22 julho 2005

Terra dos Mortos



Nota: 9

Imagine o que aconteceria se Alfred Hitchcock estivesse vivo e resolvesse lançar um novo filme de suspense depois de duas décadas sem produzir nada no gênero. Seria uma sensação, não?

A suposição é apenas para ilustrar a dimensão do que os fãs de George A. Romero, cineasta genial, estão sentindo com o lançamento de Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005). Aos 65 anos de idade, o diretor decidiu deixar sua aposentadoria de lado e voltar ao gênero que ajudou a criar: os filmes de zumbis.

Mortos-vivos, claro, sempre existiram de uma forma ou de outra na literatura e no cinema, mas foi Romero o criador da mitologia e das regras do universo dessas criaturas no seminal A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968), obra-prima em preto e branco, e suas continuações O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978) e O Dia dos Mortos (Day of the dead, 1985).

Trinta e sete anos depois que a primeira mão pútrida brotou da terra, os mortos-vivos ainda procuram carne humana fresca, movem-se lentamente e precisam ter seus cérebros avariados para encontrarem seu fim. Cineastas competentes até buscaram maneiras de revigorar o gênero, de olho nas geração videogame de hoje em dia, e encontraram sucesso com os mortos rapidinhos de Extermínio e Madrugada dos Mortos. No entanto, a modificação foi meramente rítmica. A tarefa de colocar as criaturas no século 21 coube novamente ao mestre Romero.

Em Terra dos Mortos, o cineasta apresenta ao mundo a primeira evolução verdadeira dos zumbis. Os fétidos cambaleantes agora são capazes de raciocínios simples e do uso de ferramentas, tornando-se uma ameaça muito maior aos humanos sobreviventes. Liderados pelo morto-vivo chamado Grandão (Eugene Clark), os mortos começam a entender sua força e buscar vingança contra os humanos opressores.

Mas o grande mérito do filme é explorar novamente os problemas da sociedade moderna utilizando inteligentíssimas situações metafóricas. Na história, os mortos estão espalhados pelo planeta e os humanos sobreviventes se mantêm protegidos em cidades-fortaleza. Essa organização feudal remonta à Idade Média, mas apresenta uma perturbadora - e moderna - constatação. Os poderosos aristocratas vivem em torres de vidro imponentes, cercados de exércitos particulares e vivendo em ostentação e negação. Enquanto isso, os indesejados, os desafortunados, ocupam o perímetro de tais construções e fazem o trabalho sujo: varrem as cidades dominadas pelos zumbis a bordo de um caminhão blindado em busca de mantimentos para abastecer as fortalezas.

A estrutura na qual os abastados vivem, liderados pelo poderoso Kaufman (Dennis Hopper, mistura de George W. Bush com Donald Trump), imediatamente lembra a crítica ao consumismo de O Despertar dos Mortos. No entanto, apesar desse elemento também estar presente no novo filme, aqui é a desigualdade de classes e as relações imperialistas que estão no centro do debate. Há os ricos, a classe operária e os zumbis terceiro-mundistas, sendo que os últimos assistem impassíveis ao extermínio de seus irmãos enquanto os recursos de suas cidades são extraídos. Deu pra entender aonde Romero - o brilhante Romero - quer chegar?

Graças ao orçamento de 15 milhões de dólares - merreca para Hollywood, mas uma fortuna incalculável se comparada aos demais filmes do diretor - Romero consegue aqui também criar seu filme mais elaborado até hoje. A escala da produção é grandiosa e os cenários são imponentes, mas a atmosfera continua exatamente a mesma dos antológicos trabalhos prévios do cineasta. A maquiagem e os efeitos especiais, criados por Greg Nicotero e Howard Berger, também ganham em realismo, continuando o trabalho de Tom Savini - o criador dos cadáveres ambulantes de Despertar dos Mortos e Dia dos Mortos. Aliás, tanto Savini quanto Nicotero fazem pontas no filme como zumbis. Além deles, Simon Pegg e Edgar Wright, astro e diretor da comédia-homenagem Todo Mundo Quase Morto, também aparecem devidamente apodrecidos.

O dinheiro também garantiu atores competentes para o velho diretor. Simon Baker (O Chamado 2) vive o corajoso Riley, líder dos mercenários que suprem a cidade de Fidler´s Green; John Leguizamo (Império, Moulin Rouge) interpreta o latino ambicioso Cholo, segundo em comando; Asia Argento (Triplo X), filha do lendário mestre do horror Dario Argento, faz uma prostituta com treinamento em combate que se vê no meio de uma disputa de poder.

Enfim, mais uma vez George A. Romero apresenta uma produção que reúne bons sustos com uma história relevante para os dias atuais. Vinte anos depois, ele prova que continua tão contestador quanto no início de sua carreira e que ainda tem muito a dizer e mostrar. De fato, já expressou até o desejo de continuar sua cinessérie... e desta vez a guerra deve ser o mote. Tomara apenas que não leve mais vinte anos.

O mundo definitivamente precisa de mais Romeros.

Exílios



Nota: 7

Todo filme-de-estrada que se preze funciona como uma jornada de auto-conhecimento. E começa, de preferência, ilustrando o que o viajante deixará para trás caso decida mesmo entrar nesse rito de instrospecção mundo afora.

No caso de Exílios (Exils, 2004), essa introdução é curta, não tem mais do que dez minutos - afinal, nada prende Zano (Romain Duris, de Albergue espanhol) e Naïma (Lubna Azabal) a Paris. Os dois são como estrangeiros por lá: descendentes de argelinos, cresceram na França quando seus pais fugiram da ex-colônia francesa durante a Guerra da Argélia (1954-1962). Agora Zano e Naïma resolvem, depois de uma transa e uma cerveja à tarde, viajar até o país natal de que mal se lembram.

