Contra Corrente
Nota: 7
Seja no sertão nordestino de Abril Despedaçado (2001), nos confins argentinos de O Pântano (2001), nas encostas sicilianas de Respiro (2002), no vilarejo espanhol de O Sétimo Dia (2004) ou, agora, nos lodaçais estadunidenses de Contra Corrente (Undertow, 2004), a lei que vigora é a mesma: o determinismo. Famílias sem perspectiva social são os motes dessas cinco obras, mas no caso deste filme indie de David Gordon Green os peões dessa tragédia meio que fazem por merecer a desgraça, nestes tempos anti-Bush: são os caipiras da chamada américa profunda.
Sempre que perguntado sobre o lugar de onde vem, o adolescente Chris Munn (Jamie Bell, o famoso Billy Elliot) diz que vem de lugar nenhum. Mas não é difícil localizá-lo, por dedução: casas de alvenaria, pocilgas no quintal, longas distâncias rurais, camisas de flanela xadrez, florestas, rebocadores desdentados, cantoria gospel, sotaques puxados, fantasias de peregrinos no Dia de Ação de Graças, recém-casados de carroça, bonés de lenhador, botas de couro, caminhonetes desbotadas.
A região entre o Centro-Oeste e o Sul dos EUA - que comporta, aliás, o Estado do Alabama onde, há trinta anos, nasceu o diretor-revelação Green - é a redoma que asfixia a família Munn. O pai, John Munn (Dermot Mulroney, de As confissões de Schmidt), vive em ponto morto depois que perdeu a esposa. Sobraram os dois filhos, Chris e o caçula, Tim Munn (Devon Alan). Os três não esperam muito da vida. Nem mesmo a cortar os cabelos que já tampam a vista do irmão Chris se dispõe.
Vigiado para não cometer os erros do pai quando jovem, basta que lhe virem as costas para Chris largar os serviços do chiqueiro. Ele comete delinquências na cidade. Corre à casa de uma garota. Mas ela não quer nada com ele. Ninguém quer. Até o dia em que o seu tio, Deel Munn (Josh Lucas, de Hulk), sai da cadeia e lhes presta uma visita. Deel tem sérios assuntos a tratar com John. Ficamos sabendo do passado nada glorioso dos irmãos. Coisas que podem ocorrer - e certamente ocorerrão - à geração seguinte de irmãos, Chris e Tim.
Essa herança maldita, seleção natural aparentemente inescapável, tem no riacho a sua alegoria e em Caronte (barqueiro na mitologia grega que levava as almas ao inferno), o seu símbolo fúnebre, como conta John em uma fábula familiar. As águas que se renovam na vizinhança dos Munns são como as vidas que se sucedem em nome dessa harmonia do caos.
Mas o nome do filme é Contra corrente, é a reação ao determinismo. O termo original, undertow, quer dizer recuo das ondas, mas também significa uma idéia adormecida no fundo da mente. Se a primeira metade de 108 minutos de filme mostra o peso do inconsciente coletivo em Chris, a tensa metade final trata da tentativa de libertação, da sua excruciante terapia.
Pois é inconscientemente que Chris e Tim atravessam, em fuga, árvores e mais árvores, vilarejos e ruas e jardins atrás não sabem bem do quê. Ainda que invasiva, a orquestração um tanto lírica de Philip Glass (compositor de As Horas) acompanha bem essa metade do filme. Dá o tom do que parece apenas um road-movie desembestado, quando na verdade é uma história de formação de caráter dos jovens irmãos. E essa formação passa obrigatoriamente pela desconstrução da existência, por um certo primitivismo, desde provar o sabor de tinta até entender as picadas de um parasita. A sequência em que Chris recorre às mamas da vaca para matar a sede é emblemática.
Nesses momentos Green demonstra afeto com as coisas da terra. Não é um diretor que, como tantos, caricatura e condena a massa sulista por desconhecê-la. Crítico construtivo, ele demonstra por meio do menino Tim - ainda que de forma um tanto grotesca - que digerir o desconhecido não é simples. Essa analogia entre o fisiológico e o comportamental, o orgânico e o social, funcionou muito bem para Lucrecia Martel no citado O Pântano (em que o lodo também é sinônimo de estagnação), e dá certo aqui também.
Há outra semelhança com os demais três filmes lembrados no início do texto. No momento climático de Contra Corrente, Chris sonha estar diante do mar. Tradicionalmente no cinema é no mar que tudo se resolve - e diferente do riacho, as ondas não seguem um único curso, pelo contrário, abrem-se a correntes várias. Trata-se do mesmo mar do desfecho que Emanuele Crialese, Walter Salles Jr. e Carlos Saura assumiram para os supracitados trabalhos; a imensidão do mar serve como o escapismo que livra os personagens do determinismo arraigado na terra. Acontece que Green recusa a facilidade do escapismo. E Chris acorda do sonho. Sem mar, ele terá que se resolver com o pai John, com o tio Deel, com Caronte, com a corrente.
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