04 maio 2006

Árido Movie



Nota: 8,5

Jonas , o protagonista de Árido Movie, é homem do tempo, expressão carregada de possibilidades: homem do tempo pode ser, por exemplo, Deus; um meteorologista (caso do próprio); um filósofo; um guru. Certamente, no filme, Jonas é homem de UM tempo, o de São Paulo - tempo de utilidades e certezas.

E é no Nordeste - no sertão árido onde morreu seu pai, pertencente a uma família de coronéis em que ainda prevalece a "vendetta" - que ele conhece um outro tempo. Ou melhor, vários.

O tempo do sol, da seca; o tempo que não passa, também do sol, mas igualmente da "vendetta"; o tempo dos índios, ameaçados de extinção literal e representados de forma agressivamente comovedora por José Dumont, o Zé Elétrico, que, num momento do filme, diz que vai sair para meditar, já que "o mundo tá transitando na contramão".

Dentro de um táxi, no Recife, Jonas, o homem do tempo, sussurra para um motorista que não o entende, praguejando contra o sol mormacento: "Sol de Dois Canos". É o sol de João Cabral de Melo Neto: "O sol em Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o primeiro dos dois, o fuzil de fogo/ incendeia a terra: tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois sóis,/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o segundo dos dois, o fuzil de luz,/ revela real a terra: tiro de inimigo".
E Jonas e o espectador deveriam então aprender que o sol, no Nordeste (pelo menos no sertão), é sempre inimigo. Mas não aprendemos, não.

O melhor cinema feito hoje no Brasil está fora de Rio de Janeiro e São Paulo. O cearense Karim Ainouz (Madame Satã), o baiano Sérgio Machado (Cidade Baixa), os pernambucanos Cláudio Assis (Amarelo Manga) e Marcelo Gomes (Cinema, Aspirina e Urubus) dividem entre si a responsabilidade de colocar o Nordeste no novo mapa da cinematografia nacional. Mas são, em maior ou menor grau, cineastas de temas universais - inquietude, amor, solidão, incomunicabilidade, desesperança, inadequação.

O pernambucano Lírio Ferreira, que apresenta agora Árido Movie (2004), talvez seja o mais "nordestino" desse grupo, no sentido em que o regionalismo de certo modo define os temas de que ele trata. O cangaço, a seca, o coronelismo, o messianismo, o folclore, o manguebit, o compêndio secular do sertão, o recifense com um pé na modernidade e o outro pé fundo no mangue, tudo isso pontua a obra do diretor - desde seu primeiro longa, co-dirigido por Paulo Caldas, Baile Perfumado (1997), até este árido filme solo.

O ator curitibano Guilherme Weber, revelado nas peças da Sutil Companhia até chegar às novelas globais, interpreta Jonas, filho de um grande proprietário de terras na vila sertaneja de Rocha, Lázaro (Paulo César Pereio). Jonas mal conheceu o pai, logo se mudou para o Sudeste. Em compensação, a família que ficou em Rocha vê Jonas todas as noites, pela televisão, na hora em que o filho-pródigo apresenta a previsão do tempo no jornal. Uma reunião ao vivo, porém, está para acontecer. Depois do assassinato de Lázaro, Jonas é forçado a voltar ao Pernambuco para enterrá-lo.

Essa premissa enxuta remete ao clássico tema do eterno retorno e já sugere um filme de estrada. Mas é aconselhável não confiar em sinopse. No meio do caminho o espectador encontrará não apenas uma leva de bons coadjuvantes (Selton Mello, José Dumont, Matheus Nachtergaele, Giulia Gam, Luis Carlos Vasconcelos) e pontas especiais (Cláudio Assis, Xico Sá, Zé Celso, Lira Paes) como uma torrente de abstrações. Quem imagina um minimalismo à Marcelo Gomes pode se surpreender com o caos que desponta no imaginário do Vale do Rocha.