Na verdade, há um elemento aparentemente banal que Zano deixará para trás: o violino que foi de seu pai. A cena em que ele quebra um muro e cimenta o instrumento entre o vão de tijolos é emblemática do que esperar do filme.

O roteiro escolhido nessa viagem meio cigana, meio mochileira, também diz muito das intenções do cineasta franco-argelino Tony Gatlif, que com este longa ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes em 2004. A trilha - sonora e geográfica - segue por Espanha e Marrocos, onde a cultura étnica se impregna de peculiaridades musicais. Zano e Naïma carregam somente algum dinheiro, alguma roupa e fones de ouvido. Taí outra dica do que vem a seguir: os dois escutam música eletrônica por onde andam, mas os sons sintetizados refletem a falta completa de raízes dos dois.

Não é a toa que o casal se deslumbre a cada parada, seja com o bailado apaixonado do flamenco ou com o ritual hipnotizante dos tambores árabes. Eles estão à procura de se identificar com algo, e não há muita coisa mais genuína numa sociedade do que o ritual da dança. Muitos dos números desse quase-musical foram extraídos do cancioneiro mediterrâneo, enquanto outros foram compostos pelo próprio diretor.

Entre uma música e outra, Zano e Naïma experimentam a regressão. Com o pé na estrada, à medida que se distanciam de Paris e conhecem o desconhecido, entram numa espécie de purificação. Banham-se numa fonte, entregam-se à chuva... A certa altura, precisam trabalhar num pomar para conseguir algum dinheiro. Não é difícil prever que eles transarão sob a sombra da árvore e comerão do cacho que deveriam colher: é o primitivismo no auge, chegando até Adão, Eva e o fruto proibido do Éden.

Acontece que a busca pela essência interior, por um mínimo sentido de pátria, não é a mesma dele e dela, pois suas histórias são distintas. Não sabíamos disso naquela breve introdução, mas a trama cuida de explicar aos poucos. Zano guarda fotografias de seu pai. Na verdade, procura a Argélia para reanimar sua memória. Naïma não. Vai à terra natal justamente para tentar expurgar suas lembranças. Por ser mais dramática, a jornada feminina mostrada por Gatlif sai muito melhor. A outra, porém, sofre com as limitações do ator Duris e não vai muito além do turismo musical.

Em Boa Companhia



Nota: 6

Nesta época de grandes conglomerados sendo comprados, vendidos e fundidos, Em Boa Companhia (In Good Company, 2004) se destaca por mostrar de forma "bonitinha" o que acontece nos bastidores destas empresas.

Até a chegada de Carter Duryea (Topher Grace), Dan Foreman (Dennis Quaid) era o que se poderia chamar de homem perfeito. Cinquentão charmoso, ele é um pai de família carinhoso, preocupado, trabalhador e que no escritório é bom chefe, trata bem todas as pessoas, é leal e realmente se preocupa e gosta do que o que faz.

Porém, quando a revista da qual ele é o vice-presidente da área de vendas é comprada pela Globecom, Dan não apenas perderá seu posto, mas passará a ser comandado por Carter, um moleque 25 anos mais novo que ele. Além de ser totalmente inexperiente neste ramo de negócios, Carter está passando por uma fase complicada na sua vida pessoal. Cada vez mais solitário, tudo o que lhe restará é o trabalho.

As atuações, apesar de focadas principalmente na dupla Quaid-Grace, parecem bastante naturais, sem grandes esforços para os atores. Méritos ao diretor e roteirista Paul Weitz, parceiro do irmão Chris Weitz em Um Grande Garoto e American Pie. A trama desenvolvida mira e acerta no relacionamento humano e talvez por isso o filme venha sendo tão elogiado onde é exibido.

Se logo na primeira cena, quando está vendendo celulares em formato de dinossauros, Topher não passa a imagem de um engravatado bem-sucedido, não demora para esquecermos um pouco o nerd magricelo que ele interpretava em That 70's Show. Sua ligação com Alex (Scarlett Johanson) é instantânea e os dois realmente fazem um bom par juntos. No trabalho ele começa passando confiança aos funcionários com toda aquela papagaiada de sinergia que é bastante repetida em empresas pontocom e livros de auto-ajuda. Mas com os freqëentes cortes de custos e pressão para aumentar receita, Carter sabe que ainda não tem como bater Dan e por isso se apóia nele.

Com esta bela atuação, Topher, que vinha fazendo pequenos papéis em filmes como Traffic, Onze Homens e Um Segredo, confirma que sua saída da série cômica foi acertada. Mas tudo depende dos papéis que escolher... caso contrário, poderá ter o mesmo destino de seu ex-colega Ashton Kutcher, que estrela inúmeras comédias-românticas idênticas por ano.

Se a idéia está bem contextualizada e as atuações são boas, então qual o problema no filme? Há escondido por ali um conto de fadas que pode não convencer a todos. A lição de moral e o final feliz são fantasiosos demais. Pode até ser inspirador para alguns, mas é incondizente com o tom mais realista que o longa vinha trazendo até então. Por isso, manere nas suas expectativas. Em Boa Companhia chega um pouco "hypado". Ele não é um Agente da Estação, muito menos Encontros e Desencontros, mas com certeza merece uma boa olhada.

O Diabo a Quatro



Nota: 7


"O diabo a quatro", expressão que denota grande balbúrdia, surgiu no teatro medieval. Em pequenos qui pro quos, um ou dois atores vestidos de diabos entravam como elementos cênicos de comédia. Quando os autores da época precisavam de grande barulho, confusões de porte, colocavam quatro deles em cena.

