30 agosto 2005

Harmada



Nota: 8

O veterano diretor e roteirista Maurice Capovilla volta ao cinema com Harmada, depois de 25 anos de seu último filme. O seu novo filme, adapta o premiado romance de mesmo nome do escritor gaúcho João Gilberto Noll.

O trabalho foi filmado em 2002 e finalizado em 2003, quando concorreu ao 36° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, conquistando o prêmio de melhor ator para o também veterano Paulo César Pereio. Capovilla, sempre identificado com o Cinema Novo e o cinema autoral, diretor de filmes importantes na cinematografia nacional, não perdeu seu estilo.

A história de Harmada é cheia de símbolos que o espectador precisa se dispor a decifrar. Basicamente, trata da grave crise na vida de um protagonista, que se chama simplesmente "O Ator" (Pereio).

O cinema atual tornou-se escravo da verossimilhança e da psicologia. Até na mais descabelada ficção científica encontramos a preocupação com explicações pretensamente lógicas, com nexos de causa e efeito, com motivações pessoais claramente identificáveis, com relacionamentos afetivos análogos aos das telenovelas. Nesse contexto, um filme como Harmada surge como um objeto estranho, ao mesmo tempo incômodo e revitalizador. Assim como o romance de João Gilberto Noll em que se baseou, o longa-metragem de Maurice Capovilla passa ao largo de toda essa tralha superficial para se deter no que interessa: o poder da arte contra a miséria do mundo.

Narra-se aqui um fiapo de história: um ator mambembe e sem nome, referido apenas como Ator, pratica seu ofício em praça pública, ama um punhado de mulheres, junta-se a um grupo de sem-teto, vai parar num asilo, orienta uma jovem atriz. Não há indicações de lugar, de tempo, de antecedentes. Sabemos apenas que entre uma cena e outra passam-se anos, que o Ator sofreu agruras físicas e morais e que sua arte resiste. É um homem sem passado e sem futuro, livre e desmemoriado, que conta histórias para agregar os homens e vencer o horror.

Para transformar em cinema a prosa impalpável de Noll, Capovilla, 68, recorreu a um grupo de veteranos como ele: o ator Paulo César Pereio, o diretor de fotografia Mário Carneiro (o que trabalhava com Glauber Rocha), o operador de câmera Dib Lufti -todos sobreviventes de um cinema que se pretendia mais que uma mera diversão de shopping center. As filmagens em Parati, um cenário atemporal, na fronteira entre o urbano e o rural, acentuam a indeterminação da história. Sem âncoras espaço-temporais, "Harmada" é um filme que flutua, que recomeça a cada cena, que parece não ter um caminho pré-definido.

Duas informações são eloqüentes a respeito do estado em que se encontra hoje o chamado "mercado" para o cinema brasileiro. A primeira é que Harmada é o primeiro longa-metragem realizado por Capovilla desde O Jogo da Vida (1976). Ou seja: o realizador de obras como Bebel, a Garota Propaganda e O Profeta da Fome ficou quase 30 anos sem filmar. A segunda informação é que Harmada disputou em 2003 o Festival de Cinema de Brasília, onde Pereio ganhou, muito merecidamente, o prêmio de melhor ator. Só dois anos depois o filme é jogado bruscamente nas salas de cinema, sem uma campanha adequada de divulgação. Triste cinema brasileiro.

Memória do Saqueio



Nota: 10

Dois sentimentos tipicamente argentinos, o orgulho e a autocomiseração, dão o tom do documentário Memória do Saqueio (Memoria del Saqueo, 2004). O diretor Fernando Solanas louva a massa engajada, as instituições, o potencial produtor, a identidade patriótica do país, mas não se furta ao chororô de um tango para mostrar como armadilhas políticas e econômicas levaram à crise que culminou no já famoso 20 de dezembro de 2001.

Este foi o dia em que o então presidente Fernando De La Rua renunciou, massacrado por protestos populares que a barreira na Praça de Maio não conseguiu impedir. Tido como omisso, o homem eleito como antídoto ao antecessor Carlos Menem se viu inútil diante da raspa neoliberal do tacho. Indústria sucateada, privatizações mal feitas, moeda valendo nada, fuga de capitais estrangeiros, poupanças congeladas, desemprego... As más notícias eram tantas que De La Rua foi retirado da Casa Rosada com proteção policial. Mas Solanas sabe que a culpa não é dele. E parte, então, para um recuo de anos atrás de respostas.

Mesmo antes do menemismo e da ilusão da paridade cambial nos anos 90 (que abria o país aos dólares, nível um para um, mas prejudicava mortalmente as exportações, igualzinho o que aconteceu até 1998 no Brasil) o problema já estava enraizado. Segundo Solanas, remete aos tempos da colônia que se endividava com empresas inglesas - nascedouro da dívida externa que só se inflacionou nas últimas três décadas de política de juros via FMI e Conselho de Washington.

Vale dizer, ainda que a vilanização do Fundo seja evidente, que não se trata do velho berreiro "Fora FMI". Solanas tem dados e reflexões bem fundamentadas a apresentar. E como documentarista esperto - que entre 1962 e 1972 já se exercitava em filmes defendendo as políticas sociais herdadas pelo partido peronista - sabe utilizar a linguagem do cinema a seu favor. Aqui, ele começa mostrando as revoltas na rua de forma picada, com montagem rápida e câmera tremida, para dar a sensação da urgência e da indignação dos justos. Em seguida, ao inverso, abusa de planos longos, vagarosos e sinuosos por salões de bancos, como o trajeto de uma cobra, para associar a ostentação com a corrupção.

Para sorte de Memória do saqueio (e azar da nação), o denuncismo do filme é indiscutível. Não há como negar, diante de uma distribuidora de gás abandonada ou dos números fraudulentos da venda da YPF (ex-estatal de petróleo comprada pela espanhola Repsol), que a fórmula da globalização forçada fez muito mal à Argentina. Como retrato de um período histórico, o documentário cumpre o seu papel. Como reflexão pós-crise, fica devendo, mesmo porque as coisas são recentes, e não deram sinais de melhoras ainda. Mas fica o sonho de que as pessoas se revoltando, se levantando, não aceitando, são apenas o pontapé inicial para um novo mundo. Um novo mundo é possível. Não deixemos apagar essa chama. Lutemos por essa causa. E cineastas engajados como Solanas, incentivam esse tipo de produção, chamando os artistas latino-americanos para a luta. Espero sinceramente que ele instigue alguém, que outros diretores tomem essa iniciativa de denunciar nossos governantes, nossa política, e mostrar a miséria a que submeteram a América Latina.

