23 maio 2006

Dia de Festa



Nota: 9

São Paulo tem mais de um milhão de pessoas morando em suas duas mil favelas. 8.700 vivendo debaixo de pontes e viadutos. 400 mil imóveis na cidade estão abandonados. São esses números, intermediados pelo artigo 182 da Constituição - o Poder Público municipal pode desapropriar solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado -, que tornam a causa do documentário Dia de Festa (2006) uma causa justa.

Com essa prerrogativa "do Bem", o cineasta Toni Venturi deixa de lado a isenção e cria uma peça de defesa do MSTC, o Movimento dos Sem-Teto do Centro de São Paulo. O projeto começou quando o arquiteto franco-argentino Pablo Georgieff, há dois meses dividindo as experiências dos sem-teto na metrópole, em sua busca por soluções de moradia popular no mundo inteiro, convidou Venturi a registrar as imagens em forma de documentário. O que era para ser um painel sociológico ganhou contornos de thriller: em outubro de 2004, os dois acompanharam a ocupação de sete prédios vazios do Centro pelo MSTC e o consequente choque com a Polícia Militar.

O dia de festa do título é o apelido dado, no movimento, a essas ações. Os sem-teto são os "convidados" da ocupação. Existe muito de provocação e de vocação para o enfrentamento nessa terminologia - mas o documentário não está atrás apenas das palavras-de-ordem. São os dramas humanos por trás das estatísticas que interessam a Venturi, e ele pega quatro boas personagens para ilustrar a causa. Neti, Silmara, Janaína e Ednalva são mulheres de idades distintas, umas são mães, solteiras, outras são mais novas. Em comum, além do posto de organizadoras do Movimento, a condição de batalhadoras independentes. Elas se apóiam na união para armar a "festa", mas as moradias temporárias são festejadas como conquistas individuais.

Mais até do que conquistas individuais, conquistas femininas. Não é difícil perceber, pelas imagens, o apreço que Venturi nutre por seus documentados. O sentido de família (de comuna?) é onipresente - a câmera enfoca frequentemente bebês dormindo um sono tranquilo no chão limpo e iluminado daquilo que antes da ocupação era uma fábrica suja e sem luz. Do outro lado, a frieza do helicóptero de patrulha que corta o céu nublado, entre o concreto dos prédios, e o bloco sem face do batalhão de choque. Que a certa altura Dia de Festa registre in loco as meticulosas negociações entre a PM e o MSTC, o tipo de civilidade que não se vê nos programas policialescos da TV, é um oportuno e equilibrado achado documental. Mas isso não dissipa o tom geral de panfleto. Causa justa, vale repetir, mas ainda assim um panfleto da família sem-teto.

Cinematograficamente, as ousadias narrativas são poucas, mas é curioso notar como Venturi recorre a um símbolo forte de seu mais recente filme de ficção, o bom Cabra-Cega (2005), para pontuar também Dia de Festa. É a imagem, tomada da beira de um terraço, do mar cinza de prédios da cidade. Na história do guerrilheiro encarcerado, esse horizonte diminuía a sua figura, sendo a cidade metáfora do contexto (a ditadura) que o sufocava. No caso das mulheres do MSTC, divagar acima de São Paulo não é uma resignação, mas uma oportunidade. Os incontáveis edifícios são oportunidades. Como Neti, Silmara, Janaína e Ednalva, um milhão de paulistanos passa pela mesma provação - e isso as engrandece.