O quarteto de protagonistas de O Diabo a Quatro (2005) se encaixa nesse perfil. O surfista folgado Paulo Roberto (Marcelo Faria) briga com o cafetão Tim Mais (Márcio Libar) pelo amor da cândida garota-de-programa Mistery (Maria Flor), mas ela só quer mesmo ajudar o carente e sonhador Waldick (Netinho Alves), garoto mineiro sozinho no Rio de Janeiro, a vencer na vida.

Na verdade, esse é o clímax da história. Assim, começando pelo final para mostrar como a situação degringolou a esse ponto, como um imenso flashback, a carioca Alice de Andrade monta seu filme de estréia. Aflora aqui sua formação de atriz do Circo Voador dos anos 80, mais do que sua experiência como assistente de direção. Alice, diz, quer abordar assuntos sérios, mas sempre com humor, dar ao público algo aparentemente inofensivo, mas que suscitasse o pensamento. E não há como fugir da temática social. Afinal, no Rio de Janeiro de hoje - para falar de um jeito diferente - o que não faltam são diabos a milhares.

E o roteiro não se esquiva de mostrar o tráfico de drogas, a violência e a ilusão da fama. Antes do quiproquó final, Paulo Roberto, filho de um candidato a senador, vivia na praia com China (Jonathan Haagensen), filho da sua empregada e seu fornecedor de maconha. Mal dava bola para Rita de Cássia - nome verdadeiro de Mistery, antes de aderir à agência de Tim -, babá comportadíssima do prédio da frente. Waldick, por sua vez, mal chegou ao Rio e já foi assaltado. Ficou pra depois seu sonho de conhecer Fúlvio Fontes (Evandro Mesquita), midas dos programas de auditório. Por enquanto, o garoto se contenta em virar camelô.

A certa altura do filme, a mãe de Paulo Roberto diz que a culpada de tudo é a libido. Bem, de quase tudo. O diabo a quatro sugere, tentando ser um Amarelo manga light, que desvios sociais nascem da luxúria. Mas basta esse seu modesto panorama por esferas várias na rotina de Copacabana para ilustrar que o problema é muito mais complexo.

A idéia da diretora Alice é abordar assuntos pertinentes de maneira bem humorada. Isso é possível, sem dúvida, mas aqui o lado farsesco e picaresco da trama frequentemente anula os momentos de seriedade. As más atuações da maioria dos atores e a maneira forçada com que desenvolvem-se algumas cenas, não prejudicam tanto o filme, mas a diretora deveria ter trabalhado melhor os atores. A falta de veracidade em algumas cenas, devido a essas más atuações, acaba incomodando no início, mas nos acostumamos com isso. O desfecho instigante do filme - algo como uma convocação ao primitivismo, um olhar para dentro de si mesmo -, intimista, vagaroso, acontece quando todo o teatro dos diabos já se esgotou. Daí, sim, a reflexão acontece, ainda que possa ser um pouco tarde.

Camelos Também Choram



Nota: 7,5

Indicado ao Oscar 2005 de melhor documentário, Camelos Também Choram (2003) tem cara de produto Discovery Channel. Pelo menos no comecinho.

A imensidão de deserto de Gobi, no Sul da Mongólia, próximo à China, parece bem maior na perspectiva de uma família de pastores nômades. Eles vivem em um par de tendas, subsistem com a criação de cabras e camelos. A câmera registra hábitos de rotina: o artesanato das mulheres, a ajuda das crianças no trato com os bichos, a labuta rudimentar, o jantar. Chega a época da procriação dos camelos. A idéia dos mongóis é não interferir no processo natural. Mas uma fêmea tem dificuldade em parir. Atravessa a madrugada, leva metade de um dia - e com a ajuda das pessoas dá à luz um filhote albino, que ela renega.

Dirigido pelo mongol Byambasuren Davaa e pelo florentino Luigi Falorni, com co-produção alemã e mongol, o filme começa então a ganhar características distintas do gênero documentário. Na verdade, configura-se cada vez mais como um docudrama - o registro de uma realidade com estrutura narrativa dramática. Estrutura essa, a saber: apresentação do conflito, desenvolvimento do embate e conclusão.

E o conflito aqui é justamente a recusa da mãe em aceitar a cria, branquinha, frágil, diferente de qualquer outro camelo em todo o Gobi. Quando o filhote se aproxima, ela foge ou o coiceia. E sem mamar, mesmo tendo o leite ordenhado disponível, ele morrerá. O desenvolvimento desse embate trata justamente dos esforços da família em fazer com que a mãe se renda: amarrar as pernas, forçar a aproximação... Uma hora só resta como último recurso o ritualismo. Cantar, dançar, tocar instrumentos e crer que a sabedoria ancestral será capaz de superar a ciência. Não convém falar da conclusão, mas vale dizer que dela sairão as tais lágrimas do título.

Portanto, o que antes se restringia ao limite observacional se transforma em uma fábula folclórica, com começo-meio-fim. Existem outras peculiaridades do filme que, aos poucos, o tornam um conto quase ficcional. Antes os habitantes do deserto eram objetos de estudo, mas aos poucos se transformam, como os camelos, em personagens - no sentido mais puro do termo, o de assumir uma persona, uma personalidade em função da narrativa. Não é por acaso que nos letreiros finais os nomes sejam citados como um elenco.

A peça principal dessa trama é o garoto mais jovem da família. O gorro Adidas que não sai da sua cabeça é o único símbolo globalizado em um mundo estritamente tribal. Junto com o irmãos mais velho, ele é encarregado de rumar à cidade mais próxima para trazer o músico capaz de encantar o camelo. Lá vão os dois, apertados entre corcovas. E quando chegam no vilarejo o deslumbre do pequeno é total. Todos andam de bicicleta. Vestem roupas diferentes. Um desenho animado na televisão é especialmente magnético. Quando retornam à família, ao deserto, ao nada em lugar nenhum, o menino pede que os pais comprem uma televisão. O avô rejeita o que ele chama de "imagens de vidro".