Casa Vazia



Nota: 7,5

O diretor sul-coreano Kim Ki-Duk ganhou grande reconhecimento no ocidente no ano passado, quando seu Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera fez ótima carreira nos cinemas, inclusive nos brasileiros.

Mas se o filme anterior do diretor era baseado essencialmente em belíssimas paisagens e metáforas budistas - o que deve ter atraído a grande maioria do público - e fazia certas concessões narrativas para torná-lo mais acessível às pessoas deste lado de Greenwich, Casa Vazia (Bin-jip, 2004), seu novo longa, é muito mais honesto e descompromissado. Mas tão simples e bonito quanto o anterior.

O inteligente filme trata de temas também explorados em Primavera..., como aparências, inadaptação e responsabilidade, mas de uma maneira totalmente diferente. Nele, um jovem chamado Tae-Suk (Jae Hee) vive uma existência solitária à margem da sociedade. Habilidoso, invade casas temporariamente vazias para passar a noite, pegando emprestada a vida das famílias que ali vivem. Come, dorme, vê televisão. Como pagamento, faz pequenos serviços domésticos ou arruma aparelhos quebrados.

Numa dessas visitas, encontra uma linda mulher chamada Sun-hwa (Lee Seung-Yeon), vítima de abusos domésticos. Ela também não tem uma vida socialmente convencional, já que é quase prisioneira de sua própria casa. O encontro desperta fortes sentimentos nos dois e Tae-Suk decide resgatá-la, o que o coloca ambos em grande risco, já que o marido traído fica louco por vingança.

Talentoso, Kim Ki-Duk opta por um recurso inusitado para ilustrar a tristeza e o distante comportamente de seus protagonistas. Eles jamais conversam e toda a sua comunicação é corporal. No entanto, as situações são tão bem resolvidas que qualquer diálogo soaria redundante no relacionamento dos dois. Enquanto isso, as pessoas "normais" falam, ameaçam, questionam, e suas vozes ferem os ouvidos acostumados ao silêncio do casal.

Mas o mundo não vê com bons olhos as pessoas que não se adequam às suas regras e convenções. Assim, não tarda para que os dois sejam separados. É nesse momento que o exausto Tae-Suk opta por tornar-se verdadeiramente invisível e o filme ganha ares de fábula de realismo fantástico. É aí também que se escancaram as intenções do diretor, que critica o mundo e, por que não, o próprio cinema. Fora do alcance das lentes, o jovem protagonista some. É quase um aviso: O cinema não precisa necessariamente registrar uma idéia para que ela seja sentida. Imagens. Silêncio.

O que é real? A vida ou os sonhos? Eis a mensagem do final.

A Chave Mestra



Nota: 5,5

Direto ao que interessa: o final de A Chave Mestra (Skeleton Key, 2005) é excelente. Surpreende mas faz sentido, sem reviravoltas gratuitas ou ajeitadas para uma continuação. Tem sadismo na medida e uma frase já antológica, sobre pernas quebradas, que vale o ingresso. E valoriza com justiça o talento da veterana Gena Rowlands (Diário de uma Paixão). Até ali, bem... O resto do filme é mediano.

Como em muitos dos seus pares de gênero, casarões decrépitos são o terreno do terror para o diretor inglês Iain Softley (Hackers, K-Pax). No caso, a chave do título abre as trinta e tantas portas de uma mansão perdida no meio do pântano de Nova Orleans, nascedouro do Blues e terra da mais ferrenha discriminação racial sulista dos EUA. É para lá que ruma Caroline (Kate Hudson), enfermeira de Nova Jersey magoada por ter perdido o pai de repente, sem lhe dar atenção, e que agora se dedica a cuidar de idosos em estado terminal.

Para ter a consciência limpa Caroline não escolhe trabalho. E é preciso mesmo ter o pior dos remorsos para aceitar cuidar de Ben Devereaux (John Hurt), o dono da casa das trinta e tantas portas. Vítima de derrame, sem falar ou se mexer, quando roda os olhos ele demonstra não estar muito à vontade cercado por jardins alagadiços e móveis rançosos - muito menos ao lado de sua esposa, Violet (a impecável Sra. Rowlands). Mas Caroline quer ajudar. Uma vez instalada por lá, porém, ela vai descobrindo uma tenebrosa história. E toma contato com outra peculiaridade regional, a magia negra.

Talvez seja o elenco de apoio aplicado (Peter Sarsgaard, aqui no papel do advogado dos velhinhos, é um dos melhores coadjuvantes de Hollywood), talvez seja o prazer de ver a boneca Kate tomando sustos só de roupa íntima, mas o fato é que o início da encenação desperta um interesse genuíno. A idéia de fazer do casarão sombrio um quase-personagem é batida, sim, assim como a sugestão de que o perigo reside nos confins da vizinhança abandonada. Contudo a situação que é apresentada ao espectador tem até um potencial, mas que vai se esgotando com o passar da história, devido a maneira como o diretor carrega o suspense.

Por exemplo, a sugestão do conflito racial. Logo no começo do filme descobre-se que a casa tinha, no começo do século XX, criados negros que cultivavam os dotes de feitiçaria - logo enforcados quando os patrões brancos descobriram. Daria muito bem para abordar pelo viés das reencarnações, metaforicamente, a vitória atual dos negros de Nova Orleans musical e demograficamente sobre seus antigos algozes. Daria, e com um pouco de boa vontade essa interpretação não é de todo negligenciada.

Outro ponto de interesse é a magia. Normalmente os filmes de terror apresentam duelos desleais: um mortal não tem outra saída senão se render à insistência das almas penadas. Aqui, bastam uns ingredientes bizarros e seguir a invocação ao pé-da-letra para virar um expert. Esse tipo exótico de girl power místico já daria a Caroline uma vantagem - pelo menos para tirar A Chave Mestra da óbvia "maldição do além" e transformá-lo num bom ringue hudu. E a atmosfera dark do filme e toda sua magia negra, nos remete a outro clássico do suspense: Coração Satânico. Só na atmosfera, diga-se de passagem.

O problema é a condução frouxa de Softley. Ele elege o conflito da protagonista com sua consciência e suas crenças como ponto principal, mas ele é esquemático, imposto à força. Enxergar em Ben o pai abandonado é trivial demais, honestamente. A personalidade dela carece de profundidade. Talvez o desfecho do filme seja satisfatório por corrigir esse erro, por dar uma bela saída a Caroline.

25 agosto 2005

Hotel Ruanda



Nota: 8,5

Dizem que em 1945, ao fim da 2ª Guerra Mundial, muita gente não sabia da existência dos campos de concentração nazistas e das atrocidades por lá cometidas. É um fato aceitável, pois estamos falando de algo que ocorreu há quase 50 anos. Era uma época em que não existiam CNN, Al Jazeera, transmissões ao vivo via satélite, muito menos Internet. Mas o que dizer do total descaso quanto às 800 mil pessoas que foram mortas em Ruanda em 1994? E ao que acontece hoje em dia no Congo, no Sudão e em outros países pobres? Esta é a questão que o diretor Terry George encontrou na história verídica de Paul Rusesabagina.

