Memória do Saqueio
Nota: 10
Dois sentimentos tipicamente argentinos, o orgulho e a autocomiseração, dão o tom do documentário Memória do Saqueio (Memoria del Saqueo, 2004). O diretor Fernando Solanas louva a massa engajada, as instituições, o potencial produtor, a identidade patriótica do país, mas não se furta ao chororô de um tango para mostrar como armadilhas políticas e econômicas levaram à crise que culminou no já famoso 20 de dezembro de 2001.
Este foi o dia em que o então presidente Fernando De La Rua renunciou, massacrado por protestos populares que a barreira na Praça de Maio não conseguiu impedir. Tido como omisso, o homem eleito como antídoto ao antecessor Carlos Menem se viu inútil diante da raspa neoliberal do tacho. Indústria sucateada, privatizações mal feitas, moeda valendo nada, fuga de capitais estrangeiros, poupanças congeladas, desemprego... As más notícias eram tantas que De La Rua foi retirado da Casa Rosada com proteção policial. Mas Solanas sabe que a culpa não é dele. E parte, então, para um recuo de anos atrás de respostas.
Mesmo antes do menemismo e da ilusão da paridade cambial nos anos 90 (que abria o país aos dólares, nível um para um, mas prejudicava mortalmente as exportações, igualzinho o que aconteceu até 1998 no Brasil) o problema já estava enraizado. Segundo Solanas, remete aos tempos da colônia que se endividava com empresas inglesas - nascedouro da dívida externa que só se inflacionou nas últimas três décadas de política de juros via FMI e Conselho de Washington.
Vale dizer, ainda que a vilanização do Fundo seja evidente, que não se trata do velho berreiro "Fora FMI". Solanas tem dados e reflexões bem fundamentadas a apresentar. E como documentarista esperto - que entre 1962 e 1972 já se exercitava em filmes defendendo as políticas sociais herdadas pelo partido peronista - sabe utilizar a linguagem do cinema a seu favor. Aqui, ele começa mostrando as revoltas na rua de forma picada, com montagem rápida e câmera tremida, para dar a sensação da urgência e da indignação dos justos. Em seguida, ao inverso, abusa de planos longos, vagarosos e sinuosos por salões de bancos, como o trajeto de uma cobra, para associar a ostentação com a corrupção.
Para sorte de Memória do saqueio (e azar da nação), o denuncismo do filme é indiscutível. Não há como negar, diante de uma distribuidora de gás abandonada ou dos números fraudulentos da venda da YPF (ex-estatal de petróleo comprada pela espanhola Repsol), que a fórmula da globalização forçada fez muito mal à Argentina. Como retrato de um período histórico, o documentário cumpre o seu papel. Como reflexão pós-crise, fica devendo, mesmo porque as coisas são recentes, e não deram sinais de melhoras ainda. Mas fica o sonho de que as pessoas se revoltando, se levantando, não aceitando, são apenas o pontapé inicial para um novo mundo. Um novo mundo é possível. Não deixemos apagar essa chama. Lutemos por essa causa. E cineastas engajados como Solanas, incentivam esse tipo de produção, chamando os artistas latino-americanos para a luta. Espero sinceramente que ele instigue alguém, que outros diretores tomem essa iniciativa de denunciar nossos governantes, nossa política, e mostrar a miséria a que submeteram a América Latina.
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