28 fevereiro 2007

Cartas de Iwo Jima



Nota: 7,5

Ainda que tenha sido dirigido três vezes por um dos maiores estetas do cinema, Sergio Leone, como diretor Clint Eastwood não tem muitos arroubos de estilo. Sua economia visual é célebre, e não só no jeito de filmar, sempre com o mínimo de takes e o máximo de rapidez. Em seus últimos três filmes, porém, Clint parece ter se apaixonado pelos efeitos de luz.

Desde Menina de Ouro, com aquele ginásio envolto em sombras, o cineasta encontrou na contraluz e no chiaroscuro uma forma de intensificar o drama de seus personagens. O recurso alcançou momento baixo em A Conquista da Honra, quando se banalizou nas cenas em que o filho do sobrevivente da Guerra entrevista outros veteranos no meio da penumbra, trucagem hiperdramática. A iluminação de cena segundo Clint Eastwood agora encontra sua reabilitação e seu auge com Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, 2006).

O pôster de A Conquista da Honra mostra os soldados entrando na trincheira com a luz às suas costas. O cartaz de Cartas de Iwo Jima é parecido, com o sol ao fundo, mas ao longo do filme sucede o contrário - é o exterior que se torna negro, o interior nós vislumbramos em tons de alto contraste. São as cavernas que os japoneses cavam no interior da ilha, ponto estratégico na disputa entre Aliados e Eixo na Segunda Guerra, para se proteger do ataque dos estadunidenses. É difícil mensurar, mas uns 70% do filme se passam dentro dos buracos mal iluminados.

Clint tem em John Ford outra inspiração declarada - Cartas de Iwo Jima paga tributo, especialmente, a Rastros de Ódio. A cena que abre o faroeste de 1956 é inesquecível, a porta da aconchegante casa dos Edwards se escancarando para a brutalidade do deserto. São dois mundos inconciliáveis: o interior e o exterior. Passar de um para outro implica transformação. Os mais de 20 mil japoneses entranhados na ilha vivem conflito semelhante. Dentro das cavernas, guardam ainda alguma humanidade. Fora delas, alvos fáceis, são apenas o que são: gente mal equipada morrendo num combate que não lhes diz respeito.

Falar que Clint "humaniza o inimigo", ao escolher filmar o episódio histórico do ponto de vista dos japoneses, é reduzir a questão ao óbvio. Mais do que isso, Cartas de Iwo Jima é quase uma recusa do filme de guerra como espetáculo - ao retratar os subterrâneos, geográficos e mentais, o diretor mostra que guerras não são feitas só de heróicos sobreviventes, mas também de medos. Rendição misturada com instinto de sobrevivência misturado com esperança. Tudo isso pode ser encontrado nos buracos de Iwo Jima, signo invertido do mito da caverna de Platão - o clarão das bombas e dos sinalizadores, lá fora, só nos ajuda a ver melhor o interior.

A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima são filmes que se dispõem como espelhos e refletem a Segunda Guerra a partir de pontos de vista distintos. A Conquista aborda o "lado americano", o que não significa que o defenda. É dos soldados, de sua experiência, que trata o diretor Clint Eastwood, em um nível. E é da representação da guerra que se ocupa o filme, num outro nível.
Cartas de Iwo Jima, aborda o "lado japonês", e novamente isso não quer dizer que o defenda. Existe uma nítida diferença entre os dois filmes. O primeiro parte do conhecimento que Clint tem de seu país. Cartas, ao contrário, é um filme de prospecção. Como se a pergunta a fazer fosse: que povo é esse que enfrentamos? Por que o enfrentamos? Por que o detestávamos? A resposta passa por uma reflexão sobre os enfrentamentos atuais entre os EUA e os povos islâmicos.

Mas a composição do filme parte da pouca intimidade do diretor com os costumes japoneses. Daí um trabalho mais clintiano, em que a morte se apresenta desde as primeiras imagens, pela voz do padeiro Saigo. Sua primeira carta escrita à mulher é como que uma carta de além-túmulo, de alguém que já se vê morto.

Saigo tem como contraponto o novo comandante das tropas japonesas, o competentíssimo general Kuribayashi. Este não parece ser um militarista na tradição nipônica. Tanto sabe ser compassivo com os comandados como considera um erro o atual enfrentamento.

Kuribayashi também escreve cartas e em certo momento confessa não saber por que aceitou esse comando que só pode culminar com a própria morte. No entanto, o general não é um desses samurais que consideram morrer a suprema honra. Como um Miyamoto Musashi, ele entende que o dever do guerreiro é viver para lutar. Ele não cultiva a morte nem muito menos a deseja.

