12 março 2007

À Margem do Concreto



Nota: 8

Documentarista mais prolífico em atuação no Brasil, Evaldo Mocarzel (Do Luto à Luta) chega à metade da sua tetralogia da exclusão paulistana. Depois de À Margem da Imagem (2002), que detalha a vida dos moradores de rua da metrópole, agora chega À Margem do Concreto, sobre o movimentos de ocupação do Centro da cidade. É uma evolução não só temática como política: dos sem-teto desorganizados, o enfoque documental passa para os sem-teto atuantes.

O nível de organização dos "invasores", como a mídia trata os ocupantes de prédios abandonados, fica evidente na quantidade de associações: Movimento dos Sem-Teto do Centro, Fórum dos Cortiços, Movimento de Moradia do Centro, Movimento Leste A, Unificação das Lutas de Cortiços... Mocarzel dá voz a todos eles e adota abertamente o discurso e o ponto de vista do documentados. A idéia do filme - e da tetralogia como um todo - é descobrir as pessoas e as idéias por trás das estatísticas e dos estereótipos reproduzidos no caderno de Cidades e no telejornal.

De forma um tanto mais dispersa do que em À Margem da Imagem, o documentário começa colhendo histórias de vida. Uma mulher lembra as condições em que deixou o Sul do país para se aventurar em São Paulo; um dos líderes de organização, gay, conta como foi difícil superar o preconceito para chegar onde chegou. O relato começa a ficar mais interessante à medida que a câmera interna-se na rotina de um prédio ocupado e no modo de operação de uma associação de sem-teto.

Conhecer a ordem vigente em um espaço criado em poucos meses, normas essas frequentemente mais sólidas do que as que vigoram cidade afora, é um interessante ponto de discussão. Como nos abrigos da Prefeitura mostrados em À Margem da Imagem, a conduta de todos é fiscalizada. Em um caso específico de À Margem do Concreto, um casal briga, se ameaça, e a esposa chama a polícia - ato condenado na reunião do Conselho dos ocupantes, já que envolver a polícia em um assunto interno é visto como a pior das infrações.

Respeitosamente, Mocarzel estrutura os seus filmes em um crescendo. Começa observando, colhendo depoimentos, embrenhando-se naquele mundo, e só começa a expor as idiossincrasias dos seus documentados quando o espectador já possui informações para julgar por conta própria. Normalmente isso se dá na metade do filme - e em À Margem do Concreto a apreciação é personificada na figura messiânica de Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê. Líder do Movimento de Moradia do Centro, frequentemente preso em confrontos, tido como cabeça ideológica dos sem-teto, Gegê só crê na revolução social por meio da tomada armada do poder. Simboliza, como nas altas fileiras do MST, a mistura complicada de ação social com manobra política.

Como em Dia de Festa, documentário de Toni Venturi sobre o mesmo tema, o clímax é a ocupação. Mais escolado no gênero do que Venturi, Mocarzel planta uma câmera na rua (reproduzindo as cenas de confronto, batalhão de choque, bomba de efeito moral) e outra dentro do prédio. O ponto de vista interior, inusual, faz todo o sentido dentro de À Margem do Concreto: se acompanhamos a vida dos sem-teto, nada mais justo do que seguir a tensão da incerteza, desocupa ou não desocupa.

Mocarzel crê na demolição de estereótipos não por meio de discursos, mas de imagens. Como já virou clichê particular, o cineasta exibe para os seus entrevistados algumas reportagens. Ele nem precisava perguntar o que os sem-teto pensam sobre a imagem que deles é feita na TV... Claro que há um descompasso entre as duas visões. E basta seguirmos o enfrentamento climático pela ótica dos sem-teto para percebermos como as "invasões" não são apenas uma provocação, como a mídia transmite frequentemente. Ver cômodos improvisados, erguidos dos escombros, serem desmontados de um minuto para o outro é impactante. É como se famílias precisassem remobiliar sua vida dia sim, dia não. E não se cria um cidadão sem que ele tenha a sensação de pertencer a um lugar.

Os dois últimos filmes da tetralogia são À Margem do Lixo (sobre a rotina de catadores de papel e materiais recicláveis) e À Margem do Consumo (a visão dos favelados sobre o mercado de consumo paulistano). Este último deve ser mais interessante, já que oferece a chance de expor o próprio cinema, na sua "digestão" de temas sociais, como um produto de consumo. Discutir não apenas a realidade e a imagem como o seu próprio ofício, a validade do cinema como retrato da realidade, coisa que Mocarzel consegue fazer muito bem.