Nota: 8
A história é aparentemente banal, inspirada na própria infância do roteirista: um casal decide se separar, e os dois filhos, Walt, 16, e Frank, 12, tentam reconstruir suas identidades depois que suas vidas são viradas de cabeça para baixo, com um revezamento frenético entre a casa do pai e da mãe, confissões inesperadas dos motivos da separação e o novo comportamento que os pais adotam, namorando ou flertando com pessoas mais jovens.
O Pequeno Príncipe, Perrault, irmãos Grimm na infância. Ápice da adolescência, Salinger, O retrato do artista quando jovem, uns Shakespeares românticos. Kafka para pontuar o início da vida adulta, mais Hamlet, sem dúvida. O agridoce começo dos trinta pede Cortazar, Beckett, Hemingway, Gatsby. Daí em diante, para buscar o tempo perdido, Marcel Proust.
Bernard Berkman, o deplorável personagem de Jeff Daniels em A Lula e a Baleia (The Squid and the Whale, 2005), pode não concordar com a lista acima, mas certamente acredita que a literatura nos ensina a viver. Professor universitário e escritor que já teve dias melhores, ele criou no filho mais velho, Walt (Jesse Eisenberg), essa idéia de que os "filisteus", aqueles que "não são intelectuais", não merecem consideração. Ler bastante, ver muitos filmes, saber apregoar esse repertório - é isso que faz o homem.
O dicionário Aurélio define o termo filisteu como uma forma de se referir a "indivíduos de espírito vulgar". Para o escritor fracassado e agora professor de literatura Bernard Berkman, filisteu é aquele ser desafortunado que não se interessa por livros e muito menos por filmes, conforme explica para seu filho Frank. Bernard acredita que o mundo é dividido por filisteus e não-filisteus, e seria bom se os representantes da segunda categoria evitassem se envolver com os integrantes da primeira, seres desmerecedores de crédito e inferiores por natureza - linha de raciocínio bem pejorativa, por sinal. Mesmo sendo apenas um mero pré-adolescente, Frank percebe a irracionalidade e a prepotência do pensamento de Bernard e não tarda a rebater: se ser um não-filisteu implica em seguir os ideais do pai, ele prefere ser um filisteu.
Na faculdade, para impressionar as garotas, Walt cita obras que não leu. Arruma uma namorada que não ama. Em um concurso musical, toca "Hey You", do Pink Floyd, como se fosse de sua autoria. Habitaria eternamente esse auto-engano, o inescapável complexo edipiano de superar o pai, se não fosse um terrível baque, que o atira na vida real: o divórcio. Sua mãe, Joan (Laura Linney), escritora em ascensão, está se separando de Bernard. Não há livro no mundo que ensine Walt a lidar com essa situação - essa é a mensagem que o roteirista e diretor Noah Baumbach nos transmite com estilo e coração.
Coração porque a história tem muito de sua própria adolescência. Estilo porque Baumbach não tem medo de fugir da estética Sundance e recorrer a uma fórmula "ultrapassada", aquela de dramas sóbrios, para contar essa sua história. (Espanta saber que o roteirista assinou, no ano anterior, o script do interessante A Vida Marinha com Steve Zissou; Wes Anderson retribuiu produzindo A Lula e a Baleia) Não há neste seu relato autobiográfico qualquer afetação, fotografia granulada, câmera lenta com música ao fundo, nada.
A história se conta com o bom e velho plano-contraplano, calcada nas excelentes atuações dos protagonistas, com a necessária pitada de humor cáustico. Baumbach tem a mania dos indies de reabilitar atores de segunda linha - a participação de William Baldwin é impagável - mas fica só nisso. Provavelmente por ser assim, genuíno, o filme tenha sido indicado ao Oscar de melhor roteiro original. É uma pena que não tenha ganho, pois o texto enxuto é um exemplo de coesão. Trata da formação do caráter de Walt de forma breve e precisa, passando pela necessária desconstrução do ícone paterno, e culminando em um final aberto, a metáfora do embate entre os gigantes marinhos.
Fica a lição de que experiência de vida não se herda. Talvez seja por isso que o filme exale frescor, novidade: no meio cinematográfico em que tantos se colocam acima dos personagens, donos da verdade, Baumbach tem a humildade de expor-se, de arriscar um caminho fora da cartilha, de humanizar seus personagens sem rir dos defeitos deles. Sem conhecê-lo, dá até pra dizer que o diretor se tornou uma pessoa melhor depois de fazer A lula e a baleia.
A meu ver, gostar ou não gostar do filme, envolve um pouco deste lance de ser ou não um "filisteu". Como sabemos, grande parte do público que freqüenta os cinemas não é muito chegado em produções-cabeça, preferindo fitas mais comerciais e de melhor digestão. Este público certamente odiará A Lula e a Baleia com todas as forças. Não que importe muito, já que é visível que Noah Baumbach não fez este filme para agradar a todo mundo ou a platéias específicas. Na verdade, Baumbach criou o filme apenas para uma pessoa: ele mesmo.