No fundo, é disto que trata Camelos também choram: o choque do diferente, da mudança. De certo modo, o filhote renegado pela mãe é como uma modernidade na qual os nômades criadores de animais se recusam a ingressar - por medo, principalmente, de perder sua própria identidade.

Acontece - e esta é a mensagem fundamental desde pequeno grande filme - que o novo não necessariamente substitui o velho, que o diferente não anula os iguais. Há lugar aqui para mágicas e lágrimas e também tem muito espaço para pilhas e parabólicas. Vale muito conferir.

Caiu do Céu



Nota: 5,5

Com uma carreira calcada no suspense, terror e humor negro, o inglês Danny Boyle surpreende ao apresentar em Caiu do Céu (Millions, 2004) um sensível filme-família. Mas não espere algo nos padrões da Walt Disney, empresa especialista nesse tipo de produção. Apesar de tratar-se de uma fábula, o longa não nega o passado do cineasta de Trainspotting, Extermínio, Cova Rasa e A Praia.

Boyle continua tão inquieto como sempre. Sua câmera não pára, sempre buscando ângulos inusitados ou coloridas seqüências impactantes. Seus personagens também beiram o burlesco, com santos que fumam baseados e adultos que parecem totalmente desconectados da realidade o tempo todo. De fato, o único que parece normal é justamente o mais estranho. O pequeno Damian (Alexander Etel), aos nove anos de idade, vê mártires cristãos e conhece todos por nome, data de nascimento e de morte, da mesma forma que seus coleguinhas de escola entendem dos astros do esporte.

A história começa quando Damian, seu irmão de 11 anos Anthony (Lewis McGibbon) e o pai (o excelente James Nesbitt de Domingo sangrento) se mudam para um condomínio de casas em Liverpool. A família tenta se distanciar das lembranças já que a mãe morreu recentemente. Curiosamente, as crianças não parecem muito afetadas pela perda. Encaram com naturalidade sua situação e até usufruem dela com enorme cara-de-pau quando conveniente.

A vida dos meninos muda radicalmente mesmo quando Damian é atingido por uma enorme sacola cheia de dinheiro enquanto brincava, ao lado de uma ferrovia, dentro de uma caixa de papelão. Ao contar para o irmão sobre a descoberta - que ele acredita ser um presente divino - a dupla começa a imaginar o que fazer com a vultuosa soma. Mas eles têm que se apressar. O pound inglês deixará de existir em poucos dias, dando lugar ao Euro da comunidade européia. Ver os dois meninos - ambos excepcionalmente bem interpretados - discutindo sobre o que fazer com o dinheiro, enquanto o malandro Anthony cria esquemas mirabolantes para trocá-lo, é metade da diversão do filme.

Sem grandes pretensões, Caiu do Céu é um filme agradável e consegue prender nossa atenção naqueles minutos. Não espere muita coisa, não espere um novo filme de Boyle, mas vá ao cinema procurando diversão. Trata de dois temas principais: como o dinheiro corrompe e a imaginação pode salvá-lo. A premissa é batidíssima, mas nas mãos de Boyle e do roteirista Frank Cottrell Boyce (A Festa Nunca Termina, Código 46) funciona bem.

Uma fábula inteligente, com visual estiloso e relevante mensagem positiva. No atual mercado infanto-juvenil (e enfie nesse saco toda a cinematografia nacional de Xuxas, Elianas, etc), este filme sim é algo que caiu do céu.

Casa de Areia



Nota: 8,5

Em Redentor (2004) o diretor Cláudio Torres escalou sua irmã para interpretar a jovem Isaura, papel que no decorrer do filme seria vivido também pela sua mãe, quando a personagem está mais velha. Este nepotismo todo poderia passar em branco se a irmã de Cláudio não fosse Fernanda Torres e a mãe dos dois, Fernanda Montenegro. A escolha das duas é correta, afinal além de ótimas atrizes, as semelhanças físicas são inevitáveis, o que sempre ajuda na hora de contar uma história. Pelas características acima, talento e falta de espaço no mercado brasileiro, as duas já haviam atuado juntas em novelas, minisséries e até no primeiro filme de Andrucha Waddington, Gêmeas (1999).

Pois eis que Andrucha (Eu, Tu, Eles) - marido da Fernanda filha - escolheu as duas para protagonizar seu novo projeto, Casa de Areia, antes mesmo de ter um roteiro pronto.A idéia veio do veterano produtor Luiz Carlos Barreto, que viu uma foto de uma casa completamente tomada por areia e convidou o diretor a fazer um filme baseado em uma mulher que teria morado naquele local e lutou por muito tempo contra as dunas. Quem leu este argumento e viu o trailer pode ter imaginado que o longa é chatíssimo, lento, com muitas paisagens e poucos diálogos. Um filme iraniano feito nas dunas do Maranhão.

Tirando todos os adjetivos negativos da frase acima, Casa de Areia é isso mesmo. Méritos para o roteiro de Elena Soárez, que conseguiu tirar da aspereza da areia uma história que consegue envolver os espectadores. Veja bem, não estou falando de uma trama rasa, do drama de mãe e filha que chegam ao deserto e tem de aprender a se virar. No filme, as duas Fernandas se alternam nos papéis de mãe e filha, colocando na tela três gerações. Fernanda Montenegro, que no começo da história, em 1910, é D. Maria, interpreta também sua filha Áurea em 1942 e a sua neta, também chamada Maria, numa cena ambientada em 1969. Confuso? Pois não precisa se preocupar, a história é muito bem contada e como estamos falando de ótimas atrizes (ganhadoras de Urso de Ouro e Palma de Ouro), fica muito fácil identificar as mudanças de interpretação de personagem para personagem.

