26 março 2007

Amarcord - Fellini (1973)



Nota: 9

Mais um fantástico filme de Fellini, que mescla mundo real e mundo dos sonhos, mundo onírico e percepções pessoais, de um momento difícil da história da Itália: a ascensão do facismo em pequenas cidades italianas.

Mas o que Amarcord tem de tão especial? Primeiro é preciso dizer o que NÃO tem. Porque se temos um certa intimidade com a narrativa cinematográfica, já sabemos, por exemplo, que um bom filme tinha que ter: (a) artistas talentosos, conhecidos, quase sempre bonitos, muitas vezes deuses e deusas que desciam do Olimpo apenas para filmar nos estúdios; (b) uma história com começo, meio e fim, capaz de emocionar ao espectador segundo uma progressão cuidadosamente planejada; (c) personagens fortes, divididos entre "mocinhos" (para quem torcíamos) e "bandidos" (a quem odiávamos). Amarcord não tem atores conhecidos. Mais do que isso: tem vários não-atores, gente comum, escolhida na rua pelo seu tipo físico.

Amarcord não tem história linear, com começo, meio e fim. Mais do que isso: além de fragmentada, a narrativa nem sempre é realista, pois está baseada em lembranças esparsas, imaginações, sonhos. Amarcord não tem mocinhos nem bandidos. Mais do que isso: o personagem principal, um adolescente chamado Titta, não está envolvido em nenhuma ação espetacular, a não ser que consideremos sua incursão entre os seios enormes da bilheteira uma ação espetacular. Amarcord não segue a cartilha do cinema americano. Segue a cartilha de Fellini.

Em contrapartida, Amarcord tem uma coleção completa de signos cinematográficos da mais alta qualidade. Tem um roteiro que "amarra" a trajetória de Titta com total segurança, criando nexos entre as cenas e dando a cada novo personagem (e são muitos) uma significação única e sempre forte. A mulher mais gostosa da cidade (La Gradisca), o vendedor ambulante, o acordeonista cego, a imensa charuteira, a freira anã, todos eles, mesmo com pouco tempo na tela, estão vivos, palpitantes, verdadeiros. Os roteiristas Tonino Guerra e Fellini sabiam que simplesmente "listar" lembranças não seria suficiente: era preciso criar um encadeamento lógico, em que a passagem do transatlântico funciona como um clímax, um orgasmo coletivo dos habitantes da pequena vila costeira.

Amarcord também tem uma das mais belas trilhas da história do cinema. Não estou falando de uma música, de um momento específico do filme. Estou falando da trilha original inteira, criada por Nino Rota, que, ou estava inspirado por Deus, ou fez um pacto com o diabo. Todas as músicas, além de apoiarem a imagem com total eficiência, funcionam independente do filme. E isso é muito raro, quase inexistente. Amarcord também tem fotografia inspirada, montagem sensível, direção de arte irrepreensível.

Amarcord é, à primeira vista, um filme simples, quase singelo, mas, na verdade, é um concerto sinfônico, em que cada um dos instrumentos cumpre modestamente seu papel. É a soma de todos esses timbres que fornece a essência mágica do produto final. Finalmente, não dá pra esquecer que Amarcord, ao mesmo tempo que é um filme intimista, sobre um garoto que descobre a si mesmo, também é um filme político, sobre a Itália fascista, sobre a alienação de um povo, sobre a preguiça latina, sobre a acomodação dos seres humanos a regras estúpidas, formuladas por seres humanos igualmente estúpidos, mas muito poderosos, capazes de criar os eficientes signos fascistas e gerar líderes monstruosos como Mussolini.

Amarcord não será esquecido jamais, nunca sairá de moda, nunca parecerá velho (o que aconteceu com Oito e Meio, por exemplo). Eu lembro de Amarcord. Eu lembro que os seres humanos são capazes de criar emoção com pedaços de plástico e sal de prata. E gerar artistas geniais como Fellini.

6 Comments:

At 14 de abril de 2009 às 15:21, Blogger Madá Nunes said...

Kos, vc escreveu a crítica que eu gostaria de ter escrito: concisa, objetiva e cativante. Fellini tem mesmo esse dom, o de entranhar-se na alma da gente. Ele consegue mudar nosso estado de espírito. É impossível assistí-lo e não sair diferente dessa experiência. Alguma coisa vem e mexe profundamente com a gente. É mágico, é grandioso, é misterioso, é belo e é Arte. É Fellini. abraços.

 
At 5 de setembro de 2009 às 19:35, Blogger Unknown said...

obra -prima de um dos mestre do cinema , um dos meus filmes prediletos

 
At 17 de maio de 2010 às 17:01, Blogger Unknown said...

"Quem copiou quem?" olá, tem um artigo sobre o Amarcord de fellini nesse lnk aí abaixo que é igual ao seu artigo. veja:

http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/amarcord.htm

 
At 15 de abril de 2011 às 13:53, Blogger Valeria said...

eita, tb fui na no site do terra. eh o mesmo texto sim. ops!rs

 
At 21 de setembro de 2011 às 12:48, Blogger gutenberg j said...

Amarcord é um dos mais belos filmes que já vi. Mereceria de sua parte uma resenha original. Qual a razão de copiar uma de outra pessoa?
Ou foi você mesmo que escreveu para o Terra?
http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/amarcord.htm

 
At 1 de abril de 2017 às 00:23, Blogger Mauro Lúcio said...

Maravilha pura! Emoção....cinema!

 

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