No entanto, ela o ronda, pois é sob o signo da fatalidade que se delineia este filme. Aquele mar coberto de navios de guerra, que vimos em A Conquista e que procurava tranqüilizavar o público quanto ao resultado do combate, agora parece uma maldição. Idem os aviões que bombardeiam a ilha, que os recrutas americanos saudavam com tanta alegria e que agora soam aterrorizantes.

O conjunto dos dois filmes é evidentemente pacifista. O primeiro questionava a guerra a partir de suas representações. O segundo torna a guerra insuportável na medida em que nos leva a conhecer intimamente os japoneses. E, se conhecemos o outro, se o admitimos como um igual, já não temos forças para exterminá-lo. Existem aí ecos do atual enfrentamento dos EUA com os povos islâmicos, sem dúvida. Não se trata, no entanto, de atacar George Bush. Clint Eastwood nunca foi de chutar cachorro morto.

O Mestre das Armas



Nota: 5

Depois de uma longa temporada nos EUA, Jet Li retorna para o cinema chinês no filme de artes marciais O Mestre das Armas (Huo Yuan Jia, 2006). Um regresso não só ao seu país como aos temas que lhe marcaram o início da carreira: da defesa da China contra o estrangeiro invasor e do guerreiro errante que só se completa quando medita sobre sua arte, unindo corpo e mente.

Dirigido por Ronny Yu - nascido em Hong Kong, outro que volta para o Oriente depois de cometer A Noiva de Chucky, Fórmula 51 e Freddy Vs. Jason em Hollywood - o roteiro ficcionaliza a história de Huo Yuanjia (1869-1910), célebre lutador chinês que, antes de fundar e servir de guru espiritual da Chin Woo Athletic Association, montou uma escola de artes marciais em Xangai que servia de palco para desafios entre lutadores de estilos, localidades ou mesmo de países diferentes.

A idéia de construir tanto a escola quanto a associação nasceu do fato de diversos lutadores do mundo professarem sua superioridade em território chinês, numa época em que as fronteiras do país cada vez mais se abriam aos interesses dos impérios europeus. Diante de boxeadores e espadachins que apelidavam os chineses de "doentes da Ásia", Yuanjia mostrava no ringue o valor das artes marciais dos seus compatriotas. Suas vitórias foram vistas como exemplo de patriotismo.

Yuanjia começa o filme sem esse status todo. Lutador prepotente, sua ambição é se tornar o maior vencedor de sua vila. À medida que adversários caem e pupilos aumentam, Yuanjia perde a dimensão de seus atos. A simplificação é extrema, agravada pela mão pesada de Yu: com seus erros, na primeira parte do filme, o lutador assiste à ruína dos próximos; com a redenção, na metade final, encontra o amor e a glória. Um providencial retiro interior no campo marca a transição, filmada burocraticamente (ainda que a cena da plantação tenha a sua poesia).

Existe uma fórmula pronta aí, e o diretor se entrega a ela sem correr riscos. Defender a pureza da cultura milenar é mais oportuno hoje do que foi nos anos 80 e 90, nestes tempos de modernização desenfreada da China. Já construir toda a mise-en-scène atentando só para a coreografia das lutas é um defeito que aflige há anos o gênero. Resta a Jet Li, dentro dessa receita de gesso, ciente de que não há sutileza possível com Ronny Yu, brincar de interpretar Yuanjia de forma caricata.

A produção se justifica, portanto, como convencional e edificante. É obra para grandes massas. A coreografia das lutas é impecável, mas a dimensão moral e psicológica do entrecho tem a transparência de "obra fácil". Pensado para o mercado internacional, o longa funciona nos limites do senso comum. Mesmo trabalhando com valores que transcendem o patamar ocidental, o ambicioso projeto de Li e Yu não tem transcendência estética.

Uma Mulher Sob Influência - Cassavetes (1974)



Nota: 7,5

"Eu tenho uma obsessão por um tema que resume tudo o que me interessa: amor - e a falta dele." Com essas palavras o diretor norte-americano John Cassavetes resume não apenas um tema constante de seus filmes mas, sobretudo, o modo como forjou uma idéia peculiar de cinema.
Sétimo longa de uma filmografia de 12 títulos, Uma Mulher sob Influência captura essa situação ao abordar Mabel, dona-de-casa cercada do afeto de marido e filhos e que, a partir de uma pequena falta, naufraga numa crise psíquica.

Os filmes de Cassavetes buscam não narrar uma história, mas captar emoções através de situações carregadas de poder afetivo. Em seu cinema, a história não antecede os personagens, mas é por eles secretada.

