10 agosto 2005

Tartarugas Podem Voar



Nota: 8,5

Imagine-se dormindo todo agasalhado na noite mais fria do ano. De repente, alguém que você não conhece entra no quarto, puxa as cobertas, enche-lhe de porrada com um pedaço de madeira. Vai embora e você, todo sonolento e roxo, fica sem entender o que aconteceu.

Era mais ou menos essa a sensação que o longa-metragem de estréia de Bahman Ghobadi, Tempo de Embebedar Cavalos (2000), sobre irmãos largados à sorte no Irã, deixava no espectador. Quem passou pela experiência não esquece. Hoje, pode até apanhar de novo, mas não será pego de surpresa.

Será mesmo? Tartarugas Podem Voar (2004), o quarto filme de Ghobadi, segundo a estrear no Brasil, retrata um acampamento curdo na fronteira entre o Irã e o Iraque, nos dias que antecedem a invasão dos Estados Unidos, em março de 2003, e mostra como a rotina bélica muda a vida dos mais jovens. Parece pessimista, a criticar tanto Bush quanto Saddam, mas começa leve.

O lugar é cercado de montanhas, o sinal das TVs custa a chegar. Assim, faz sucesso por lá um garoto, apelidado Satélite, por sua perícia em instalar parabólicas e pelo seu conhecimento da cultura descartável dos EUA. Os chefes religiosos do acampamento o chamam para traduzir o noticiário da CNN. Mas Satélite mal fala inglês. E enquanto sintoniza os canais, os velhos tampam os olhos diante de videoclipes, essas "imagens proibidas" do lascivo Ocidente.

Essa crônica tem evidente sentido cômico. Satélite e seu sotaque histriônico são a caricatura do mundo globalizado. Ghobadi parece arriscar um caminho interessante, o da crítica por meio do riso. Mas logo o diretor tira a clava que escondia às costas. Entre outras atividades, Satélite organiza um grupo de garotos, pelo menos vinte deles. A missão de todo dia: desativar minas terrestres e vendê-las.

A idéia em si já parece sinistra - "é óbvio que alguém uma hora vai se explodir", é legítimo pensar - mas do iraniano pode se esperar mais. Surgem dois irmãos e uma criança de colo cega. A menina fala muito pouco, mesmo quando Satélite visivelmente se interessa por ela, parece enfastiada de carregar o menor por todo lado. O mais velho não tem os braços. Vive, ele também, de desativar as minas. Faz o serviço com a boca.

A lembrança de outros irmãos, os de Tempo de Embebedar Cavalos, vem à mente. São dramas parecidos: desamparo diante da falta de ajuda, desesperança com a violência do mundo ao redor. Ghobadi evolui, ao menos na crueldade das imagens. Em certo momento o garoto cego se perde da menina em meio a um amontoado de sucatas, cápsulas vazias de artilharia antiaérea. Tateia à sua volta, tenta reconhecer aqueles cilindros de latão. Eis uma marca do trabalho do cineasta: andar no fio estreito que separa a dureza poética da mera desumanidade.

O cinema asiático se inclina a inventar títulos metafóricos para seus filmes. Tartarugas que voam, camelos que choram, cavalos que bebem... O exercício de desvendá-los é um bom desafio à reflexão. Mas é bom antecipar que aquela surra de 2000 se repetirá. E é bom dizer também que não adiantou muito ter sofrido a primeira: essa é mais fria, mais dura, feridas de guerra são mais fundas, machucam mais.