23 maio 2006

O Código Da Vinci



Nota: 5

O ator William H. Macy estava estupefato com a sangueira e as excentricidades da história de Fargo, filme de Joel e Ethan Coen que ele estrelou em 1996. Foi então perguntar aos diretores - já que o roteiro trazia o famoso "baseado em história real" - de onde eles tiraram o tal caso verídico. "Ah, isso é só uma brincadeira... nós inventamos tudo", responderam. "Mas... não podemos fazer isso!", retrucou Macy, preocupado. Concluíram os irmãos Coen: "Por quê não?".

Justamente: por que não? Que lei, que lastro é esse? O que difere um filme "inspirado em fatos" de uma franca ficção? Ele é melhor por causa disso? É mais respeitado, mais crível? Seria pior se fosse uma história toda inventada? O Código Da Vinci seria o sucesso que é se Dan Brown não tivesse estampado nas primeiras páginas o discutido atestado de veracidade? Para mim o livro é apenas umas história, um conto intrigante, que tem a associação com o real para vender mais exemplares. Fazer barulho para render dinheiro. Normal.

Afinal, todo o barulho que a mídia faz em cima da obra não vai além de especular se Maria Madalena era mesmo a mãe dos filhos de Jesus, se Isaac Newton era mesmo um dos guardiões do Graal, se a Opus Dei é esse diabo que pintam. Poucos trataram de estudar a narrativa em si, a construção dos personagens, as fórmulas que Brown recicla. Se a crítica do filme seguisse o caminho da polêmica da "história real", rodaria em falso. Que os historiadores se encarreguem de analisar os fatos. Os Coen diriam que não importa a fonte de uma trama, seja o mundo real ou a imaginação. O que importa é se ela funciona na tela.

E na tela O Código Da Vinci (The Da Vinci Code, 2006) funciona mal.

O diretor Ron Howard não é conhecido como um autor, na acepção consagrada do termo, aquele artista que imprime uma marca em toda a sua obra. Howard é o clássico carregador de piano. Segue o que está escrito na receita, seja ela qual for - no caso, quando segue a receita do Oscar, sai-se bem, como em Apollo 13 (1995), Uma Mente Brilhante (2001) e A Luta Pela Esperança (2005). A fórmula aqui é a das adaptações literárias. Nela, cabe ao diretor enxugar o que há de literal (descrições de espaços, fluxos de consciência) e otimizar o que há de visual, a ação. Daí o primeiro problema - de ação O Código Da Vinci tem pouco.

Com exceção de dois ou três clímaces dignos, o filme se compõe basicamente de enunciados sobre teorias conspiratórias cristãs, em formato ilustrado (algumas cenas de charadas e quebra-cabeças lembram Uma mente brilhante, principalmente o deciframento do criptex). O especialista em símbolos Robert Langdon (Tom Hanks) e o historiador Leigh Teabing (Sir Ian McKellen) explicam à criptologista Sophie Neveu (Audrey Tautou), entre uma perseguição e outra, que história é essa do Cálice Sagrado não ser cálice coisa nenhuma, ser uma mulher. Para quem não leu o livro e toma contato com o material direto na telona, fica parecendo que Brown recorreu ao romance policial apenas para embalar a tal teoria. Que tipo de ação surge daí? É mais ou menos como colocar dois bibliotecários num ringue de gel.

E já que estamos num dia de citações, o crítico do New York Times, A.O. Scott, sintetizou: "Esta é uma das poucas adaptações de um livro que talvez tome mais tempo para assistir do que para ler".

Em outras palavras, não há nada que O Código Da Vinci possa acrescentar - seja no formato, seja no conteúdo - ao gênero do thriller. Pelo contrário, Howard desonra até os fundamentos da matéria. Um deles é o de manter o espectador sempre confuso. Ora, se Teabing explica uma coisa, Sophie repete o que ele disse em forma de pergunta, e Langdon explica mais uma vez para deixar tudo mastigadinho, que raciocínio resta ao espectador? A ferramenta digital de iluminar pedaços de um símbolo na parede, por exemplo, como na cena da estrela de Davi, novamente para reiterar o que já estava claro, é um acinte à inteligência da platéia.

Em Cannes, onde o filme ganhou sua première mundial, a pretensa grande surpresa da história foi recebida com risos. Isso tem menos a ver com o imbróglio criado por Brown e mais com a maneira como Howard o apresenta.

Alfred Hitchcock não era um teórico, nem um historiador, mas uma lição sua deveria ter sido seguida aqui - a do MacGuffin.

(Parênteses para a explicação do próprio Hitchcock, livremente adaptada, sobre o que é MacGuffin: dois sujeitos estão num trem, um deles com uma mala; "o que há na mala?", pergunta um; "aqui nessa mala eu tenho um MacGuffin", responde o outro; "mas o que é um MacGuffin?", retruca o primeiro; "MacGuffin é uma arma de matar elefantes no Brasil", explica aquele com a mala; "mas no Brasil não há elefantes!", indigna-se o outro; "ah, então não é um MacGuffin", conclui o sujeito.)

Esse é o termo inventado pelo cineasta para designar aquele objeto que não importa nada ao espectador, mas que vale a vida para o protagonista. É a defunta do vizinho de Janela Indiscreta (1954) e a pedra de urânio de Interlúdio (1946), por exemplo. Aquela pedra é toda a razão pela qual Cary Grant arrisca a vida de Ingrid Bergman. Para nós, porém, dane-se a pedra: queremos ver o que acontece com o casal, como sua relação é ameaçada, depois reerguida. Howard fracassa porque o filme, a teoria "baseada em fatos", é todo um gigantesco MacGuffin.

Não precisaria ser assim. Na verdade, é possível perceber aqui e ali toques de dramaturgia, na maneira como Sophie representa o ideal solidário do cristianismo, como Langdon e o Louvre são emblemas do ideal iluminista contra as trevas não só da Opus Dei como da própria oficialidade católica. Mas o desenvolvimento dos personagens não vai muito além, nem os conflitos de idéias. Todo mundo só quer saber do circo das teorias. O Código Da Vinci é um fetiche para conspirólatras, nada mais.