Daí decorre o mito, muitas vezes sustentado por seus intérpretes e outras tantas desmentido pelo diretor, de adotar o método da improvisação. Sem roteiros, os atores sabem quem são os personagens, seus perfis, e o diretor (dizem) deixa que eles inventem as falas na hora.

Intérprete experiente de teatro e de cinema, Cassavetes levou, ao passar para trás das câmeras, uma atenção especial à atuação. "O ator é a força criadora fundamental, porque, se a atuação é boa, o filme se torna bem-sucedido, e o trabalho da equipe é, em última instância, secundário." A liberdade formal que seus filmes transmitem tem a ver com essa escolha.

Em vez da beleza dos enquadramentos, nota-se um aparente desleixo. Pois o que interessa ao diretor é a tonalidade e a qualidade das emoções.

Para isso, ele se cercava de uma mesma família de intérpretes (um grupo de amigos e familiares, como a mulher e musa, a imensa Gena Rowlands, protagonista de Uma Mulher sob Influência).

O trabalho nessa perspectiva da intimidade era fundamental para que o ator encontrasse o equilíbrio entre representar e apresentar. Nada mais distante do cinema do diretor do que a intenção de naturalismo, mola que quase sempre conduz o ator ao chamado "overacting" quando busca um ideal de naturalidade ou de veracidade para o personagem.

O termo realismo aplica-se mais coerentemente ao método de Cassavetes, que consiste em estimular os atores a viverem internamente as emoções até um ponto em que se alcança uma espécie de desvelamento.

Este, por sua vez, impregna a imagem na medida em que a câmera de Cassavetes nunca é predominante na cena. Ou se posiciona numa distância de conjunto, quase abolindo o espaço cênico, ou se encontra aproximada o suficiente dos rostos, em closes magníficos capazes de capturar a emoção brotando da pele.

É esse o modo escolhido pelo diretor para se afastar do psicologismo e adentrar no território muito mais complexo dos afetos. Pois a psicologia pode ser conquistada pela palavra, enquanto no cinema, arte da imagem, o afeto resulta de uma combinação entre o ponto de vista da câmera e a expressividade dos corpos.

Nesse sentido, o excesso e a falta que conduzem a personagem de Mabel ao abismo em Uma Mulher sob Influência passam diante de nossos olhos como uma experiência que mais parece feitiçaria.

Raras vezes no cinema a dinâmica emocional de uma família (e de uma mulher) foi exposta com tamanha energia, atirando o espectador no centro de uma tempestade que parece interminável, enquanto os personagens buscam um ponto de equilíbrio no qual possam ancorar (e apaziguar) a própria angústia.

23 fevereiro 2007

Pro Dia Nascer Feliz



Nota: 8

A universalização do ensino no Brasil fica muito bem nas estatísticas: 97% das crianças freqüentam escolas. Mas, ao assistir Pro Dia Nascer Feliz, dirigido por João Jardim, em cartaz desde a última sexta, a certeza que fica é que o acesso à escola não significa muito mais além do acesso em si.

Escolas destruídas, professores sem capacitação, alunos desmotivados são o resultado de uma opção de ensino que resolveu ser abrangente, pagando o preço de nivelar por baixo.

É sobre isso esse brilhante filme - sobre escolas que fingem ensinar alunos que fingem aprender. É também um filme sobre a viabilidade do nosso país e deixa claro que ela depende muito menos de PACs do que de um investimento sólido e prioritário em educação. Grande novidade.

Um estudo do próprio Ministério da Educação concluiu que o investimento de 4,3% do PIB é insuficiente para resolver este problema secular. Segundo o mesmo estudo, seriam necessários 8% do PIB para tal. Não bastasse isso, o foco do investimento em educação no Brasil privilegia a elite, ao investir pesadamente no ensino superior.
Enquanto o Prouni serve de bandeira eleitoral, o Fundep mal saiu do papel.

Mas o filme de João Jardim não segue por esta trilha. Conversando com alunos, professoras e diretoras sobre o dia-a-dia de escolas em lugares tão distantes quanto Manari, no sertão de Pernambuco, ou Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e sem nunca ser panfletário ou óbvio, o filme encontra um viés próprio para nos colocar frente a frente com o nosso futuro.

Numa das seqüências mais dramáticas, assistimos a uma reunião de conselho onde professores decidem se devem ou não aprovar um determinado aluno, sabidamente sem as qualificações para passar de ano. Se o fizerem, certamente prejudicarão a futura turma da qual ele faria parte. Por outro lado, se reprovado, o aluno abandonará a escola e, por já estar com um pé no crime, certamente fará sua opção definitiva. Como resolver tal dilema? Sinuca de bico.