Paul (interpretado por Don Cheadle) conseguiu a muito custo chegar ao posto de gerente do Hotel Des Milles Collines, resquício da "colonização" belga que durou de 1918 a 1962. Outra conseqüência deste período de dominação européia foi o acirramento da divisão do povo ruandês em dois grupos: os Tutsis e os Hutus. Quando chegaram, os belgas se uniram à minoria tutsi, favorecendo-os e privilegiando-os com uma educação ocidental, enquanto a maioria hutu era marginalizada. Em 1926, chegaram a oficializar a divisão étnica, introduzindo carteiras de identidade que explicitavam a ascendência de cada indivíduo. Nos anos 50, quando iniciou-se a mudança para um governo democrático, os belgas deixaram os tradicionalistas tutsis de lado e chegaram até mesmo a apoiar uma revolução hutu, que destituiu os antigos monarcas do poder. Começou, então, uma era de caça aos tutsis, que perderam privilégios como o de freqüentar as universidades e que levou muitos a se exilarem no exterior. Alguns deles se uniram para formar a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), que iniciou guerrilha contra o governo hutu. A disputa entre as duas facções gerou diversas revoltas, assassinatos, emboscadas e massacres, até que em 6 de abril de 1994, após assinatura de um acordo de paz entre governo e FPR, o presidente Habyarimana foi morto por membros do seu próprio partido, que não tardaram em culpar os tutsis e iniciar o maior massacre da história contemporânea.

Paul, um hutu, era casado com a tutsi Tatiana (Sophie Okonedo) e usou todas as suas influências com pessoas ligadas ao governo, guerrilha e militares para salvar a vida de sua família. Como manda-chuva do luxuoso hotel, "um oásis no deserto", ele faz mais do que isso. Salvou 1268 pessoas, refugiados, órfãos, feridos que conseguiram chegar ao hotel e por algum detalhe divino escaparam do triste destino de virarem meras estatísticas na lista de assassinados. Para proteger o local e os "hóspedes", Paul subornou com dinheiro, bebidas, charutos e o que mais tinha à mão e, quando o material acabou, apelou à vaidade alheia e à influência do dono belga (Jean Reno) da rede hoteleira, que tinha ligações próximas com primeiros-ministros e generais.

Mas se bastava uma ligação para que tudo isso se resolvesse, então por que as coisas chegaram a este ponto? Esta é a grande questão. As potências mundiais não se importavam e ainda não se importam com o que acontece na África, o continente mais miserável do mundo e que, por isso mesmo, tem pouca ou nenhuma importância política. Não há, por exemplo, petróleo como no Kuait e no Iraque. A posição geográfica não atrapalha o banho de mar das potências européias, que na verdade ainda conseguiam lucrar com a venda de armas. Então, eles que se matem!

Por tudo o que está escrito acima e pela forma milagrosa como Paul salvou a si mesmo e a tantos outros na capital Kigali, era questão de tempo até que a história virasse filme. Por sorte, caiu nas mãos de Terry George, competente roteirista do também politizado (e premiado) Em Nome do Pai (1993).

O cineasta irlandês não tem problemas em simplificar situações e personagens reais para transformar seu filme em algo mais comercial. O objetivo de Terry George é que o máximo de pessoas possível veja o filme e o que aconteceu em Ruanda. Assim, ele prefere poupar o espectador do banho de sangue, mostrando no seu lugar a não menos impressionante lama de cadáveres. Para completar, a fotografia granulada, que deixa a fita com ares de documentário, e as ótimas atuações tiram Hotel Ruanda (Hotel Rwanda, 2005) do caminho hollywoodiano do drama barato. Há, claro, os maniqueísmos e estereótipos, como o general corrupto e vaidoso (Fana Mokoena), o jornalista (Joaquim Phoenix) que quer mas não consegue mostrar a verdade ao mundo e o comandante das forças da ONU (Nick Nolte) que sofre por sequer poder atirar em quem o ataca, mas a mensagem de que "o buraco é mais embaixo" passa por cima de tudo isso.

Comparando mais uma vez o que fizeram os nazistas ao que aconteceu em Ruanda, pode-se dizer que Paul Rusesabagina foi uma espécie de Oskar Schindler. Como repetia-se incessantemente na rádio hutu, as vidas das pessoas que ele salvou não valiam nada para os rebeldes. "Matem as baratas tutsis e os hutus traidores", difundia a propaganda dos matadores, algo muito parecido com a denominação de "vermes" usada pelos seguidores de Hitler para se referir aos judeus. A diferença é que a maioria das pessoas que Paul salvou continuam miseráveis até hoje e sua forma de agradecimento dificilmente poderá se equiparar ao anel de ouro oferecido pelos judeus ao alemão.

Alila



Nota: 6

"Alila" é uma palavra habraica equivalente ao argumento de uma história. Ironicamente, é justamente argumento o que falta ao filme que leva esse termo no nome.

O que se vê no novo longa-metragem do israelense Amos Gitai é um amontoado de personagens e seus respectivos cotidianos. Os primeiros a serem apresentados são Ezra (Uri Klauzner) e seu filho Eyal (Amit Mestechkin). O pai trabalha de bicos e está indo contratar alguns chineses para erguer uns muros. O jovem está indo para o exército e não está nada animado com a idéia, o que deixa o patriótico pai bastante preocupado. Ele quer que o filho faça como ele, sirva e cresça pelo bem do país. O diálogo entre os dois é filmado da parte de trás da perua e a cada pausa a câmera dá uma olhada para fora, mostrando as ruas por onde passam, no subúrbio de Nehushtan, entre Tel Aviv e Jaffa.

A maior parte da história vai acontecer ao redor do prédio onde Ezra e seus empregados ilegais vão trabalhar. É um imóvel com apartamentos pequenos e de moradores bastante peculiares. O sobrevivente do Holocausto Schwartz (Yosef Varmon) vive com a jovem filipina Linda (Lyn Shiao Zamir), que cuida dele e da casa. Aviram (Lupo Berkowitch) não larga do seu cachorro. Ronit (Ronit Elkabetz) é quem está construindo ilegalmente uma casa, valendo-se pelo fato de ser delegada da cidade. Ela ergue um quarto para sua filha, que vai voltar da faculdade. Esse inclusive é um dos melhores momentos do filme: a ótima atuação de Ronit e a crítica à polícia e seus poderes infinitos.

