17 agosto 2005

Água Negra



Nota: 7

Hollywood não costuma inventar em matéria de remake. Às vezes, até contrata o mesmo diretor para fazer o mesmo filme, renovando apenas o elenco - como foi o caso de Takashi Shimizu, autor de O Grito oriental e do ocidental. Mas não surge como boa notícia, entretanto, o nome de Walter Salles na direção de Água Negra (Dark Water, 2005), refilmagem estadunidense de Honogurai Mizu No Soko Kara (de Hideo Nakata, 2002). Com a aproximação do diretor da indústria de Hollywood,o filme tem gerado comparações entre Walter Salles e Alejandro Amenábar, diretor do bem-sucedido Os Outros (2001). Diferentemente da boa recepção que a obra do cineasta chileno teve, o olhar morno da crítica para o filme de Salles fica evidente em opiniões como a de Chris Barsanti, do site Filmcritic: “A admirável simplicidade e clima envolvente de Água Negra são boicotados em momentos por um roteiro longe de ser refinado”.

A estréia do diretor de Central do Brasil (1998) e Diários de Motocicleta (2004) no gênero do terror, não é de todo ruim. Não interessa a Salles, ainda que se mantenha fiel à premissa original, pregar sustos fáceis. O filme de Nakata já era bem econômico neste sentido, mas tinha lá seus vultos no espelho, no elevador, suas crianças correndo diante de portas abertas. Salles reduz ainda mais esse tipo de recurso barato, mas ainda assim as cenas são excessivas e as vezes irritantes. Portanto, o novo filme de Walter Salles, deve ser encarado como uma produção norte-americana dirigida por um brasileiro. Assim, evitam-se possíveis expectativas geradas pela trajetória do diretor.

O brasileiro sabe que sustos só servem para extravasar a tensão psicológica que ele faz questão de represar. O único artifício que Salles preserva é, evidentemente, o líquido lodoso que sai de torneiras e pinga do teto. Já reparou como todo filme de terror tem o seu problema de encanamento, com banheiras transbordando? Pois aqui a água, protagonista, está por todo lado.

Não pára de chover em Roosevelt Island, anexo pobre de Manhattan, com seus prédios customizados para abrigar centenas de famílias. É para lá que se muda Dahlia (Jennifer Connelly) com sua filha Ceci (Ariel Gade, um achado) depois de se separar do marido (Dougray Scott). Ele reclama da distância, diz que é provocação para dificultar suas visitas, ameaça pedir a guarda da menina na justiça. Dahlia diz que o aluguel barato, o metrô e a escola na porta de casa contaram mais. Mas basta ver o apartamento para conferir o sacrifício que elas fazem. O lugar é um buraco.

O malandro Mr. Murray (John C. Reilly), administrador do prédio, tenta dissimular o indisfarçável. "É a chuva", diz ele, diante das goteiras que dominam o cubículo apertado, escuro, depressivo. Bem, Dahlia não demora para descobrir que o problema não é a chuva.

Até aqui, a fotografia de Affonso Beato - veterano de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), Deus é Brasileiro (2003), entre outros, em sua primeira colaboração com Salles - dá conta de instaurar o ambiente tenebroso. Não falta clima assustador ou repulsivo na parte inicial de Água Negra, que mostra a mãe recém-divorciada e sua filha pequena alugando um apartamento deprimente num conjunto de monolitos de concreto na Roosevelt Island. É o tipo de lugar que faria o apartamento visto em O Inquilino, de Roman Polanski, parecer acolhedor. Assim, não surpreende que uma repulsiva mancha de água escura que começa a se formar no teto só pode conduzir mãe e filha a algo pior.

A grande sacada do diretor, a partir deste ponto, é intercalar manifestações sobrenaturais com evidências de que elas são só paranóia de Dahlia. Manter o pé no naturalismo, até onde for possível, é importantíssimo dentro da sua proposta: tratar da família.

Afinal, a preocupação da personagem de Jennifer Connelly (que compreendeu bem o que o diretor queria) é manter a filha ao seu lado. O marido reclama, seu emprego paga mal, a escola da menina não vai bem e o teto periga desabar em sua cabeça. Tudo conspira para afastar as duas - e, na visão de Dahlia, a estranheza que toma o apartamento é apenas parte dessa conspiração.

Nakata, também criador de O Chamado original, não tem essa preocupação - ou esse cuidado, dependendo do ponto de vista - porque a sociedade japonesa é menos emotiva - ou sentimentalóide, dependendo também do ponto de vista. E os suspenses japoneses atuais são prioritariamente detetivescos. Tem-se um mistério do além e tem-se uma pessoa, afetada por uma espécie de maldição, que só se libertará quando solucioná-lo. Água Negra funciona melhor que o original porque não privilegia o fantasma, mas a maldição; não a causa, mas o efeito.

Salles e o roteirista Rafael Yglesias (Sem Medo de Viver) mergulham até profundidades psicológicas realmente turvas que guardam relação estreita com os problemas de Dahlia, ligados ao sentimento de abandono e do isolamento de quem vive numa cidade grande.

Quando, finalmente, o dilúvio inevitável acontece, podemos quase ouvir o refrão "Ah, Look at All the Lonely People", de Lennon e McCartney, ao lado da água que goteja e dos sussurros sinistros que descem pelas paredes. Não falta ambiente cheio de suspense. O espectador consegue praticamente sentir o cheiro da umidade sufocante presente na fotografia expressiva de Affonso Beato, repleta de sombras. Para acrescentar à textura diferenciada há a trilha sonora de Angelo Badalamenti, colaborador frequente de David Lynch.