15 junho 2005

Clean



Nota: 7,5

Se considerarmos a qualidade de alguns trabalhos anteriores recentes, como Demonlover (2002) e Irma Vep (1996), dá pra se afirmar que o diretor francês Olivier Assayas se livrou das drogas.

Em termos comparativos, Clean (2004), seu filme mais recente, é infinitamente superior e amadurecido em relação aos supracitados, meros exercícios de câmera e de linguagem numa análise mais relativa. Este longa, vencedor de dois prêmios do Festival de Cannes do ano passado (Melhor Atriz para Maggie Cheung e Melhor Fotografia para Eric Gautier, o mesmo de Diários de Motocicleta), entra em cartaz no Brasil com seu título original para não estragar o sentido dessa palavra única e forte, ou então talvez para não comprometer seu conteúdo por via de traduções tenebrosas, muito comuns quando se tem como objetivo levar tudo quanto é público ao cinema. Numa versão brasileira aproximada, seria algo como um processo de desintoxicação. Entretanto, essa “limpeza” purificadora não se observa apenas nos aspectos orgânicos e farmacológicos do filme. Clean vai fundo na alma de seus personagens, atingindo o âmago de suas questões e perturbações psicológicas. É muito mais intestino do que cosmogênico.

O filme conta a história de Emily Wang (Cheung, ex-esposa do diretor, numa interpretação formidável), casada com um rock star, Lee Hauser (James Johnston). Emily tenta colocar seu marido dentro do cenário musical, indo atrás de gravadoras e de empresários. Porém, seu temperamento faz com que ela se desentenda com todos desse universo artístico, entre eles o próprio agente de Lee. Por causa disso, ela não é bem quista por amigos do cantor e nem mesmo pela família dele, que a vê como uma mãe ausente e pouco preocupada com o filho pequeno. Tanto Emily quanto Lee são consumidores pesados de drogas e, como se não bastasse, é ela própria que fornece a ele os tais entorpecentes. Certo dia o roqueiro morre de overdose. Emily é considerada culpada e acaba indo passar seis meses na prisão. Após esse período cumprindo pena, ela tenta uma reaproximação com seu sogro, Albrecht Hauser (Nick Nolte), que tem a guarda da criança.

A escolha de Paris como a cidade desse reencontro não poderia ser mais acertada. Ela é a síntese perfeita desse composto amalgamado de modernidade e decadência. Paradoxalmente, a cidade-luz é retratada com uma série de imagens escuras. Os planos embaçados e claustrofóbicos são a busca inconsciente, dentro do processo retroativo histórico, pela claridade no período das trevas. O filme, de certa forma, resgata esse Iluminismo artístico, trazendo para os dias de hoje esse tão estudado movimento de rearranjo do sistema de idéias e pensamentos, em que foi necessário, como em toda ruptura estética, um choque de valores. Não é à toa que, tanto na História quanto na película, a palavra que vem à cabeça é Renascimento. Somente através do sepultamento do passado é que se pode dar um novo sentido à vida. Um sentido mais claro, a uma vida mais limpa.

Assayas parece mesmo ter abandonado seus vícios frenéticos. Aqui não há mais a necessidade de impor seu estilo através de experimentalismos lingüísticos ou maneirismos exibicionistas. Clean, nesse sentido, é mais contido que alguns de seus trabalhos predecessores. Daria pra arriscar dizer que ele flerta, mas não se debruça no “deixar acontecer” da nouvelle vague. A câmera é respeitosa, seguindo naturalmente o fluxo e obedecendo ao tempo de cada um de seus personagens. Numa cena inicial, em que uma banda toca em um bar alternativo, a câmera não se contenta em apenas fazer o registro da música como algo que está acontecendo naquele instante. Ela se aproxima do grupo dark no palco, acompanhando a respiração da cantora e os batimentos cardíacos da canção, do primeiro ao último acorde. É um momento, assim como vários outros, de introspecção, que dá ao espectador a possibilidade de desfrutar os timbres sonoros e também se aprofundar no entendimento da relação que os protagonistas estão tendo com aquele recorte de suas vidas. Isso não quer dizer que a mão de Assayas seja omissa e seu olhar, meramente contemplativo.

Clean está longe de ser um filme letárgico. Há uma interferência muito grande do diretor em seu ritmo. Alguns movimentos de câmeras, que percorrem os corpos e a porosidade de suas peles, provam exatamente isso. Em certos momentos, em que essa máquina galopa pela matéria humana e invade os vazios formados por ela, percebe-se que é necessário se alimentar de muito queijo brie para se chegar a tal nível de maestria.

Tudo em Clean converge para a família e as relações de casa. Emily deixou Jay com os sogros para viver o inebriante mundo do rock. Há os pais de Lee, que, em algum momento, perderam o bonde. Não o identificam, por exemplo, em fotos de discos. Compensam tentando de novo, na criação do neto. Clean, um filme sobre gerar, amar e as responsabilidades que aqui orbitam, rastreia esse fluxo misterioso que é o crescer dos filhos, numa química de ternura e rispidez, intensidade afetiva e estranhamento. Os sogros deixaram de conhecer Lee, Emily e Jay mal se conhecem, mas todos têm amor uns pelos outros.