No filme, as passagens de tempo vêm do céu. Quando a caravana liderada por Vasco de Sá (Ruy Guerra) chega no meio do nada e pára, sua esposa Áurea (Torres) não demora para querer voltar para a cidade e levar junto sua mãe, D. Maria (Montenegro). Não tarda também para as dunas ficarem ainda mais desérticas e Áurea, grávida, ter apenas a mãe e a futura filha como companhia. Nas andanças pela região encontram Massu (Seu Jorge) e uma vila que um dia foi um quilombo. Os novos vizinhos vão ajudá-las na tarefa de sobreviver no meio da areia. Com exceção do mercador Chico (Emiliano Queiroz), o próximo contato com a civilização só vai acontecer nove anos depois, quando Áurea encontra uma expedição de cientistas ingleses que estava no nordeste brasileiro para fotografar o céu e assim ajudar a provar a teoria da relatividade de Einstein. Deste encontro renasce a vontade de sair dali. Olhando para cima, vemos depois aviões, que trazem novidades sobre o que aconteceu não só com as vidas de D. Maria, Áurea e Maria, mas também no mundo, que estava em meio à Segunda Guerra Mundial. O terceiro grande evento, talvez o mais belo, tem como ponto de referência a chegada do homem à Lua.

Tão monocromático quanto o satélite natural é o cenário, já que como bem lembra Áurea: "o que não é areia é céu". Mas esta ausência de outras cores não atrapalha. Para falar a verdade, se fosse diferente provavelmente não funcionaria. O mesmo pode-se dizer da inexistência quase que total de músicas. O que mais se ouve são barulhos. Até mesmo os diálogos são econômicos, deixando a história muito mais visual. E como funciona bem!

Em épocas em que comédias românticas estreladas por atores globais e "atrizes" de propaganda de cerveja surgem aos montes, é bom ver filmes mais elaborados. Não me entenda mal. Cada um tem o seu valor na tão comentada retomada do cinema brasileiro. Um chama o povão às salas de cinema e o diverte. O outro se aproveita deste sucesso de público para captar recursos para o meio e desenvolver projetos mais densos. Ajuda muito também contar com talentos de Andruchas e Fernandas. A mãe, aliás, deve conseguir realizar a tal viagem na velocidade da luz comentada no filme, pois esbanja na telona uma jovialidade única.

09 julho 2005

A Queda! As Últimas Horas de Hitler



Nota: 8,5

Dizem por aí, que A queda! As Últimas Horas de Hitler (Der Untergang, 2004) é um filme que humaniza o ditador alemão. Logo na primeira cena, uma fila de jovens chega ao Quartel General de Hitler, conhecido como Toca do Lobo, em Rastenburg, na Prússia Oriental. Na narração em "off", tirada do documentário Eu fui a secretária de Hitler (2002), Traudl Junge conta que estava ali para uma entrevista de emprego para secretária pessoal do Führer e que se motivava mais pela curiosidade de conhecê-lo do que por qualquer razão política. A jovem de Munique, que à época tinha seus 22 anos, é escolhida e vai para a sala fazer um teste. Nervosa, não consegue datilografar uma só palavra corretamente. Ao perceber que algo estava errado, Adolf sugere "vamos tentar mais uma vez".

Este é um dos famigerados lados humanos do ditador alemão mostrados no longa-metragem de Oliver Hirschbiegel (A Experiência). Mas os bons tratos com as figuras mais próximas, inclua na lista Eva Braun, os Goebbels e a cadela pastor-alemão Blondie, se alternam com ataques furiosos contra seus generais, que o estão fazendo perder a guerra. A cegueira de quem não consegue, ou não quer, ver a iminente derrota também não deixa de ser outra característica bem humana, a vaidade. Assim, fica difícil criticar o filme por "humanizar" Hitler, afinal, apesar de todas as atrocidades cometidas pelo regime nazista, seu líder era um ser humano, que como qualquer pessoa se alimentava, se emocionava, e, como sabemos, errava.

O foco principal do filme são os últimos dias antes da queda de Berlim para os russos. Mais especificamente entre o 56º aniversário de Hitler, em 20 de abril de 1945, até seu suicídio, no dia 30 do mesmo mês. Já confinado em um bunker, o líder nazista demonstra sinais de fadiga e nervosismo pela iminente derrota. E aqui o trabalho de Bruno Ganz se destaca. O ótima interpretação do ator suíço ajuda a nos fazer esquecer que embora o filme seja baseado em fatos e depoimentos reais, é uma obra ficcional.

Assim, o longa adquire ares de documentário. A diferença é que em vez de ter na tela um entrevistado falando para a câmera, temos personagens que foram reais fazendo pequenas confissões, como Eva Braun (Juliane Köhler) dizendo que costuma chutar a cadela do Führer quando ele não está por perto. Há também um distanciamento da ficção pela quase inexistência de trilha sonora. Em uma das cenas mais dramáticas, Magda Goebbels (Corinna Harfouch) dá adeus a seus filhos ao som do estourar das cápsulas de cianureto.

Em paralelo ao que acontecia neste mundo subterrâneo que era o refúgio de Hitler, o longa também mostra o que acontecia na superfície. Crianças defendiam um líder que não queria ver ninguém vivo ao final da guerra, grupos de militares matavam civis que se recusavam a pegar as armas e enfrentar o exército vermelho, e orgias com os já haviam jogado a toalha aconteciam em casarões berlinenses. Tais fatos não estão na tela para acrescentar algo à história pessoal de Hitler. Eles são parte de algo maior, a História.

