23 maio 2006

A Concepção



Nota: 8

Exercício de suposição abstrata: se A Concepção (2006) chegasse à TV aberta, sua sinopse seria algo como “uma galerinha do barulho que vai aprontar altas travessuras nas suas férias de verão, deixando todo mundo de cabelo em pé”. O sexo e drogas desenfreados, acabam aproximando mais o filme de coisas como American Pie, e perdendo um pouco de sua crítica metafísica da realidade. O questionamento perdendo importância para a venda da mercadoria. Querendo vender o filme, acho que os realizadores não mantiveram a ideal até o final. E o filme se suicida antes do fim, com um certo esforço em chocar a audiência.

O filme do brasiliense José Eduardo Belmonte, vem dividindo opiniões desde sua primeira exibição, em novembro de 2005, no Festival de Brasília. O longa, que estréia em pequeno circuito em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília na sexta-feira, saiu do festival com dois prêmios - melhor montagem e melhor trilha sonora.

Admirado por sua agilidade técnica, uma câmera muito inquieta e efeitos de animação que têm tudo a ver com a história, A Concepção também chocou por suas muitas cenas de nu frontal (inclusive de atores conhecidos, como Matheus Nachtergaele e Milhem Cortaz), algumas sugerindo sexo grupal e consumo de drogas do início ao fim. Com certeza, nada é gratuito numa história que pretende formar um retrato de uma juventude rica, fútil e inconsequente nos altos círculos da capital do país.

Alex (Juliano Cazarré), Lino (Milhem Cortaz) e Liz (Rosane Holland) são três filhos de diplomatas que dividem um grande apartamento em Brasília. Os pais de todos estão sempre longe, apenas pagando as contas. Ninguém trabalha, estuda ou tem qualquer objetivo. O cotidiano é sexo, drogas e rock'n'roll.

Então aparece X (Matheus Nachtergaele), que se torna uma espécie de guru deste grupo, que não mostra nenhuma vontade de pensar nada por si mesmo. E o guru propõe que se siga daqui para a frente o "concepcionismo". Uma teoria de vida que elimina o ego e a identidade a partir da negação da memória. Todos queimam os próprios documentos e mergulham cada vez mais numa rotina de excessos.

Nota-se aqui uma óbvia inspiração do roteiro (assinado por Luís Carlos Pacca e Breno Álex) em Os Idiotas (1998), de Lars von Trier, que seguia um grupo de jovens, moradores de uma mansão colocada à venda e que passava seus dias tentando romper com todo tipo de convenções sociais. Claro que o filme do dinamarquês é altamente politizado e crítico, enquanto que não compreendemos muito bem a que veio o do brasileiro.

Pelo menos na intenção, o diretor não quis chocar ninguém. Como ele disse, ao apresentar o filme em Brasília, ele considera seu trabalho "um pequeno passo para retomar a utopia desta cidade e o sonho de um país melhor". A se levar a sério esta intenção, Belmonte acredita que recuperar a utopia começa pela exposição da falência da situação atual.

Um problema é que o filme não define satisfatoriamente os personagens, já que todos eles são unilaterais demais para que se chegue o que parecia ser um retrato de geração. Mesmo assim, A Concepção tem qualidades.

No centro do enredo, um grupo de jovens cujo único problema aparente é a cidade onde vivem: Brasília, o inferno do planalto, responsável pelo desequilíbrio mental de seus habitantes. Longe dos pais, desesperados pelo tédio e pelo achaque psicológico da sociedade moderna, resolvem criar um movimento pseudo-anarquista: o concepcionismo.

Ideais? Nenhum, além do ato de viver e de se desprender das coisas que nos prendem nessa sociedade egoísta. Esses "easy riders" candangos queimam seus lenços e documentos, pregam a liberdade de idéias, querem ser novos indivíduos a cada momento. “As pessoas estão doente de si mesmas”, juram, adotando o bordão da “morte ao ego”, gritado com freqüência.

Apoiado em muitos conceitos soltos, sem aprofundamento em nenhum, o filme joga seus personagens como loucos pré-manicômio dentro do mundo concreto. No meio do caminho, surge um Buda para dar estofo à piração: X, um homem mais velho e sem passado (Matheus Natchtergaele, cumprindo seu papel costumeiro de brilho no elenco), que sabe tudo sobre drogas, disfarces e falsificação de documentos. Ou seja, tudo o que a molecada precisava para viver confortavelmente no seu universo paralelo, pelados e sem norte. Se esse estilo de vida subversivo pudesse ser praticado pela maioria dos brasileiros, tudo bem, esse filme poderia ser sim um manifesto, mas o universo do filme só funciona no meio das elites, que podem nada fazer e tudo ter.

Ao fim da história, a vida real revida o ataque concepcionista e tudo volta ao normal. Ou não - o que não faz a menor diferença. E A Concepção falha no seu objetivo (se é que ele existe) de suscitar uma discussão sobre os rumos da sociedade contemporânea. Bem de acordo, aliás, com um dos preceitos que rege seus personagens: “tudo o que foi falado até agora deve ser esquecido”. Ah, tá.