20 março 2007

Sonhos com Xangai



Nota: 8

Ser jovem em Guyitang, na China, em 1983, não era das coisas mais fáceis. Além da ditadura, do choque de gerações com os país criados nos tempos de Mao, que impunham uma restrita censura de costumes, eles tinham de enfrentar o clima tradicional e conservador do país que estava engatinhando para a modernização.

Sonhos com Xangai, de Wang Xiaoshuai (autor do roteiro e também do festejado Bicicletas de Pequim), em cartaz nos cinemas, vai direto nesse tema. O filme, que ganhou Prêmio do Júri em Cannes, mostra uma China pouco vista nas telas. Guyitang é uma cidadezinha do interior dominada pelas metalúrgicas que para lá foram levadas nos anos 60, quando os chineses, temendo uma invasão russa, decidiram transferir fábricas que seriam algo chamado de "Terceira Linha de Defesa".

Operários que trabalhavam nas grandes cidades foram arrebanhados para esse lugar sem atrativos; os resultados econômicos da mudança começam a se mostrar desfavoráveis e muitas famílias pensam em voltar para Xangai, onde há empregos e oportunidades. Mas os jovens querem, sobretudo, livrar-se do ambiente estreito. Vendo o que acontece com seus pais que se estiolam e definham no mundinho limitado da cidadezinha, eles sonham com, digamos, as luzes da cidade grande onde, imaginam, são aguardados para transformar o mundo e marcar presença.

Esse é um tema que a ficção e o cinema não se cansam de explorar, com melhores ou piores resultados. Em Os Boas-Vidas (I Vitteloni), Federico Fellini mostra um grupo de rapazes, já não tão jovens, que sonham com a utopia da cidade grande, enquanto passeiam pelas ruas e bares de Rimini, sem muito o que fazer. Eles se divertem um pouco, mas sofrem com a falta de horizontes e,mais que tudo, com a subjacente certeza de que o tempo está passando e eles dificilmente escaparão da prisão provinciana.

Qing Hong, uma garota de 19 anos (Gao Yuanyuan, que parece uma Audrey Hepburn chinesa) se apaixona por um rapaz, Fan Gen. Mas o namoro deles, em termos ocidentais é estranho. Ele segue a moça pelas ladeiras da cidadezinha, mas não tem coragem de se declarar. Usa, para esse efeito, um par de reluzentes sapatos vermelhos que dá de presente a ela, com os previsíveis resultados no interior da família.

Ao lado da história de amor, o filme passeia pelos points da moçada do lugar. Os rapazes mesclam James Dean e Elvis; a escola censura costeletas e calças boca-de-sino. Numa cena imperdível, um bailinho tem menino dançando com menino, enquanto as garotas ficam pelos cantos, trocando olhares com os galãs que dançam ao som de baladinhas à anos dourados.

Guardadas as proporções, é impossível não lembrar de Loucuras de Verão ( American Graffitti), de George Lucas. Os americanos usavam hot rods cruzando sem parar as ruas da cidadezinha de começos dos anos 60, com seus topetões e jaquetas. Na China de 1983, o bad boy mais notório usa bicicleta para levar uma garota inexperiente para um lugarzinho reservado.

Mas a explosão de hormônios é igual e a vontade de escapar do ambiente acanhado também. Mas, lembre-se, o filme de Lucas mostra que um dos jovens vai pegar o trem para a faculdade e, também, um outro deles, um pouco mais velho (interpretado por Harrison Ford), que está resvalando sem escapatória para uma vida estagnada como mecânico, após ser um ídolo do futebol e líder da garotada local.

No filme chinês, a miragem é Xangai. Após um desenlace inesperado da história de amor de Qing Hong e Fan Gen, finalmente o pai da moça resolve partir para a cidade grande com a família, em busca de um emprego melhor.

Ele é, ao que se imagina, a vanguarda de muitos outros da sua geração. A mulher e os filhos acompanham-no para a viagem final.

O filme de Xiaoshuai não tem a grandeza de Os Boas-Vidas nem mesmo de Loucuras de Verão, mas revela um olhar penetrante sobre o pano de fundo político e social e uma bem-vinda ternura para com os ingênuos protagonistas, e seus sonhos com Xangai.

Aos cinzas dos espaços interiores e aos marrons enlameados dos exteriores, o diretor contrasta o elemento rebelde através dos coloridos das roupas e de um simbólico vermelho de um par de sapatos, que dispara o conflito na família.

Mas é na construção e no desenvolvimento quase subterrâneo dos afetos que Xiaoshuai conquista o espectador. O filme, narrado de forma tradicional, registra em pequenas situações cotidianas todo o processo de repressão, traduzido na contenção dos gestos, que, por sua vez, vai constituir válvulas de escape sob a forma de rebeldia juvenil (nas roupas, cabelos e atitudes).

Com base numa situação de conflito melodramático, Xiaoshuai traduz o desenraizamento vivido por seus personagens na perspectiva da intimidade. Em sua narrativa aparentemente neutra e objetiva, focalizada na passagem do tempo através da crônica das horas e dos dias, Sonhos com Xangai enxerga com profundo pessimismo a crença no progresso.