Numa outra seqüência, uma diretora diz que é difícil administrar uma escola onde os professores, assim como deputados, encaram seu número máximo de faltas permitidas por lei como um direito. Os alunos reclamam que, com estas faltas, fica impossível aprender.

A câmera de João vai até uma professora faltosa que confessa que, às vezes, fica em casa por não ter condições psicológicas de ser agredida sistematicamente. Sinuca de bico outra vez.

Seria muito mais simples se os culpados fossem apontados e condenados, como faz Michael Moore, mas João, que também é o montador do filme (aliás foi pela montagem que ele chegou à direção), não toma nenhum partido. E é justamente o equilíbrio do impasse que nos tira o fôlego.

O contraponto desta situação está numa seqüência rodada no Colégio Santa Cruz, escola particular de elite em São Paulo. Os alunos ali têm o tal privilégio de saltar do drama (da sobrevivência) para a tragédia (da existência humana), como diria Bertrand Russel.

Apesar da coincidência de situações com alunos de escolas da periferia, estão amparados, num ambiente propício ao seu pleno desenvolvimento.

Fica claro que serão estes os alunos que ocuparão as melhores universidades do país, em geral públicas, e revela-se que, perversamente, o sistema de ensino que deveria promover a inclusão social acaba sendo um perpetuador das diferenças.

Não me lembro de outro documentário com tamanha capacidade de nos fazer refletir sobre nosso futuro e ainda por cima emocionar como poucos filmes de ficção são capazes.

Achei que eu pudesse estar meio frágil no dia em que assisti a Pro Dia Nascer Feliz, mas depois constatei que não fui o único a pagar o mico de derrubar lágrimas no cinema.

Em meio a questões sobre ensino, o filme ainda consegue mergulhar no universo dos adolescentes, com toda a sua carga de incertezas e esperanças diante do mundo adulto no qual estão entrando. Como uma lâmina precisa, o filme corta a alma.

O cineasta João Jardim não se limitou, fora da tela, a documentar a situação do ensino no Brasil. Abriu uma instituição no Rio de Janeiro que realiza projetos de educação e visita iniciativas similares em outras cidades. Em Pro Dia Nascer Feliz, porém, nada disso é mostrado. O filme evidencia e analisa os desníveis do ensino fundamental e médio no país. Tomamos conhecimento da presença de João Jardim, quando ouvimos sua voz fazendo perguntas, apenas uma ou duas vezes.

Hoje o gênero documentário cada vez mais se torna um exercício de metalinguagem - há diversos exemplares na safra recente brasileira que discutem a relação documentarista-documentado, escancarando a figura do diretor e da equipe de filmagem. Jardim escolhe a via oposta, mostrar somente o seu objeto de estudo. E como já provou em Janela da Alma, co-direção sua com Walter Carvalho, o olhar é o que mais importa.

Ao invés de se mostrar interagindo com seus entrevistados, Jardim assume uma posição de observador. E o jeito como ele filma a adolescência, as conversas de canto das amigas, os ombros curvos do garoto impopular, as idas e vindas de todos, muitas vezes desnorteados em corredores de escolas, é de uma sensibilidade emocionante. Se o cinema é a arte de nos fazer ver o mundo com outros olhos, Jardim a domina.

Fruto de pesquisa de quatro anos, o filme começa com uma visita a Manari, Pernambuco, uma das cidades mais pobres do país, onde Valéria, de 16 anos, é acusada de plágio porque suas redações são bem escritas demais. Segue para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, com a criminalidade à porta do colégio. E pára em São Paulo, onde uma hora de carro separa a excelência do Alto de Pinheiros de uma escola precária de Itaquaquecetuba. De um lado, alunos em crise existencial, discutindo o futuro, reforçados pelo apoio paterno e de professores particulares. Do outro, sonhos postergados em nome do sustento da casa e das urgências de curto prazo.

A Scanner Darkly



Nota: 7,5

A extensa obra do escritor Philip K. Dick (1928-1982) gerou adaptações memoráveis no cinema, como Blade Runner - O Caçador de Andróides, e outras nem tanto, como O Pagamento e Minority Report. O Homem Duplo, versão para as telas do romance A Scanner Darkly, fica no meio do caminho. Não tem o potencial pop cult dos replicantes de Ridley Scott, mas encontra-se bem acima da média, passando longe da calculada ação hollywoodiana dos filmes de John Woo ou Spielberg.

O responsável pelo longa é o versátil Richard Linklater (Escola de Rock, Antes do Pôr-do-Sol), que optou em desenvolvê-lo com técnica semelhante - menos alucinada, porém - ao aclamado Waking Life: a rotoscopia digital, animação que "pinta" os atores e cenários reais, incluindo novas cores e texturas na película.