No último aposento ficam Gabi (Yaël Abecassis) e seu amante Hezi (Amos Lavie). O local é utilizado pelo casal como um ninho de amor, um refúgio para suas escapadelas. Quando alugou o espaço de Ilan (Liron Levo) Hezi pagou adiantado, à vista, e fez questão de ser o mais discreto possível. O mesmo não se pode dizer de Gabi, que grita e geme alto e chama a atenção de todos para o que está acontecendo entre aquelas quatro paredes. Mulher independente, ela sabe muito pouco sobre o amante, mas aceita os encontros pois diz se excitar com este clima de suspense, como se os dois fossem espiões inimigos. A única pessoa com quem ela se abre a respeito desta relação é Mali (Hanna Laslo), ex-esposa de Ezra, mãe de Eyal e atual amante de Ilan.

Percebeu como as coisas funcionam? Nesta trama digna de um longa de Robert Altman todo mundo conhece direta, ou indiretamente todo mundo e, somando-se, formam um quadro da sociedade israelense. Desde os imigrantes que não têm visto para trabalhar à femme fatale que, com suas botas de cano alto e saias provocantes, quer mostrar que agora é ela quem manda.

Livremente adaptado do livro Returning Lost Loves (de Yehoshua Kenaz), Alila (2004) tem como grande problema a falta de ritmo nas histórias, que são contadas em 40 longas seqüências. Se tecnicamente o filme se diferencia ao usar uma estrutura de cenas sem cortes, por outro lado aparece debilitado pela falta de talento dos atores e de conteúdo de alguns personagens. Os defensores de Gitai, que aparece narrando os créditos iniciais, dirão que este é o retrato do dia-a-dia, a realidade do povo israelense neste início de novo século. Seus detratores, no entanto, dirão que é apenas mais um filme lento e chato que começa, termina e não diz nada. E você, de que lado vai ficar?

17 agosto 2005

A Ilha



Nota: 6,5

O ano de 2005 deve ser especial para o californiano Michael Bay. Afinal de contas, é o ano em que ele completa 40 anos de vida e 10 anos da sua estréia em longa-metragem, com o divertido-até-certo-ponto-e-nada-mais-do-que-isso Bad Boys, naquele distante ano de 1995.

Vindo de uma carreira bem-sucedida no terreno da publicidade e dos videoclipes, Bay mostrou-se uma figura adequada a engrossar a turma dos parceiros de Don Simpson e Jerry Bruckheimer, dupla dinâmica de produtores de filmes de ação dos anos 80 e início dos 90. Por essa "escola" passou gente como Tony Scott por exemplo, que afinal de contas não é lá grande referência para o que se convenciona chamar de "arte cinematográfica".

Mas eis que dez anos se passaram após o supracitado Bad Boys e os seguintes A Rocha, Armageddon, Pearl Harbor, e a seqüência de seu filme de estréia Bad Boys II . Bay já não trabalha mais com a dupla Simpson (morto por overdose de cocaína durante a produção de A Rocha) e Bruckheimer, cuja parceria findou após Bad Boys II.

O primeiro filme de Bay sem seu "mestre", A Ilha, chega aos cinemas brasileiros com um impacto tão poderoso quanto os tiros dos dois Bad Boys, os meteoros de Armageddon, ou as nuvens de kamikazes de Pearl Harbor. Não que isso seja necessariamente bom, aliás, bem pelo contrário...

Até que A Ilha tem uma boa premissa. Com nítida inspiração na literatura de Aldous Huxley, desde seu título (homônimo do último romance de Huxley) até o cenário de uma sociedade automatizada (tema presente em boa parte de sua obra), o filme caminha no ritmo esquizofrênico de nenhum plano com mais de quinze segundos em todos os seus 136 minutos de duração.

A Ilha de Bay é um lugar paradisíaco, supostamente o último recanto terreno livre da intoxicação que assolou o planeta no início do século 21. A história se passa num ambiente totalmente controlado, cujos habitantes, sempre vestidos de branco, levam vidas sem objetivo, supostamente protegidos da contaminação mundial resultante de um desastre ecológico. Uma sociedade de seres autômatos e indiferentes entre si, controlada por, entre outras coisas, uma "loteria", que define quem vai para a tal ilha. O que acontece é que nesta ilha as coisas não são paradisíacas quanto se costuma mostrar na esquizóide chamada para a tal loteria. O espectador sabe desde o começo que essa tese é falsa. Na verdade, uma força policial onipotente monitora todas as funções corporais, é obcecada com a "proximidade" entre homens e mulheres na população, que vive quase segregada, e fala dos moradores, pelas costas, como "produtos".

Michael Bay mostra habilidade nas cenas de ação, apesar de muitas e na sua maioria descartáveis, breguice no uso da música, avidez em mostrar marcas famosas (aparecem, em destaque, as marcas da Microsoft, da Chevrolet, da Puma, entre outras) e, acima de tudo, sua enorme falta de competência em dirigir elenco, mesmo contando com bons nomes como Ewan Mcgregor, Scarllet Johansson, Steve Buscemi e Michael Clarke Duncan.

Existe uma lei infalível no cinema que reza que, assim que Steve Buscemi (McCord) aparece num filme, todos os melhores diálogos e as partes cômicas automaticamente funcionam. Em A Ilha, a mesma coisa acontece, e o ator, praticamente sozinho, faz o motor do filme pegar no tranco. Quando ele deixa a história repentinamente, sua ausência é verdadeiramente sentida.

O resto do filme é animado por dois elementos. O primeiro são as perseguições absurdas que acontecem nas autopistas e vias aéreas do futuro. O segundo elemento é McGregor representando tanto o Lincoln original quanto seu clone, um com sotaque escocês e o outro falando como norte-americano. Numa cena espantosa de luta, usando câmeras de controle de movimento, McGregor chega a lutar com ele mesmo.

O filme caminha bem até a metade, com idéias muito interessantes e instigantes, mas depois se perde, quando Bay resolve voltar às suas origens.

Água Negra



Nota: 7

Hollywood não costuma inventar em matéria de remake. Às vezes, até contrata o mesmo diretor para fazer o mesmo filme, renovando apenas o elenco - como foi o caso de Takashi Shimizu, autor de O Grito oriental e do ocidental. Mas não surge como boa notícia, entretanto, o nome de Walter Salles na direção de Água Negra (Dark Water, 2005), refilmagem estadunidense de Honogurai Mizu No Soko Kara (de Hideo Nakata, 2002). Com a aproximação do diretor da indústria de Hollywood,o filme tem gerado comparações entre Walter Salles e Alejandro Amenábar, diretor do bem-sucedido Os Outros (2001). Diferentemente da boa recepção que a obra do cineasta chileno teve, o olhar morno da crítica para o filme de Salles fica evidente em opiniões como a de Chris Barsanti, do site Filmcritic: “A admirável simplicidade e clima envolvente de Água Negra são boicotados em momentos por um roteiro longe de ser refinado”.

