10 maio 2006

Estrela Solitária



Nota: 7

Os cânions, os vales e as formações rochosas de Utah e Nevada, nos confins do Oeste dos Estados Unidos, são quase monocromáticos. O marrom desbotado da poeira e o quase-vermelho do barro se conciliam em um meio tom alaranjado. É a cor do Velho Oeste, um clichê incontornável, uma paisagem que não mudou muito neste século e pouco de cinema. Quando Wim Wenders aponta a sua câmera para as mais variadas pedras e relevos e desníveis da região, não há como escapar: Estrela Solitária (Don't Come Knocking, 2005) é de um laranja da cor-do-sol, mais vivo do que nunca.

Mas há algo de diferente - a começar pelos dois buracos de céu na primeira cena, como dois olhos. Em seguida, antes de imprimir o título do filme na película, Wenders vira devagar a lente para o sol, epifania calculadíssima, formando na contraluz uma escala filtrada de cores como as rochosas laranjas nunca viram antes. Filmar contra a luz é coisa de amador ou de cinegrafista chamando a atenção para si. Neste caso, Wenders quer pedir ao espectador que apure o olhar. É como se disesse "Preste atenção, que este é um filme de sensações".

E o que vem depois realmente atiça os sentidos e conspurca o Velho Oeste monocromático, monocórdio - o Velho Oeste mitológico. Um carro com a lataria forrada de espelhos, como um globo de discoteca sobre rodas, avança cena adentro. Um sofá estampado com flores que lembram chita fica largado no meio da passagem. Máquinas caça-níqueis estalam vertiginosamente. O ruído de um mero barbeador elétrico agiganta-se na imensidão vazia do deserto. Um trem que atravessa o pontilhão mata o silêncio sagrado do luar. Wenders contrapõe o western mitológico a um western cacofônico, onírico às vezes, brega frequentemente, cheio de cores que não casam, sobrecarregado de informações - como é o mundo real hoje. No caso, a contraluz do início, como um cowboy que ergue a aba do chapéu e encara o sol, sem medo de cegar-se, é o primeiro passo do enfrentamento. Estrela Solitária é um faroeste no divã.

O personagem principal desse exame, não poderia deixar de ser, é o seu herói mítico, o cavaleiro andante e só. O ator Howard Spence (Sam Shepard) sabe o que é um bom faroeste. Montou toda a sua carreira interpretando mocinhos de bangue-bangue. Mas o que um dia foi um ícone hoje é uma sombra. Conhecendo-o depois, dava até para prever que um dia ele surtaria. E o momento chegou. Howard estava nas filmagens de O Fantasma do Oeste, sua derradeira tentativa de voltar ao estrelato, quando abandona o set em cima de um cavalo, com o figurino do personagem no corpo.

Os produtores, o diretor, o resto do elenco, todo mundo fica sem saber o que fazer. Howard deixou apenas uma carta manuscrita, em meio às cervejas, às carreiras de cocaína e às prostitutas que pernoitaram em seu camarim. Fugiu das filmagens sem saber para onde ir. Quer dizer, sabe por onde começar - trocar a camisa cheia de floreios de seu personagem por uma roupa surrada, de um vaqueiro de verdade. Se ele andasse por aí daquele jeito, como uma caricatura de Johnny Guitar, seria confundido com um astro de cinema. E ser reconhecido é a última coisa que Howard Spence quer no momento.

A jornada existencial que segue, seu acerto-de-contas com o passado, com a mãe, com ex-amantes, com um filho que ele mal sabia que existia, se confunde com a lavagem de roupa empoeirada do faroeste. Mas a metalinguagem de Wenders não é daquele tipo óbvio, do filme dentro do filme. Está mais para uma simbiose à la David Lynch - é na iluminação, na granulação de um plano, no ângulo de um close, na subida de uma grua, enfim, na linguagem, que percebemos quando Wenders deixa o naturalismo e flerta com as convenções do gênero. Tudo muito sutilmente. Os abajures da casa da mãe de Howard fornecem o mesmo ambiente aconchegante (e artificial) que já recebeu muitos cavaleiros solitários de John Wayne, filhos pródigos em seu eterno e intangível retorno ao seio familiar.

Mas que lavagem é essa de que falamos? O que precisa tão urgentemente de terapia no mais estadunidense dos gêneros? Resgatar o significado, a aura do mito, essa é a urgência. Howard Spence sintetiza todos aqueles heróis paladinos, todos aqueles românticos platônicos fadados à solidão, que não resistiram no longo caminho até os incrédulos dias de hoje. Todos aqueles, nas palavras do personagem, "que desperdiçaram a vida porque não sentiram que o tempo estava passando". Sam Shepard, co-roteirista do filme, entrega uma atuação excepcional. O seu Howard começa como um trapo de gente que coça o nariz e mal consegue olhar nos olhos dos outros quando conversa. Ao final, é capaz que o fantasma do Oeste recupere a dignidade a tempo de empinar seu cavalo, mais uma vez.