Respondendo aos que simplificam A Queda! dizendo que é um filme que humaniza um dos maiores assassinos que já pisou na Terra, vale dizer que o longa é muito mais um retrato de Berlim naqueles últimos dias de domínio nazista. Algo feito para quem gosta mais dos meios do que dos fins. E neste caso, sabemos desde o começo que, mesmo com a queda do nazismo, não é o que pode ser chamado de final feliz.

A Vida Secreta dos Dentistas



Nota: 8

O que pensam os dentistas enquanto estão mergulhados entre dentes e brocas aflitivas? Os dentistas são seres essencialmente perversos? Estas e outras perguntas podem ser relacionadas quando nos deparamos com títulos como A Vida Secreta dos Dentistas. E, antes que alguém formule críticas a esses questionamentos, é bom deixar claro que, desde o começo, o filme de Alan Rudolph confirma: os dentistas também são seres humanos e levam uma vida convencional.

Esse é o caso de David Hurst (Campbell Scott), o personagem central deste filme, um dentista casado com uma colega de trabalho, com quem teve três lindas filhas. A situação deles também é extremamente cômoda, já que vivem numa ampla casa, possuem um consultório próprio e parecem viver felizes numa daquelas cidades americanas em que não parece haver qualquer tipo de problema.

O que incomoda David, no entanto, é a deterioração de sua relação com a esposa, quando se aproxima uma crise matrimonial. Mesmo assim, com muita dissimulação, acaba apegando-se à idéia de que, como lutou tanto para chegar à posição que possui (oito anos na universidade, empréstimos bancários), o melhor é não fazer alarde e manter tudo como está. Ou seja, comodismo e inércia são as bases deste suposto sólido casamento.

O espectador passa a conhecer sua história por meio de seus pensamentos (em off) que pontuam suas opiniões sobre a profissão e a semelhança da arcada dentária com casamentos. Tudo beirando o humor melodramático. Mesmo os flashbacks de sua vida estudantil e sua juventude ao lado de sua futura mulher mostram um sujeito sereno, que nada faz além do essencial.

Tudo isso, claro, até ver sua mulher (em uma cena muito ambígua) entre beijos e abraços com outro homem. Este é o estopim para a lenta transformação do personagem, que passa a ter alucinações sobre traições de sua esposa. Para apimentar ainda mais seus delírios, coloca-se na história uma espécie de alter ego do dentista (um tal de Slater, interpretado pelo ator Denis Leary), um paciente bem macho, mal-educado e intrometido, que passa a fazer parte das fantasias de David. Slater assume o papel de uma espécie de conselheiro matrimonial imaginário de David. Seus palpites não são nada ortodoxos. É o tal do "diabinho" sobre o ombro do protagonista, numa representação pictórica conhecida.


Será este novo personagem que reprovará as fraquezas de David, dando conselhos bastante ousados (como "mate sua mulher") e aplaudindo as grosserias que ele diz a suas filhas e mulher. Uma esquizofrenia light muito usada em outros filmes, incluindo-se aí seriados de TV.

Poderia ousar mais, mas o diretor entra na vala comum na maneira em que retrata o mar de lama de uma sociedade neurótica e pútrida. Peca por seus exageros indecifráveis, como uma incontinente regurgitação coletiva, que tem efeito muito mais estilístico do que ideológico. Seria a solução para expiar a culpa através da boca? Rudolph mostra a doença, isso é fato. Mas trata de seus sintomas de modo anestésico, dando a suas crias com mau-hálito apenas um pouquinho de flúor.

06 julho 2005

O Lobo



Nota: 7,5

Biografias cinematográficas quase sempre tendem a ser parciais. Ainda por cima quando contadas pelo ponto de vista do biografado. O Lobo (El Lobo, 2004) é mais um exemplo nas diversas produções que preferem romancear a se ater aos fatos protagonizados por todos os envolvidos. Até porque já aprendemos que em história não existe verdade absoluta. Só por meio dos depoimentos de todos é que se poderia chegar a alguma conclusão. Isso não quer dizer que o filme seja ruim, mas como testemunho histórico fica aquém da realidade. Sua maior qualidade é presentear o público com diversão carregada no suspense e drama psicológico.

A narrativa é inspirada na vida de Mikel Lejarza, o agente secreto espanhol, que na década de 70, infiltrou-se no movimento separatista ETA. Seu codinome era o Lobo. Ele foi responsável pela queda de um quarto dos ativistas terroristas da organização, representando 150 colaboradores – incluindo alguns membros das forças especiais e algumas figuras do grupo. A operação Lobo é a mais bem sucedida já feita pela polícia espanhola contra o ETA. Como conseqüência disso, a "organização terrorista" condenou Lejarza à morte cobrindo todo o país basco com cartazes de busca pelo traidor. E é dessa maneira que vemos o grupo separatista no filme, como terroristas insensíveis, que largam os companheiros na mão, os deduram e os matam. Já na polícia, encontramos alguns policiais bonzinhos, democráticos, que buscam um mundo melhor. A mesma maneira que mostram o Lobo no filme.

Nos anos 80, o jornalista Melchor Miralles, produtor executivo do filme, encontrou Lobo e o convenceu a contar a sua história. Foi baseado nesse depoimento que Antonio Onetti escreveu o roteiro. Como Onetti acaba retratando os fatos só pela ótica de Mikel Lejarza, ficamos com a impressão que Lejarza é uma vítima do sistema. O diretor não defende a ditadura imposta por Franco, mas mostra que existem "forças democráticas" dentro do governo e que as coisas podem melhorar. E a saída não é pelo "terrorismo", óbvio. Meio parecido com a mensagem anti-revolucionário e contestadora do filme Bom Dia, Noite.

