22 março 2007

Pecados Íntimos



Nota: 8,5

Ah, os subúrbios dos Estados Unidos... cidades pequenas, paraísos para a criação de filhos loirinhos, onde o cidadão de classe média progride feliz e inadvertidamente serve de material para autores ávidos por mostrarem sua superioridade intelectual e honestidade moral num sem-fim de romances, séries de televisão e filmes. O que seria do cinema autoral e independente por lá não fossem os road-movies e essas cidadezinhas pacatas?

Pecados Íntimos
(Little Children, 2006) não é diferente nesse aspecto. Tem sua cota de casais infelizes, segredinhos e traições. Mas tem também um diretor acima da média (o sumido Todd Field, que não dirigia desde Entre Quatro Paredes, de 2001), uma ótima seleção de elenco e material de base competente, o livro Criancinhas, de Tom Perrotta, que assina o roteiro, indicado ao Oscar de texto adaptado, ao lado de Field. O resultado é intrigante e dúbio.

A história acompanha Sarah (Kate Winslet, também indicada ao Oscar pela atuação), mãe de família e inativa intelectual, e sua filha. Todos os dias as duas vão ao parquinho, onde encontram-se com as outras mães - superprotetoras, superfofoqueiras, superchatas -, que têm como ponto alto de seu dia a chegada do "Rei do Baile", Brad (Patrick Wilson), um sujeito bonitão que leva o filhinho para brincar enquanto a esposa e provedora, Kathy (Jennifer Connelly), faz documentários para a TV. Não demora para que Sarah e Brad, depois de uma brincadeira que dá errado, desenvolvam uma afeição mútua.

E se tudo parece normal demais, surgem dois elementos externos às histórias de subúrbios que tornam a história intrigante e potencializa suas discussões. Volta à cidade, depois de cumprir pena, um pervertido, preso por exibir-se para uma criança. É como se um tubarão (a cena da piscina é poderosíssima para gravar essa imagem) entrasse numa pacífica laguna. A outra é a entrada de Brad para uma liga amadora de futebol americano, atendendo aos apelos de um amigo antigo e ex-policial (Noah Emmerich), cujo hobby é incomodar o ex-presidiário e sua mãe todas as noites.

A história do pervertido, vivendo com a sua preocupada mãe (tão superprotetora quanto às do parquinho), é a melhor. Seria ele um sujeito realmente perigoso - seu ato o primeiro de uma série - ou alguém que errou uma vez, pagou o preço, e está de volta reabilitado? O personagem é vivido por Jackie Earle Haley, um antigo astro-mirim da década de 1970, que entrega-se totalmente ao trabalho. Não é pra menos - ele amargou algumas décadas de subempregos e papéis ínfimos desde que perdeu as graças da infância - e soube aproveitar a oportunidade de ouro que teve. O resultado é uma mais que merecida indicação ao Oscar de ator coadjuvante, que renderia por si própria um típico filme de superação.

O desfecho tem um certo tom conformista, de aceitação, que inicialmente incomoda. Mas conforme passam as horas ele cresce e transcende o óbvio, respeitando seus personagens. Field e Perrota sugerem que eles são todos cheios de falhas, mas o pervertido é o único a conhecer as suas. De certa forma, é a única pessoa honesta na hipócrita comunidade - e a única capaz de amar de verdade e fazer sacrifícios em nome desse amor.

A história mostra o subúrbio como espaço perfeito para a representação de um universo bem maior. O parquinho infantil, por exemplo, é um lugar de convivência, brigas, inveja, dissimulação e intrigas. E não se trata obviamente das crianças, mas de suas mães, que levam uma vida sem perspectivas, aparentemente não ligando muito para isso.

Mas ao menos uma delas não está conformada com sua vida. "Sou uma pesquisadora estudando o comportamento de suburbanas chatas de classe média alta. Mas não sou eu própria uma suburbana chata de classe média alta", pensa Sarah (Kate Winslet). Realmente, ela foge do padrão mãe suburbana. Um caso com Brad vai tirar a sua vida do marasmo e a dele também.

Ele, por sua vez, é um tipo imaturo. Formado em direito, ainda não passou no exame da Ordem e se prepara para prestá-lo pela terceira vez, sem muita chance de aprovação. Passa as noites a observar adolescentes skatistas ao invés de estudar, desejando poder participar da brincadeira. Quem sustenta a casa é sua mulher Kathy (Jennifer Connely), uma documentarista que passa mais tempo trabalhando do que com o filho.

A relação entre Sarah e Brad guia a narrativa. Ele, um sujeito que sempre foi paparicado graças à sua perfeição física. Já a moça se veste mal e não está nem aí para nada, a não ser cuidar da filha. O casamento com um homem mais velho também já se estagnou. O caso extraconjugal a transforma.

Mas a vida é mais complicada para Ronnie (Jackie Earle Haley), um exibicionista que cumpriu pena de prisão por se exibir nu a crianças. A volta dele ao bairro causa uma verdadeira neurose coletiva. O ator consegue dar humanidade a este personagem polêmico. Ronnie é um ser atormentado que não entende nem aceita a si mesmo. Sua única amiga é sua mãe idosa, que já o perdoou e tenta ajudá-lo a fazer o mesmo.

Sarah é uma espécie de "Madame Bovary" contemporânea. Não por acaso, numa das cenas um grupo de mulheres discute esse livro do francês Gustave Flaubert, e a moça acaba sendo uma ferrenha defensora da personagem, engaja-se numa discussão com outra mulher, uma das mães que freqüentam o parquinho, sobre fidelidade. Claro que, a certa altura, já nem falam mais do livro, mas de Sarah e Brad.

O grande acerto de Pecados Íntimos é transitar entre a sátira e o drama de maneira delicada e sensível.