A estréia do diretor de Central do Brasil (1998) e Diários de Motocicleta (2004) no gênero do terror, não é de todo ruim. Não interessa a Salles, ainda que se mantenha fiel à premissa original, pregar sustos fáceis. O filme de Nakata já era bem econômico neste sentido, mas tinha lá seus vultos no espelho, no elevador, suas crianças correndo diante de portas abertas. Salles reduz ainda mais esse tipo de recurso barato, mas ainda assim as cenas são excessivas e as vezes irritantes. Portanto, o novo filme de Walter Salles, deve ser encarado como uma produção norte-americana dirigida por um brasileiro. Assim, evitam-se possíveis expectativas geradas pela trajetória do diretor.

O brasileiro sabe que sustos só servem para extravasar a tensão psicológica que ele faz questão de represar. O único artifício que Salles preserva é, evidentemente, o líquido lodoso que sai de torneiras e pinga do teto. Já reparou como todo filme de terror tem o seu problema de encanamento, com banheiras transbordando? Pois aqui a água, protagonista, está por todo lado.

Não pára de chover em Roosevelt Island, anexo pobre de Manhattan, com seus prédios customizados para abrigar centenas de famílias. É para lá que se muda Dahlia (Jennifer Connelly) com sua filha Ceci (Ariel Gade, um achado) depois de se separar do marido (Dougray Scott). Ele reclama da distância, diz que é provocação para dificultar suas visitas, ameaça pedir a guarda da menina na justiça. Dahlia diz que o aluguel barato, o metrô e a escola na porta de casa contaram mais. Mas basta ver o apartamento para conferir o sacrifício que elas fazem. O lugar é um buraco.

O malandro Mr. Murray (John C. Reilly), administrador do prédio, tenta dissimular o indisfarçável. "É a chuva", diz ele, diante das goteiras que dominam o cubículo apertado, escuro, depressivo. Bem, Dahlia não demora para descobrir que o problema não é a chuva.

Até aqui, a fotografia de Affonso Beato - veterano de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Deus é Brasileiro (2003), entre outros, em sua primeira colaboração com Salles - dá conta de instaurar o ambiente tenebroso. Não falta clima assustador ou repulsivo na parte inicial de Água Negra, que mostra a mãe recém-divorciada e sua filha pequena alugando um apartamento deprimente num conjunto de monolitos de concreto na Roosevelt Island. É o tipo de lugar que faria o apartamento visto em O Inquilino, de Roman Polanski, parecer acolhedor. Assim, não surpreende que uma repulsiva mancha de água escura que começa a se formar no teto só pode conduzir mãe e filha a algo pior.

A grande sacada do diretor, a partir deste ponto, é intercalar manifestações sobrenaturais com evidências de que elas são só paranóia de Dahlia. Manter o pé no naturalismo, até onde for possível, é importantíssimo dentro da sua proposta: tratar da família.

Afinal, a preocupação da personagem de Jennifer Connelly (que compreendeu bem o que o diretor queria) é manter a filha ao seu lado. O marido reclama, seu emprego paga mal, a escola da menina não vai bem e o teto periga desabar em sua cabeça. Tudo conspira para afastar as duas - e, na visão de Dahlia, a estranheza que toma o apartamento é apenas parte dessa conspiração.

Nakata, também criador de O Chamado original, não tem essa preocupação - ou esse cuidado, dependendo do ponto de vista - porque a sociedade japonesa é menos emotiva - ou sentimentalóide, dependendo também do ponto de vista. E os suspenses japoneses atuais são prioritariamente detetivescos. Tem-se um mistério do além e tem-se uma pessoa, afetada por uma espécie de maldição, que só se libertará quando solucioná-lo. Água Negra funciona melhor que o original porque não privilegia o fantasma, mas a maldição; não a causa, mas o efeito.

Salles e o roteirista Rafael Yglesias (Sem Medo de Viver) mergulham até profundidades psicológicas realmente turvas que guardam relação estreita com os problemas de Dahlia, ligados ao sentimento de abandono e do isolamento de quem vive numa cidade grande.

Quando, finalmente, o dilúvio inevitável acontece, podemos quase ouvir o refrão "Ah, Look at All the Lonely People", de Lennon e McCartney, ao lado da água que goteja e dos sussurros sinistros que descem pelas paredes. Não falta ambiente cheio de suspense. O espectador consegue praticamente sentir o cheiro da umidade sufocante presente na fotografia expressiva de Affonso Beato, repleta de sombras. Para acrescentar à textura diferenciada há a trilha sonora de Angelo Badalamenti, colaborador frequente de David Lynch.

O Castelo Animado



Nota: 9,5

Sofisticado e inteligente, O castelo animado (Hauru No Ugoku Shiro, 2004) é mais um triunfante longa-metragem de Hayao Miyazaki, dono de um Oscar por A Viagem de Chihiro e criador de clássicos como Princesa Mononoke (que permanece estupidamente inédito no Brasil), Meu Amigo Totoro e Porco Rosso, entre tantos outros.

Conhecido pelas personagens femininas fortes - apesar de jovens -, fascinantes criaturas e belíssimos cenários surrealistas, Miyazaki coloca um novo e relevante elemento em O Castelo Animado: um manifesto contra a guerra. A industrialização desenfreada já havia sido duramente combatida no ecológico Princesa Mononoke, mas agora o cineasta japonês aponta seus holofotes criativos aos conflitos mundiais.

A crítica é realizada com o bom-humor habitual, mas com um visão um tanto mais sombria que sua produção passada, graças à seriedade do tema. Guerras em larga escala entre feiticeiros e impressionantes máquinas de destruição desfilam pela telona, mas há espaço também para o alívio cômico - seja ele um cãozinho asmático ou um garotinho disfarçado de ancião. Miyazaki faz pensar, mas também dá espaço ao sorriso.

Como se o roteiro inteligente não fosse suficiente, a produção dá também um tapa na cara de quem acredita que a animação tradicional está morta e enterrada. A computação gráfica é utilizada apenas para as cenas que seriam caras demais para serem animadas da maneira convencional, mas o grosso do filme é mesmo desenhado manualmente (e boa parte dela pelo diretor japonês de 64 anos!).