Ele não concorda com a ditadura de Franco, mas ao mesmo tempo não partilha das idéias do ETA, em que a violência é a única forma de se construir uma nação basca. Ao ser pego pela polícia numa das ações do grupo separatista, torna-se um informante para a polícia secreta. Nesse momento o espectador tem a clara impressão que Lejarza é um peão nas mãos de ambos os lados do conflito. Ele precisa tomar cuidado para não cair nas ciladas de interesses dos chefes das duas organizações. Fica difícil engolir que um simples trabalhador possa arquitetar tantas manobras de dissimulação.

O diretor Miguel Courtois constrói o típico herói romântico, consciente de que fazer a coisa certa está muito acima do seu bem estar. Lejarza perde a sua família, seu trabalho e seus amigos. Em suma, perde a sua própria vida. Acompanhando esse raciocínio, o diretor ainda comete uma gafe ao colocar a canção "Highwaystar", clássico da banda de hard rock Deep Purple, no momento em que Lejarza descobre que não pode mais confiar em ninguém. A música ainda volta na conclusão da mesma cena, no momento da perseguição. Destoa das imagens e cria uma alusão ao cinema espetáculo. Esses jogos cênicos despertam curiosidades, mas corrompem a idéia embrionária do projeto e a veracidade acaba sendo contaminada.

O filme concorreu ao Goya 2005, uma espécie de Oscar espanhol, para melhor ator, atriz coadjuvante, produção, edição e efeitos especiais. Saiu vencedor nas duas últimas categorias, confirmando que sua proposta de entretenimento foi alcançada. Espectadores famintos por informação acurada, porém, vão se sentir desamparados. Assim como sairão desapontados também pessoas mais críticas, como eu, que vêem uma esperança no mundo, com grupos que questionam o estabelecido. O ETA tem uma grande história, e filmes como esse vem para denegrir a imagem do grupo. Mostrando-os como amadores e despreparadores.

05 julho 2005

Inconscientes



Nota: 8

Inconscientes parte da idéia de que, se os conceitos freudianos se disseminaram tanto pelo Ocidente, ao ponto de estarem hoje banalizados, e que é hora de devolvê-los às suas origens como um arremedo deles mesmos. Voltemos ao impacto de Freud, e as neuroses por ele causadas. Ele é efeito e causa de uma crise que começou naquele ano e se alastrou até os dias atuais. A psicanálise quer saber de tudo. Um filme em que Freud é - além de personagem de carne e osso - um grande clichê, Oristrell tenta retratar a psique de uma sociedade que originou nossas atuais neuroses.

Alma (Leonor Watling) é a mulher do psicanalista Leon (Alex Brendemühl), que enlouqueceu, de modo quixotesco, após passar uma temporada com Freud e se entupir de suas teorias, resolvendo, então, sumir do mapa. Ela parte atrás dele com uma única pista, uma tese que o médico deixou sobre quatro mulheres histéricas, e um único aliado, o cunhado Salvador (Luis Tosar). Alma é uma mulher moderna e também leitora dos escritos do austríaco, enquanto Salvador é um tipo conservador que acredita que emoções são fenômenos endócrinos. Com idéias opostas sobre sexo e amor, os dois mergulham nos casos das mulheres estudadas por Leon, tentando encontrar pistas de seu paradeiro.

A primeira é uma atriz de filmes sadomasoquistas, a segunda, uma paranóica que acha que o marido mandou interná-la num hospício. Mas as coisas começam a se enroscar mesmo quando descobrem que a terceira é a irmã de Alma e mulher de Salvador, que, motivada pela "inveja do pênis" do marido - que é mesmo gigantesco - começa a freqüentar festas secretas de transformistas. Em uma clara alusão a De Olhos Bem Fechados.
Já o quarto caso, que se refere ao mito do "totem e tabu", acaba por embrulhar de vez todos os envolvidos e por provocar uma mirabolante tentativa de assassinato do próprio Freud, que está, então, de passagem por Barcelona. Complexo de édipo, incesto, inveja do pênis, tem um pouquinho de idéias freudianas em cada cena.

A estrutura de folhetim é "didática" ao ilustrar os conceitos freudianos na forma de divertidos esquetes. Mas o principal êxito está em fazer rir de uma modernidade não muito distante da nossa, fazendo cair máscaras atemporais, com ou sem a ajuda de Freud.

Madagascar



Nota: 6,5

Quem já foi pelo menos uma vez a um zoológico pode ter ficado meio decepcionado pela morosidade de alguns animais, principalmente os grandes felinos, como leões, tigres e leopardos, que ou estavam dormindo em suas jaulas, ou simplesmente parados. A vida do zôo é bem diferente do que se vê no Discovery Channel. Fazendo a comparação com um jogo de futebol, podemos dizer que o canal de TV mostra apenas os "melhores momentos", ou você acha que os grandes predadores ficam o tempo todo caçando zebras e gnus? Claro que não! Eles também têm de descansar, fazer a "siesta" depois de um banquete. Quando estão em cativeiro, com a comida chegando fresquinha à sua boca, tudo o que eles fazem é descansar. Quer vida melhor do que essa?

O leão Alex (dublado na versão original por Ben Stiller e na versão brasileira por Alexandre Moreno), principal atração do zôo do Central Park de Nova York, está muito feliz com esta vida fácil. Além de ganhar suculentos bifões, ele tem a sua cama/caverna aquecida, seus fãs e seus amigos, a zebra Marty (Chris Rock/Felipe Grinnan), a girafa Melman (David Schwimmer/Ricardo Juarez) e a hipopótama Glória (Jada Pinkett Smith/Heloísa Perissé). Porém, na festa do décimo aniversário de Marty, a zebra recebe uma visita por engano de um grupo de pingüins que está tramando fugir dali. Marty entra na "crise da meia-idade", afinal ele não viverá muito mais que duas décadas e tudo o que ele conhece da natureza é um painel que fica na frente da sua jaula. Decidido a escapar também, ele conta para os amigos esperando que eles se juntem ao time. Porém, os já urbanizados animais o desencorajam e imaginam que conseguiram acalmar o monocromático animal. Para não estragar as surpresas, vale dizer apenas que depois de algumas confusões e aventuras, os quatro amigos chegam à ilha africana de Madagascar, habitada por lêmures e outros animais selvagens e têm de se adaptar à vida longe das luzes da cidade.

