O Guia do Mochileiro das Galáxias
Nota: 6,5
Publicado em 1979, O guia do mochileiro das galáxias, primeiro livro de uma série criada por Douglas Adams (1952-2001), ganhou uma legião de fãs pela sua mistura de ficção científica empolgante com sátira social e política no estilo de Monty Python. Não por acaso, seu escritor também era britânico, assim como a trupe de Em busca do cálice sagrado, e partilhava do senso de humor que só os súditos da Rainha têm.
O desejo de transportar esta aventura espacial para outras mídias partiu do próprio Adams. O Guia do mochileiro, na verdade, surgiu como uma série de rádio, que foi compilada em fitas cassete e só então virou o bestseller. Depois que conseguiu um espaço na TV britânica Adams chegou até a escrever duas versões do roteiro de um longa-metragem. Infelizmente, devido a um ataque cardíaco aos 49 anos, ele não viveu para assistir ao seu filme. Foram anos de negociações e indecisões sobre o projeto. O sinal verde para a produção só foi dado pela Walt Disney Pictures em outubro de 2003, dois anos depois do falecimento do autor.
Com o OK da casa do Mickey, as tresloucadas personagens d'O Guia do mochileiro não tardaram a ganhar novas formas de carne e osso. Revisado por Karey Kirkpatrick (Fuga das Galinhas), o roteiro de Adams chegou às mãos do maluco Spike Jonze (Adaptação), que recusou o projeto mas indicou um colega diretor de videoclipes para o trabalho. Assim entrou em cena Garth Jennings, conhecido pelos clipes de "Coffee & TV" (Blur), "Right Here, Right Now" (Fatboy Slim) e "Imitation of Life" (REM), entre outros.
Ao lado do produtor Nick Goldsmith, seu sócio na Hammer & Tongs, Jennings leu o roteiro do filme e decidiu se arriscar pela primeira vez em um longa-metragem. Meses depois, todos os assentos da nave Coração de Ouro, veículo de "improbabilidade infinita" que carrega os protagonistas do filme através da galáxia, já estavam ocupados com ótimos atores e a produção finalmente estava pronta para zarpar.
Não entre em pânico
O aguardado projeto chegou às telas finalmente em maio de 2005. Porém, lamentavelmente, o resultado é apenas mediano.
Apesar de ser uma produção claramente apaixonada, ela não tem sucesso em versar a essência do livro para o cinema. Boa parte do que soa histericamente engraçado no romance perde força quando lançado em cristalina computação gráfica nas telonas. A equivocada decisão de colocar um narrador ao fundo, numa tentativa bizarra de explicar o que já está sendo visto, também não ajuda. Não há nada mais redundante do que isso na linguagem da sétima arte. Será que o estúdio acredita que as piadas de Adams são inteligentes demais para o público dos multiplexes?
Melhor sorte têm as cenas geradas por técnicas clássicas - como a parte em que os viajantes espaciais são transformados em sofás coloridos. Nessa seqüência, assim como em outra criada com bonecos de pano, os móveis animados são criados por stop-motion e o resultado é divertidíssimo. Fica a sensação de que se a produção tivesse sido criada com mais improviso e absurdos e tivesse menos da "Magia Disney" hollywoodiana teria funcionado muito melhor.
Mas "não entre em pânico", como diria o próprio Guia. Há idéias boas no filme. A melhor delas é mostrada logo no começo, quando o capítulo 23 do livro - que explica que os golfinhos são mais inteligentes que os humanos - ganha ares de musical da Broadway com direito a uma trilha sonora que ficará dias tocando na sua cabeça. O próprio narrador funciona bem em outros momentos da história, quando o Guia do Mochileiro das Galáxias, o guia de viagens intergaláctico carregado pelos heróis, entra em ação. Nessas passagens, que servem para explicar termos ou espécies, entram animações simplistas que pedem os tais divertidos comentários em off. Nelas, a relevância de imagem/narração se inverte e o texto de Adams é valorizado como nos livros.
A versão nacional do filme também reserva uma grata surpresa (não é sempre que as distribuidoras nacionais têm boas idéias com essa): apesar do longa ter legendas, o sempre competente José Wilker dubla a voz do narrador. A solução é inteligente, já que as cenas em que ele interfere são geralmente recheadas de informação e colocar a legenda sobreposta às animações poluiria demais a imagem.
A grande pergunta da Vida, do Universo e Tudo Mais
Mas se a adaptação não é assim tão boa, pelo menos os atores se esforçam para que ela se mantenha acima da média. Martin Freeman, da série de TV The Office, está perfeito como o terráqueo Arthur Dent. Seu robe puído, toalha estampada e cara de alienado estão ótimos. O astro Sam Rockwell (Os vigaristas) também diverte como o presidente da galáxia Zaphod Beeblebox, um alien de dois rostos e três braços que tem como maior realização da carreira a criação da bebida Dinamite Pangaláctica. Mas quem rouba a cena é Marv, o andróide paranóide. Interpretado pelo anão Warwick Davis (Willow, Retorno de Jedi) e dublado por Alan Rickman (o Snape de Harry Potter), o personagem pessimista tem as melhores cenas do filme.
A história começa minutos antes da explosão da Terra - planetinha inútil que será destruído para obras de melhoramento da Via Láctea - e mostra um britânico comum chamado Arthur Dent (Freeman) sendo poupado da catástrofe. Seu salvador é Ford Prefect (Mos Def), um alienígena que passou os últimos 15 anos estudando os hábitos terrestres disfarçado de ator desempregado para atualizar o Guia do Mochileiro das Galáxias, publicação interplanetária no melhor estilo "guia de viagens". Juntos, eles começam a viajar pelo universo, auxiliados pelas espertas dicas do manual e acabam envolvidos na busca pela "grande pergunta da Vida, do Universo e Tudo Mais".
A sinopse pode até se parecer com a do livro, mas a história distorce momentos significativos da obra de Adams. O primeiro ponto a ser destacado é a inclusão do líder religioso Humma Kavula, personagem criado pelo próprio autor especialmente para o filme. Interpretado por John Malkovich (O retorno do talentoso Ripley), Humma, apesar de divertido, surge como mera desculpa para a aparição de algo que será utilizado numa das cenas finais.
E por falar em final, não há qualquer semelhança entre o clímax do livro e o do longa-metragem. As mudanças são simplesmente lamentáveis e tiram toda a relevância filosófica de acontecimentos centrais da trama. Adams, que se considerava um ateu radical ("Deus desapareceu em uma nuvem de lógica", escreveu), pontuou sua comédia literária com observações sagazes sobre a natureza humana, a nossa imbecilidade perante o planeta e ácidos comentários sobre as religiões. O filme, devidamente pasteurizado para a família, estrategicamente elimina todos esses pontos, transformando genialidade subversiva na pipoca engraçadinha da semana, com direito a momentos de comédia romântica.
Se a idéia das mudanças era aumentar o potencial de público do filme, a Disney quebrou a cara. As bilheterias mundiais estão muito abaixo do esperado e uma continuação - devidamente plantada ao final do filme - só deve decolar se o filme gerar bons resultados em DVD. A obra de Douglas Adams merecia destino melhor.
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