A idéia básica do filme trata de um feiticeiro errante, Howl, e sua rebeldia em deixar-se arrastar para a guerra. Mas entrelaçadas aí estão as histórias de uma jovem vítima de um feitiço de envelhecimento, a rivalidade entre duas bruxas e o destino de um pequeno, mas poderoso, demônio do fogo, Calcifer. Miyazaki desenvolve com habilidade cada um desses personagens e nos mostra todas as suas facetas, revelando corações e almas como poucos filmes - animados ou não - conseguem. Sob a batuta desse mestre a animação japonesa encontra outra vez o realismo fantástico e o surrealismo. Eventos decisivos na Segunda Guerra Mundial, como os bombardeios a Londres e Pearl Harbor, ocorrem num mundo em que Howl se esconde em um castelo com pés de galinha, por exemplo. É justamente esse poder narrativo que seduz o espectador, desejoso de conhecer as sutilezas e motivações de todos.

A história é adaptada do romance de fantasia da escritora britânica Diana Wynne Jones e foi um avassalador sucesso no Japão, onde as obras do diretor são reverenciadas e não param de se superar. Nos Estados Unidos fez apenas uma fração do que o mais estúpido dos desenhos animados costuma gerar. Algo lamentável, se considerarmos que as crianças que mais precisavam ter lições sobre humanidade e entendimento são justamente as que menos se interessam por elas. Mas é algo até fácil de ser entendido, já que mercadologicamente O castelo animado foi considerado inteligente demais para o grande público estadunidense já que, como na vida, ele não traz distinção clara entre o Bem e o Mal, entre outros aspectos que exigem atenção.

Mas antes que você pense que por aqui a coisa é muito diferente, saiba que Chihiro estreou por aqui atrás do Didi: O Cupido Trapalhão, As Panteras Detonando e até de Cruzeiro das Loucas. Aparentemente, também temos muito o que aprender... Que tal ajudar a mudar esse quadro?

É um belíssimo filme, uma verdadeira obra de arte, com uma mensagem riquíssima. Se as crianças fossem educadas dessa forma no ocidente, se elas não fossem tratadas como mero consumidores mirins, talvez a realidade fosse outra por esses lados do oceano.

10 agosto 2005

Nem Tudo é o que Parece



Nota: 7

Um filme inteligentemente montado, tem personagens interessantes e humor cáustico. Ao todo, pode-se dizer que supera um pouco outros trabalhos britânicos recentes do mesmo gênero, mesmo que não tenha muitas novidades a nos apresentar. É humor britânico, com uma boa trilha sonora e muitas reviravoltas.

Matthew Vaughn, que produziu Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch - Porcos e Diamantes, faz sua estréia na direção com um filme muito mais maduro do que os de seu antigo sócio, Guy Ritchie, que dirigiu os dois acima citados.

Neste novo filme, o que os criminosos esquecem de levar em conta é que o mundo do crime, como o sistema britânico de classes, é composto de camadas. E quando alguém esquece a camada à qual pertence, isso pode ser perigoso. Isso explica o título original do filme, Layer Cake - Bolo de Camadas.

Daniel Craig faz o protagonista da história, um sujeito aparentemente inteligente, cujo nome nunca chega a ser citado e que vive bem com os lucros de um empreendimento de distribuição de drogas.

A vida é tão boa, afirma, que ele pode sentir o gosto dela em sua saliva. O homem que produz as drogas que ele vende é formado em química industrial pela Universidade Cambridge, e seu guarda-costas, Morty (George Harris), esconde seu pendor por violência extrema debaixo de uma fachada civilizada.

O personagem está fazendo planos para aposentar-se do negócio quando um vilão chamado Jimmy Price (Kenneth Cranham), vindo de uma camada um pouco superior à dele no bolo social do mundo criminoso, lhe pede determinado favor que envolve vender um carregamento enorme de comprimidos de ecstasy.

O que nosso protagonista não sabe é que os comprimidos foram roubados, em circunstâncias sangrentas, por um sujeito desagradável chamado Duke (Jamie Foreman), saído de uma camada muito inferior à dele.

Pouco tempo depois, o proprietário original do carregamento - um homem que vive em Amsterdã, usa um matador sérvio como seu capanga pessoal e está extremamente irritado - está no rastro das pílulas roubadas.

Também fazem parte da história um intermediário muito bem relacionado chamado Gene (Colm Meaney) e um cavalheiro bem apessoado vindo da camada superior, Eddie Temple (Michael Gambon).

Haverá muitos cortes no bolo e grande quantidade de sangue derramado até que um ou outro dos personagens fique com o recheio do bolo, enquanto para outros sobram apenas as migalhas.

Usando locações londrinas de maneira criativa, Vaughn e sua equipe técnica de primeira linha oferecem ao espectador uma história moral moderna extremamente interessante, repleta de sacadas engenhosas e viradas inesperadas. Bom divertimento.

Tartarugas Podem Voar



Nota: 8,5

Imagine-se dormindo todo agasalhado na noite mais fria do ano. De repente, alguém que você não conhece entra no quarto, puxa as cobertas, enche-lhe de porrada com um pedaço de madeira. Vai embora e você, todo sonolento e roxo, fica sem entender o que aconteceu.

Era mais ou menos essa a sensação que o longa-metragem de estréia de Bahman Ghobadi, Tempo de Embebedar Cavalos (2000), sobre irmãos largados à sorte no Irã, deixava no espectador. Quem passou pela experiência não esquece. Hoje, pode até apanhar de novo, mas não será pego de surpresa.

Será mesmo? Tartarugas Podem Voar (2004), o quarto filme de Ghobadi, segundo a estrear no Brasil, retrata um acampamento curdo na fronteira entre o Irã e o Iraque, nos dias que antecedem a invasão dos Estados Unidos, em março de 2003, e mostra como a rotina bélica muda a vida dos mais jovens. Parece pessimista, a criticar tanto Bush quanto Saddam, mas começa leve.

O lugar é cercado de montanhas, o sinal das TVs custa a chegar. Assim, faz sucesso por lá um garoto, apelidado Satélite, por sua perícia em instalar parabólicas e pelo seu conhecimento da cultura descartável dos EUA. Os chefes religiosos do acampamento o chamam para traduzir o noticiário da CNN. Mas Satélite mal fala inglês. E enquanto sintoniza os canais, os velhos tampam os olhos diante de videoclipes, essas "imagens proibidas" do lascivo Ocidente.

Essa crônica tem evidente sentido cômico. Satélite e seu sotaque histriônico são a caricatura do mundo globalizado. Ghobadi parece arriscar um caminho interessante, o da crítica por meio do riso. Mas logo o diretor tira a clava que escondia às costas. Entre outras atividades, Satélite organiza um grupo de garotos, pelo menos vinte deles. A missão de todo dia: desativar minas terrestres e vendê-las.