E é a partir deste ponto que a nova animação feita pelos produtores de Shrek (2001) e Espanta Tubarões (2004) enfraquece. A saída de Nova York, a busca pela liberdade, que imaginei seria o grande lance do filme, acontece muito cedo e o que vemos em seguida são animais fora de seu habitat. É uma pena, pois as cenas da bicharada andando solta por Manhattan são hilárias. No melhor estilo Toy Story, os animais conversam entre si, mas quando estão na presença de humanos, tudo o que se ouve são rugidos. Eles passam por cenários clássicos como a Times Square, o ringue de patinação do Rockfeller Center, a 5ª avenida e a Estação Central como se fossem turistas que estão vendo tudo pela primeira vez, mas que na teoria já conheciam todos os lugares.

O dilema do "peixe fora d'água" que se segue quando eles chegam a Madagascar não tem muitas novidades. As risadas estão garantidas com piadas tanto para pequenos quanto para adultos. Na verdade, há até um certo exagero na "maturidade" do filme quando há uma referência à droga ecstasy no momento em que os animais do Zôo de Nova York se encontram com os lêmures, que curtem uma rave quase tão intensa quanto a mostrada em Matrix Reloaded (2003). Mas a piada é tão rápida que talvez muita gente nem perceba.

Talvez o que mais agrade mesmo aos fãs de animações é o estilo dos desenhos, que se inspiram nos clássicos de Chuck Jones e Tex Avery. Diferente dos traços mais realistas que vinham se tornando obrigatórios nas animações feitas por computação gráfica, os exageros caricatos e surrealistas utilizados por Jones e Avery mostraram que ainda funcionam muito bem na telonas. O exemplo perfeito de personagens que já são engraçados só pelo seu visual e casam muito bem com seus atos são os pingüins fujões e os macacos, que roubam a cena quando aparecem. Diria que se Madagascar fosse um produto da Disney, eles com certeza ganhariam um longa próprio que seria lançado direto no mercado de home video.

Algumas pessoas que não assistem aos canais de TV aberta podem estranhar uma mulher que aparece ao final dos comerciais indicando o filme. Seu nome é Heloísa Périssé. Ela é uma humorista global e foi a responsável tanto pela dublagem da Glória quanto pela adaptação do roteiro para o português. As piadas perdidas, como a referência aos New York Giants (time de futebol americano da Big Apple), não são culpa dela e no geral a adaptação para o português foi bem feita. No quesito dublagem, como sua personagem é secundária, não houve perda alguma. Torçamos para que a mania de contratar "rostos famosos" para fazer dublagem tenha terminado com a participação do Supla Papito em O filho do Máskara.

01 julho 2005

Guerra dos Mundos



Nota: 5

Na sessão para a imprensa de Guerra dos Mundos, os jornalistas eram obrigados a assinar um termo se comprometendo a não publicar nada sobre o filme antes da estréia na quarta (29/06). Qual seria o medo dos estúdios Paramount? Que o novo filme de Spielberg recebesse péssimas críticas antes mesmo do lançamento mundial?

Não deve ser apenas coincidência. Medo e paranóia são os temas centrais de Guerra dos Mundos. Depois de tantos filmes inspirados no 11 de Setembro, coube ao maior diretor de Hollywood construir a metáfora mais óbvia e simplista dos atentados. E compactuando de vez com a doutrina Bush.

Um narrador abre o filme com o enunciado: "Um dia eles vão nos atacar, e será nosso dever lutar pela liberdade até o fim". Um trabalhador das docas (Tom Cruise) leva a sua vida pacata com os filhos e a mulher divorciada quando de repente toda a cidade é atacada por alienígenas de desenho pouco inspirado, copiados dos de Independence Day, e suas naves aracnídeas de visual anos 80.

Resta a Cruise partir para o braço em meio ao pânico geral. Como muitas vezes em Spielberg, é uma criança (a menina Dakota Fanning, de O Amigo Oculto) que conduz a narrativa. E é o filho mais velho que vira motivo de orgulho ao demonstrar heroísmo nacionalista e bélico, ao desgarrar-se da família para combater os ETs. À paranóia bélica, junta-se a paranóia sexual, outra das obsessões preferidas dos americanos, em uma rápida insinuação de pedofilia.

Reza a lenda que Spielberg levou 11 meses desde a concepção da história até o final da pós-produção. É um tempo muito curto para um blockbuster desse porte. O descuido mais visível é no roteiro, adaptado da aventura clássica de H.G. Wells publicada em 1898: cheio de problemas de continuidade e com um final ao mesmo tempo patético e confuso. Salva-se a fotografia sóbria e inteligente de Janusz Kaminski, insinuando que o mundo já é bastante cinzento e sombrio mesmo antes da chegada dos ETs.

Guerra dos Mundos é um fracasso na obra de Spielberg visto de qualquer ângulo. A última ficção científica do cineasta, Minority Report - A Nova Lei, talvez seu trabalho mais maduro até hoje, tinha a preocupação ética de discutir a justiça num mundo totalitário. E a última vez em que tratou dos alienígenas - em ET, e mais ainda em Contatos Imediatos do Terceiro Grau -, ele acreditava que um contato com o outro era possível. Hoje, qualquer criatura estranha (sejam ETs, afegãos ou iraquianos) é uma destruidora em potencial, merece o nosso desprezo e tem que receber o troco em nome da "liberdade".