Nota: 6
No ano passado, Bendito Fruto, longa de estréia em ficção do carioca Sérgio Goldenberg, entrou como uma espécie de zebrão no Festival de Brasília. Além de premiar as atrizes Lúcia Alves e Zezeh Barbosa, conseguiu um empate técnico de Melhor Filme, junto com Peões (Eduardo Coutinho).
O resultado disso foi uma polêmica matéria na Imprensa, onde se questionava a formação do quadro da crítica jornalística brasileira e os métodos de contemplação de filmes nacionais. Pois Peões e Bendito Fruto caminham por lados praticamente opostos. O documentário é a tentativa sufocada e desesperada, mais tentada do que obtida, de um resgate de uma das fatias cronológicas mais importantes do nosso período histórico amordaçado pela ditadura e pela queda do poder econômico da classe trabalhadora. A ficção, por sua vez, é um retrato até baseado em fatos e cores reais, mas opta por uma revelação cromática bem fugidia das entranhas do sistema. Com esse auê todo, ficou mais evidente a curiosidade de descobrir qual o sabor que há dentro desse fruto, a tal ponto de tirar a força dos peões. Afinal, creio que, pelo acúmulo de referências e informações dentro do território nacional, uma premiação mostra mais o nível dos concorrentes em questão, do que propriamente o mérito concedido aos valores absolutos de um trabalho.
Edgar (Otávio Augusto) é um cabeleireiro que segue sua vida rotineira. Todo dia, vai ao estabelecimento herdado de seu pai, Antonio’s Tratamento de Cabelos, no bairro do Botafogo. Tudo pacato, do chefe Edgar ao movimento no centrinho do bairro. De repente, um inusitado telefonema, atendido pelas funcionárias Telma (Lúcia Alves, ótima) e Choquita (Camila Pitanga, que além de bonita é boa atriz), muda a vida do protagonista. Devido a uma explosão causada pela concentração de gases, a tampa de um bueiro voou e atingiu a capota de um táxi, no Centro do Rio. Quem estava dentro do automóvel era Virgínia (Vera Holtz), interiorana de Ribeirão Preto, antiga amiga de colégio de Edgar, que consegue localizá-lo graças a um cartão de visita que guardava em sua bolsa. Ela estava a passeio, mas vai parar no hospital. Junto com as malas, embarcam à terra do Corcovado todos os sonhos da caipira, até mesmo o de encontrar um verdadeiro amor.
Como todo bom estreante detrás das câmeras, Sérgio tem seus méritos e seus erros. A “historinha” é muito boa e até diverte. Há um enredo muito bem construído, onde cada situação tem seu desdobramento totalmente dentro da lógica ficcional. Por trás da aparente leveza da trama, há uma série de questionamentos mais relevantes, como a permanência do estado de escravidão, ainda que branda, nos núcleos familiares. Edgar está oficiosamente comprometido com Maria (Zezeh Barbosa), filha de uma empregada doméstica da família, que foi cuidada desde pequena e preferiu continuar habitando o seio mínimo da sociedade branca. Entretanto, esse relacionamento nunca é assumido, mais se parecendo com aquelas “escapadinhas” noturnas de chefe do lar aos cômodos das subalternas. Esse estado latente de escravidão parda divide os olhares com outra questão, a do homossexualismo, que envolve um galã de novela. Até mesmo o salão de estética não é perdoado. É lá que acontecem as cenas de hipocrisia.
Contudo, Goldenberg erra na mistura de tinta que dá ao seu conteúdo. Enquanto o filme ganha ao ser muito maior do que mostra, perde ao aumentar em closes os detalhes que não precisaria mostrar. Bendito Fruto até lembra de certa maneira o filme Domésticas, de Fernando Meirelles, onde existe uma apropriação indevida das falas e dos costumes da classe média baixa suburbana. A câmera subjetiva se aproximando das nádegas de Virgínia, como se fosse o olhar de Edgar que refletisse todas as suas intenções, é de um mau-gosto típico de programas humorísticos televisivos. A necessidade de focar os pormenores do dia-a-dia do carioca popular, como o disco de vinil da novela O Espigão, o pagode tocado no rádio, as tinturas para cabelos de gosto discutível, a cor das camisas de Edgar ou a TV que não pega, acaba criando um certo distanciamento até cômodo pro diretor. Não há neutralidade de juízo de valores nesse retrato. Há mais vontade em ridicularizar o brega do que enaltecer a cultura desse povo sofrido e miscigenado. “Comédia muito burilada é coisa de inglês”, disse Otávio Augusto em entrevista. Bendito Fruto é um filme brejeiro, que se passa por inocente mas em certos momentos condena sua proposta com esses exageros estéticos intencionais. Não que haja uma deturpação. Mas, parafraseado um antigo comercial de TV, há maneiras de se contar uma grande mentira somente dizendo a verdade. E o filme se apóia nesse sofisma. “Quando você quer alguma coisa, o universo conspira a seu favor”, uma das profecias de Paulo Coelho citadas. As referências ao misticismo e às crendices populares mostram quão longe o filme está do coração de seus personagens.
Mesmo com esse esmalte dourado de unhas em primeiro plano, a base do filme é um interessante caminho a ser pensado nos próximos longas. O salão de beleza funciona como um elemento aglutinador de culturas e de emoções. Cada um vem de um canto do Rio de Janeiro e lá é o ringue dos choques e conflitos étnicos e sociais. Os personagens, diluídos em suas ambições e frustrações, vivendo o mundo individualista de sonhos das novelas, cada qual em sua casa e com seu bife e macarrão, acabam se encontrando na claridade do dia nesse antro de fofocas. “O salão é um confessionário”, é uma das frases de Telma que melhor resume o cume do filme. Há também um pouco de Mike Leigh em Bendito Fruto. Um ambiente pequeno, metonímia de um universo maior, palco de um caldeirão de sentimentos e crises que abalam a sociedade em estado permanente de convulsão. Há clímax e anti-clímax em ambos, com a diferença de que nos filmes ingleses o chá serve como analgésico para os ataques de histeria, enquanto que no longa brasileiro basta a revista Caras do mês retrasado.