A idéia em si já parece sinistra - "é óbvio que alguém uma hora vai se explodir", é legítimo pensar - mas do iraniano pode se esperar mais. Surgem dois irmãos e uma criança de colo cega. A menina fala muito pouco, mesmo quando Satélite visivelmente se interessa por ela, parece enfastiada de carregar o menor por todo lado. O mais velho não tem os braços. Vive, ele também, de desativar as minas. Faz o serviço com a boca.

A lembrança de outros irmãos, os de Tempo de Embebedar Cavalos, vem à mente. São dramas parecidos: desamparo diante da falta de ajuda, desesperança com a violência do mundo ao redor. Ghobadi evolui, ao menos na crueldade das imagens. Em certo momento o garoto cego se perde da menina em meio a um amontoado de sucatas, cápsulas vazias de artilharia antiaérea. Tateia à sua volta, tenta reconhecer aqueles cilindros de latão. Eis uma marca do trabalho do cineasta: andar no fio estreito que separa a dureza poética da mera desumanidade.

O cinema asiático se inclina a inventar títulos metafóricos para seus filmes. Tartarugas que voam, camelos que choram, cavalos que bebem... O exercício de desvendá-los é um bom desafio à reflexão. Mas é bom antecipar que aquela surra de 2000 se repetirá. E é bom dizer também que não adiantou muito ter sofrido a primeira: essa é mais fria, mais dura, feridas de guerra são mais fundas, machucam mais.

07 agosto 2005

Sin City



Nota: 8

Colecionador da série policial em quadrinhos Sin City desde 1992, quando o primeiro volume da série policial chegou às lojas, o prolífico Robert Rodriguez empolgou-se em realizar um longa-metragem baseado na obra. Doze anos se passaram até que ele finalmente encontrasse o tempo e os recursos necessário para fazê-lo. No entanto, havia uma problema... Frank Miller, o consagrado quadrinhista criador desta e de tantas outras HQs que mudaram a cara da nona arte nas décadas de 1980 e 90, não tinha intenção de vender os direitos para transformar sua obra autoral em filme.

Rodriguez, felizmente, não se deu por vencido. Preparou por conta própria um curta-metragem com Josh Hartnett no papel principal e apresentou-o a Miller. As opções apresentadas ao quadrinhista pelo cinesta foram bastante simples: se ele gostasse do que viu, os dois fariam o filme juntos. Do contrário, o criador teria um curta bacana pra mostrar para os amigos. "O vídeo tinha três minutos de duração. Quando cheguei ao final do primeiro minuto, parei e disse 'o que quer que venha depois disso, pode contar comigo'", comentou empolgado Miller em entrevista à revista Empire.

E o roteirista e ilustrador de Batman: O Cavaleiro das Trevas tinha razão para lançar-se no projeto tão apaixonadamente. O que ele viu era prova suficiente de que Sin City, HQ noir ilustrada em alto contraste, sem tons de cinza, podia sim ser adaptada para o cinema.

Com o aval do mestre, Rodriguez deixou a Associação dos Diretores da América (eles não permitem co-direções quando os cineastas já têm nomes estabelecidos) e além de co-dirigir, como já virou mania em seus filmes, ele também montou, produziu, compôs parte da trilha, editou sons, supervisionou efeitos especiais, dirigiu a fotografia e até operou câmeras da adaptação.

De fato, chamar o longa-metragem de adaptação é falar bobagem. Não houve concessão alguma ali. Cada plano do filme, cada diálogo é diretamente extraído da obra em quadrinhos. Os tons de cinza até aparecem (ficaria estranhíssimo se não existissem), mas o contraste é diferente de tudo o que já foi produzido na indústria do cinema até hoje. Para obter tal requinte estilístico, Rodriguez rodou toda a produção com fundos verdes - croma-keys - que mais tarde foram substituídos por pretos e brancos totais, tons há muito buscados e pouco obtidos por diretores de fotografia de todo o mundo. A cor, como no quadrinho, só é utilizada quando tem relevância total para a história. O sangue é vermelho quando o filme pede que soframos por um personagem, o vilão é amarelo quando o asco precisa ser evidenciado.

A história do filme combina três volumes da série - The Hard Goodbye, The Big Fat Kill e That Yellow Bastard - mais uma introdução. Cada uma traz em seu elenco nomes invejáveis de Hollywood.

A primeira, sem dúvida a melhor, coloca o desacreditado Mickey Rourke de volta ao mundo dos vivos na Meca do Cinema. Sua dramática e dinâmica interpretação do durão tanque de guerra Marv, um truculento ex-criminoso em busca de vingança pela morte de uma prostituta, é tão memorável quanto a noite de amor que ele piedosamente recebe da profissional.

The Big Fat Kill, a segunda, é a mais engraçada, mas também a menos empolgante. Ela trata de uma guerra entre policiais corruptos e as prostitutas da Cidade Velha de Sin City, donas de seu próprio pedaço e de um arsenal capaz de fazer cair o queixo de qualquer chefe de morro carioca. No centro desse confronto estão Jackie Boy (Benicio Del Toro, engraçadíssimo), Dwight (Clive Owen, com a competência habitual) e a chefe das amantes de aluguel, Gail (Rosario Dawson). Apesar dos diretores afirmarem que o tiroteio final foi propositalmente feito de forma cartunesca - com os personagens parecendo figuras recortadas diante do cenário 3-D -, a impressão é de que, nesta seqüência, eles erraram a mão. Mas eles têm crédito. Principalmente porque fica neste segmento a divertida cena filmada por Quentin Tarantino em que Dwight e o cadáver de Jackie Boy dirigem por uma rodovia enquanto travam um diálogo bizarro.

Dividida em duas partes, That Yellow Bastard é a mais violenta das três. A história traz Bruce Willis como Hartigan, um detetive durão (ok, vc já entendeu... TODOS os anti-heróis de Sin City são durões), que passa oito anos numa prisão infernal depois de impedir que o filho pedófilo de um influente político local faça mais uma vítima. Muito falou-se também sobre a participação da sexy (se existisse um superlativo para sexy essa palavra caberia perfeitamente aqui) Jessica Alba como a "pequena" Nancy Callahan. A falação é justificada. A linda atriz de traços latinos vive uma striper que só não mata ninguém do coração na platéia porque não tira a roupa (ela disse que ficaria "desconfortável" ficando nua no filme).

Sensual, cruel e engraçado, Sin City beira a perfeição. A atmosfera noir - o submundo de uma cidade corrupta, onde transitam vigaristas, assassinos, vigilantes e mulheres fatais - lembra grandes capitais como São Paulo. Trata-se aqui de um cinema maneirista, que busca o artifício acima das verdades. Tarantino sempre dominou essa linguagem e faz filmes de estética consistente. Mas para Robert Rodriguez - o diretor-titular do filme, autor de diversões como A Balada do Pistoleiro e Um Drink no Inferno - o salto de qualidade é inegável. Porque onde antes só havia cenas de efeito, em Sin City existem personagens bem desenhados e complexos e um sentimento de melancolia que permeia um universo negro e imoral.