Bernard (Jeff Daniels) e Joan (Laura Linney): relação de ódio... e ódio. As características de A Lula e a Baleia, que narra um período complicado da adolescência do próprio diretor, são bem peculiares. Seu fantástico roteiro, assim como o desenrolar das situações vividas pelos personagens, é quase totalmente linear, sem grandes tragédias ou mudanças muito bruscas de comportamento; os protagonistas não carregam nenhum atrativo especial - são pessoas comuns, tão comuns que beiram o banal; e a produção não preocupa-se, em momento algum, em situar o espectador ou contar uma trama com começo, meio e fim. É como se alguém ligasse uma câmera de vídeo numa casa de uma família qualquer, e desligasse depois de algumas horas, sem apresentar ninguém, sem explicar nada. Apenas captando imagens e deixando que elas falem por si só.
A família retratada aqui, no caso, vive no Brooklyn de 1986 e é formada por quatro pessoas: Bernard (Jeff Daniels), o pai; Joan (Laura Linney), a mãe; Walt (Jesse Eisenberg), o primogênito; e Frank (Owen Kline), o caçula. Bernard tenta voltar a escrever, mas não consegue impedir a chegada de um indesejado bloqueio criativo. Joan, que foi dona-de-casa por toda sua vida, decide também ingressar na literatura e, logo de cara, revela um talento nato que rende frutos muito bem-sucedidos, algo que Bernard jamais conseguiu. Walt gostaria de seguir os passos do pai - e para mostrar que tem "potencial", interpreta para quem quiser ouvir um dos maiores clássicos do Pink Floyd, como se fosse de sua autoria. Frank, de espírito rebelde, rejeita o lado "cult" da família e prefere tentar investir em sua futura carreira de tenista profissional.
Nos primeiros 15 minutos de projeção, o casal Berkman anuncia aos filhos que irá separar-se. A notícia cai como uma bomba nos garotos. Walt toma partido do pai ao descobrir que a mãe foi infiel, e Frank defende Joan, consciente de que jamais será o modelo de filho que Bernard espera (e é de certa forma rejeitado por conta disto). Walt e Frank não fazem idéia de como lidarão com sua nova rotina, já que morarão três dias e meio com o pai e três dias e meio com a mãe a cada semana...
Surgem problemas: o mais velho, mesmo namorando com uma amiga de escola, apaixona-se pela nova namorada do pai, a sensual Lili (Anna Paquin, a Vampira), que por sinal é aluna dele; já o mais novo apega-se ao namorado da mãe, o professor de tênis Ivan (William Baldwin), enfia-se na bebida e torna-se obcecado com suas recentes descobertas sexuais, masturbando-se por todos os cantos da escola e espalhando o "resultado do ato" nos livros da biblioteca e nos armários dos alunos.
Claro que Walt e Frank amadurecerão rapidamente, sofrerão uma série de golpes e aprenderão algumas coisas sobre a vida.
E por qual razão um longa tão simples como este não agradaria ao público médio, mesmo com um ótimo roteiro e atores tão bons? O caso é que A Lula e a Baleia não é tão fácil assim de digerir. A fita é recheadíssima de metáforas e piadas sutis nas entrelinhas, e as zilhões de referências a ícones da cultura pop, que vão de personalidades literárias como John Updike e J. D. Salinger até cineastas como François Truffaut, certamente passarão despercebidas. Sua narrativa é simplista, direta, parada, quase teatral, focada apenas no delicado e impetuoso desempenho de seus atores. Não há um mínimo de "ação" no sentido literal da palavra, nem mesmo na construção dos personagens. Ou seja: elementos de sobra para espantar muita gente.
Por outro lado, nada disto importa. Ser um "filme-padrão" não é nem de longe a proposta do filme - e este é o grande charme da película. A Lula e a Baleia nada mais é do que a forma que Noah Baumbach encontrou para revisitar sua juventude e exorcizar seus fantasmas. Como conseqüência, entregou um grande trabalho, muito bem dirigido, magnificamente interpretado - o elenco é um show à parte, com destaque para Jeff Daniels, perfeito, e para o brilhante estreante Owen Kline - e com uma deliciosa cara de anos 70, tanto na montagem, como no enquadramento de cenas e também na trilha sonora.
Então, A Lula e a Baleia é mesmo BOM? Bem, é uma rua de duas mãos. Você pode adorar ou odiar, mas isto está diretamente ligado ao seu, digamos, "posicionamento" com relação ao lance pregado pelo patriarca do clã Berkman. Preferências à parte, é uma produção que, assim como o sublime Hora de Voltar, tem como principal trunfo ser absolutamente sincero. E este pequeno detalhe certamente quebrará as pernas de qualquer um. Seja você filisteu ou não.