sua clínica é destruída pela Guarda Vermelha. Em 1942, durante a 2ª Guerra Mundial, é morta por tropas nazistas. Tempos depois, sua trajetória foi resgatada por dois historiadores.

O diretor Roberto Faenza foi o responsável pela adaptação e resolveu apostar todas as suas fichas numa história de amor. Isso foi um erro. Seria muito mais interessante aprofundar não só o tratamento de Sabina por Jung, como também os métodos utilizados por ela em sua clínica. Faenza perdeu uma grande oportunidade de questionar a relação paciente-doutor, mexer com certos tabus da psicanálise moderna, procurar respostas ou motivos que fazem com que os pacientes de histeria tendam a se apaixonar por seus médicos. Só o que vemos nas telas é um Jung inseguro, perdido e agoniado. Tratando-se do renomado psicanalista, falta substância para aceitarmos tamanha imperícia.

Uma outra falha é a idéia do casal de pesquisadores que investigam o caso. Maria e Fraser procuram desvendar o mistério do passado de Sabina. Ao mesmo tempo em que certos segredos vão sendo revelados, podemos sentir que Maria começa a se afeiçoar por Fraser, uma forma batida de fazer uma correlação do amor de Sabine por Jung. Os atores Caroline Ducey e Craig Ferguson, que interpretam respectivamente Maria e Fraser, não possuem nenhuma química. Certas cenas chegam a ser risíveis.

No papel de Sabina temos Emilia Fox (O Pianista), com uma atuação digna de um Oscar. Uma performance inesquecível e rica em detalhes. Iain Glen constrói um ótimo Jung com incertezas e realmente preso num meio de uma tempestade de emoções.

A reconstrução histórica é correta, com destaque para o hospital em Zurique. Já as cenas da destruição da clínica de Sabine pela guarda vermelha e o massacre dos nazistas em Restov parecem tiradas de um filme feito para TV.

Uma pena que um assunto tão fascinante tenha sido tratado dessa forma. Pelo menos os amantes de uma boa história de amor, baseado em fatos verídicos e com ambientação de época, serão recompensados.

Os Educadores



Nota: 10

Durante o Festival do Rio 2004, o Cinema Unibanco 2 foi palco de uma sessão especialíssima. O diretor alemão Hans Weingartner participou da projeção junto com o público de seu novo filme The Edukators (Die fetten jahre sind vorbei, 2004). Visivelmente cansado, mas muito simpático e solícito, distribuiu adesivos do filme e colocou-se à disposição para trocar idéias após a sessão. Seu longa é o primeiro filme alemão a participar da competição oficial do Festival de Cannes 2004 nos últimos dez anos.

A história é centrada nos jovens Jan, Peter e Jule, que acreditam que podem mudar o mundo. Jan e Peter se autodenominam Os Educadores, rebeldes contemporâneos que expressam sua indignação de forma pacífica: eles invadem mansões, trocam móveis e objetos de lugar e espalham mensagens de protesto. Mas, após a invasão da casa de um conhecido homem de negócios, Jule esquece um celular no local. No dia seguinte, eles são obrigados a retornar. O empresário os surpreende e acaba sendo seqüestrado.

The Edukators é um filme sensacional, com diálogos afiados, personagens encantadores e com uma mensagem perturbadora. O diretor e co-roteirista Hans Weingartner abre uma discussão interessante sobre a juventude rebelde. Ser rebelde, hoje em dia, ficou muito difícil. Quem quer ser um idealista no capitalismo selvagem em que vivemos? Weingartner nos mostra que a geração dos shoppings perdeu seu poder de protesto. No caso de Jan, Peter e Jule ainda existe uma esperança. Com estes personagens, ele quer chamar a atenção do jovem para as questões sociais e ainda revelar que os inconformados dos anos 1970, são os atuais capitalistas.

O filme é todo rodado em câmera digital. Isso ajuda a criar um clima realístico, dando uma idéia de registro. O roteiro guarda suas surpresas e prende a atenção do espectador. O trio de jovens é interpretado respectivamente por Daniel Brühl (Adeus Lênin), Julia Jentsch e Stipe Erceg. A atuação dos três jovens atores é arrebatadora e Burghart Klaussner dá ao empresário seqüestrado a credibilidade necessária.

Os Educadores é um filme de reflexão. Um olhar surpreendente do jovem em sua tentativa de viver a sua própria versão dos protestos político dos anos 1960. Ao final da sessão, o diretor comentou que normalmente não devemos fazer aquilo que vemos nos filmes. Mas nesse caso deveríamos seguir a linha de pensamento dos personagens, mesmo que para isso, tivéssemos que superar nossos medos e temores. E concluiu com uma variação da frase do personagem Jan: “Todos nós participamos desse jogo inconscientemente. Só aqueles que tomam consciência da Matrix mudam a forma de jogar”.