Parece incrível, mas Sin City é a primeira vez que a HQ é reconhecida como arte por uma outra que até hoje só tinha se aproveitado dela na superfície.

01 agosto 2005

A Fantástica Fábrica de Chocolate



Nota: 8,5

A história do filme você deve conhecer. O recluso Willy Wonka decide lançar um concurso mundial para escolher quem poderá visitar sua fantástica fábrica, fechada para o mundo há 15 anos. Assim, cinco crianças sortudas - incluindo o garoto pobretão Charlie - encontram bilhetes dourados nas barras de chocolate Wonka e ganham uma turnê pela lendária fábrica de doces, iniciando uma incrível jornada...

Trata-se de um dos clássicos mais queridos da Sessão da Tarde dentre a turma dos 20 e muitos: A Fantástica Fábrica de Chocolate (Willy Wonka & the Chocolate Factory, 1971). Tendo o consagrado Gene Wilder como o excêntrico chocolateiro, a fantasia sobreviveu ao teste do tempo, cativando também novas gerações e, melhor ainda, ganhou status de ícone pop. Quem não se lembra da música dos Umpa-Lumpas que atire o primeiro bombom.

Com tanto carinho pela obra cinematográfica, era de se esperar que houvesse uma enxurrada de reclamações para a Warner Bros quando foi anunciada a sua refilmagem. Não foi o caso. Logo de início a Warner Bros informou que o responsável pela nova adaptação do livro do britânico Road Dahl (1916-1990) seria Tim Burton, sujeito quase tão peculiar quanto o personagem principal da aventura.

E Burton não decepcionou. Não só traduziu em incríveis - e quase narcóticas! - imagens os cenários imaginados por Dahl (ok, algo que o filme de 1971 também fez com louvor), como também expandiu conceitos do livro e eliminou arestas do primeiro longa.

Novamente trabalhando ao lado de John August, roteirista de Peixe Grande, Burton propõe uma nova interpretação do texto de Dahl com uma exploração do passado de Wonka, em busca dos motivos que o tornaram um solitário fabricante de doces. O desenvolvimento da novidade é um tanto batido, mas se encaixa perfeitamente na trama. Afinal, se ela tivesse sido criada pelo próprio Dahl talvez não tivesse ficado muito diferente, já que o autor e Burton são parecidíssimos em seu senso de humor levemente distorcido.

Outra cena que encontrou pela primeira vez o caminho das telas foi a da Sala das Nozes. Originalmente convertida no cinema em uma Sala de Gansos dos Ovos de Ouro, a seqüência exigia dezenas de esquilos treinados, algo que deve ter assustado o diretor do original, Mel Stuart. Mas hoje em dia, em tempos digitais, nada mais fácil que colocar 40 Ticos e Tecos em cena. Felizmente, Burton não pensa assim, em termos de zeros e uns. O cineasta enfiou quarenta bichos de verdade em seu filme! E eles fazem valer a opção pelo realismo. O momento em que a menina Veruca é subjugada pelas fofuras peludas seria aterrador, não fosse o contexto pastelão. Sabe a cena do cavalo em O Chamado? Com o reflexo de Naomi Watts nos olhos do eqüino? É quase a mesma coisa aqui. Só mesmo Burton pra incorporar algo assim num filme infantil e passar incólume.

Mais uma das maravilhosas excentricidades do diretor é a Sala de Televisão. Homenagem estética explícita ao mestre Stanley Kubrick, a cena chega ao cúmulo de incorporar momentos antológicos de 2001 - Uma Odisséia no Espaço à ação. A criançada, claro, não entende patavina, mas as gargalhadas adultas preenchem a sala. Isso sim é "diversão pra toda a família".

Burton também foi felicíssimo na escalação do elenco. Todas as crianças - Augustus (Philip Wiegratz), Veruca (Julia Winter), Mike (Jordan Fry) e Violet (AnnaSophia Robb) - maquiadas e vestidas de forma a parecerem caricatos estereótipos de má-criação, estão perfeitas. O bonzinho Charlie (Freddie Highmore) faz aquelas carinhas chorosas que já havia mostrado ao mundo em Em Busca da Terra do Nunca e o excelente David Kelly faz um vovô Joe saído diretamente das páginas de Dahl. Mas é na retomada de sua parceria com Johnny Depp que Burton é ainda mais feliz, já que quanto mais bizarro o papel, mais o ator parece empenhar-se em construí-lo.

Há dois anos, Depp apresentou ao mundo o engraçadíssimo pirata Jack Sparrow, o Keith Richard da época das grandes navegações. Agora, cria um Wonka que chega a ser perturbador de tão estranho. A referência imediata ao personagem tem nome: Michael Jackson, ele também um rei das esquisitices. A pele alva, a voz suave, as roupas extravagantes e a vida numa terra de contos de fadas do chocolateiro remetem imediatamente ao rei do pop. Mas Depp, provavelmente preocupado com a polêmica que o nome de Jackson ainda causa com suas terríveis acusações, nega tudo. "Eu diria, se tivesse que compará-lo com alguém, que seria mais um Howard Hughes, tipo reclusivo, bacterofobo, possessivo...", tentou explicar o astro, sem sucesso. Afinal, se existe alguém pior que Jackson é o "Aviador" Hughes. E não falo da versão bonitinha recém-divulgada nas telas por Martin Scorsese! De qualquer forma, o Wonka de Burton/Depp é sinistro, trágico e hilariante. Tudo ao mesmo tempo. Igualzinho ao do livro.

E se tudo parece incrivelmente divertido até aqui, ainda nem cheguei na melhor parte. Os novos Umpa-Lumpas (todos interpretados pelo anão Deep Roy) são espetaculares. Literalmente. Todos os números musicais, compostos e cantados por Danny Elfman, são uma espécie de Moulin Rouge infantil. Os ritmos, figurinos e coreografias se alternam num frenesi criativo surpreendente. Heavy metal, Rap, Beatles, a Hollywood clássica e tantas outras referências desfilam na telona. Nunca a cantoria num filme infantil foi tão bem-vinda!

Com tantos pontos positivos, dá pra afirmar que A Fantástica Fábrica de Chocolate (agora batizada em inglês como Charlie and the Chocolate Factory) de Burton não só conseguiu ser o filme mais legal da temporada de férias 2005, como também será lembrado pelas novas gerações com o mesmo carinho que o original. Sem dúvida, um longa digno da gloriosa Sessão da Tarde!