Forquilhas, pregadores de estrada, chá de índio, plantações de maconha, night club, vingança, barbas brancas, ares de Canudos... Já reparou que desde o começo este texto enfileira um monte de coisas soltas que não parecem ter relação entre si? Assim é Árido Movie, um filme com tantos argumentos que mal põe de pé uma única tese consistente. É difícil escapar da síndrome do segundo filme, e Ferreira parece entender que o antídoto para essa doença é negar a narrativa. Quando uma passagem engrena na dramaturgia, ela é quebrada por outra, descompromissada. O problema é que sobram apenas fragmentos, como numa viagem de erva em que jorram idéias efêmeras e sobrepostas.

O diretor não é desconhecedor da linguagem do cinema. Domina o ritmo, o momento certo de fazer silêncio: incluir uma panorâmica devastora do sertão em contraponto à cena fechada no conflito dos personagens, por exemplo. Há um elemento no filme que serve de fio a essas idéias, a água, da primeira à última tomada. E há também questões referentes a identidade, ao tempo, à validação do homem no espaço ao seu redor - a Montanha do Cachorro já era conhecida assim antes do ser humano nomear o animal de cachorro? Quem são esses alienígenas recifenses que chegam a bordo de uma nave conversível como se as pessoas de Rocha não fossem conterrâneas do sertão, mas gente de outro planeta?

O cartão de visitas, Lírio Ferreira entrega logo nas cenas de abertura: desfoques, uso ousado de lente grande-angular, um plano vertiginoso de Recife, angulações inesperadas.

O que vem a seguir não desmente esse início vertiginoso. Estamos no território do barroco, aonde nos leva já um roteiro com várias histórias que parecem nascer umas das outras.

A primeira delas, central, diz respeito a Jonas, homem do tempo. Em Recife, ele encontra um grupo de amigos "outsiders" que resolve fazer uma excursão até Rocha para acompanhar o amigo. A viagem será acidentada. A terceira história diz respeito ao encontro de Rocha com a artista Soledad, que trabalha as relações decorrentes da seca na região. Podemos acrescentar a essas uma quarta história, a da família do assassino do pai, isto é, dos descendentes de indígenas que moram na região.
Com todos esses elementos para organizar num todo coerente, não é de espantar que estejamos diante de um filme de exuberância barroca, em que a luz é marcada por contrastes radicais e a imagem, por panorâmicas de 360 graus, cenas inteiras compostas em espelhos retrovisores, uma câmera que se posta ora lá em cima, ora cá embaixo e que parece se abrir a todas as influências do mundo: Godard e Welles, Sergio Leone e o faroeste, Glauber Rocha e o cinema dito marginal.

Lírio Ferreira se entrega a sua arte com paixão. Ele filma o agreste pernambucano como quem fizesse um faroeste. Mostra o sentimento de seus atores (Luiz Carlos Vasconcelos e Aramis Trindade em particular) ocultando-lhes os olhos. Retrabalha o clichê das vinganças nordestinas até desfigurá-lo. Ele pinta as estradas secas do Nordeste buscando o mesmo ânimo de Welles ao descrever a fronteira EUA/México.
Aos poucos, a gama de contrastes se alastra, ocupa o filme: branco e índio, interior e capital, seca e água, misticismo e racionalidade, Sudeste e Nordeste. É em meio a essas tensões que Árido Movie instala seu protagonista, que, com justa razão, se vê perdido nesse espaço múltiplo, labiríntico, incompreensível, talvez absurdo em que se dá esse drama do subdesenvolvimento cavalar.

Drama que, não sem ironia, o filme vê se transformar, no Sul, em exposição de arte, tutelada pela imagem de Meu Velho, o místico picareta. Sabemos então que Árido Movie quer extrair dessa paisagem e de seus personagens uma imagem do Nordeste que seja verdade, não arte. Em poucas palavras: esse primeiro vôo solo de Ferreira é bem mais que animador.