A estilosa técnica funciona tão bem quanto no seu antecessor. Se no primeiro o foco era no existencialismo, aqui está nas drogas. Philip K. Dick combateu os demônios da dependência de drogas durante toda sua vida criativa, e o trabalho sobre o qual se baseia o filme, A Scanner Darkly, é um de seus livros mais vendidos. Ambientado no futuro próximo, como é de costume no autor, a história gira em torno da luta institucional contra a dependência de drogas.

A história baseia-se nas experiências pessoais de K. Dick e seus amigos (aos quais a obra é dedicada) com entorpecentes. Na trama, sete anos no futuro, um policial sob profundo disfarce, Fred (Keanu Reeves), recebe a missão de espionar seu próprio alter-ego, o traficante Bob. Porém, com o consumo crescente da letal Substância D, a personalidade de Fred (ou seria Bob?) começa a dividir-se. A paranóia cresce, afetando também seus amigos viciados: Jim Barris (Robert Downey Jr.), Ernie Luckman (Woody Harrelson) e Donna Hawthorne (Wynona Ryder).

Apesar de alguns dos elementos do filme não existirem - como a roupa-camaleão que torna o policial Fred impossível de ser identificado no departamento de polícia -, a história é bastante ancorada na realidade dos usuários de drogas, algo que a opção pela rotoscopia potencializa, dando à trama contornos oníricos. O amor do autor pelos personagens também é óbvio (os diálogos entre os protagonistas são de uma inocência cativante) e Linklater, excelente diretor de atores, o manteve intacto com a ajuda do ótimo elenco.

Ao final, fica a certeza de que, além de um ensaio sobre excessos, K. Dick buscou com A Scanner Darkly uma certa redenção, uma dolorosa tentativa de curar feridas e de rever amigos ausentes. Linklater entende isso e honra tal desejo com um filme digno do autor visionário.

A Rainha



Nota: 2

Dez anos após a morte de Lady Di em um acidente de carro em Paris, o filme britânico A Rainha, de Stephen Frears, relembra a verdadeira crise política aberta na Inglaterra devido à inabilidade com que, a princípio, a família real lidou com a incrível popularidade da princesa morta.

A atriz Helen Mirren, que interpreta a rainha Elizabeth II, cumpre seu papel com maestria. Vencedora do Globo de Ouro neste ano por este papel, ela também concorre ao Oscar de melhor atriz.

Esta é uma das seis indicações de A Rainha, que disputa também a estatueta em outras categorias muito cobiçadas: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original (Peter Morgan), melhor figurino (Consolata Boyle) e melhor música (Alexandre Desplat).

Um dos aspectos mais interessantes da história é retratar personagens reais e vivos atualmente, caso da rainha e também do primeiro-ministro Tony Blair (interpretado por Michael Sheen, que viveu o mesmo personagem num filme para a TV inglesa, The Deal, de 2003, também dirigido por Frears e escrito por Morgan, parceiros em A Rainha). Sheen, aliás, parece-se inclusive fisicamente com Blair, assim como a atriz que interpreta sua esposa Cherie, Helen McCrory.

O filme mostra membros da família real fazendo comentários cínicos sobre a morte da princesa. A princesa Margaret, por exemplo, diz à irmã e rainha, quando tem de interromper suas férias na Toscana por causa do funeral, que "até depois de morta Diana cria problemas".

Em todo caso, é fato comprovado que a família real resistiu muito a fazer qualquer comentário ou mesmo a organizar um funeral público para aquela que, mesmo divorciada do príncipe Charles (Alex Jennings), é mãe de dois príncipes herdeiros.

Quando fica sabendo que Diana morreu, a rainha não faz qualquer declaração, não se move de sua residência de férias nem manda hastear nenhuma bandeira no Palácio de Buckingham - diante de cujos portões toneladas de ramalhetes de flores se acumulavam a cada dia, demonstrando a dor que a população inglesa sentia com a morte da princesa.

A rápida compreensão do sentimento do povo mostra-se a primeira grande oportunidade do primeiro-ministro Tony Blair, novo no cargo, de marcar pontos para sua própria popularidade. Bem-orientado por seu assessor de imprensa, que inventa a expressão "princesa do povo" para um dos discursos de Blair, o primeiro-ministro sai fortalecido do episódio.

Sentindo-se forte diante da rainha, que o trata com bastante frieza, Blair acha que é seu dever alertá-la sobre o perigo que pesa sobre a imagem da monarquia caso insista em ignorar a dor do povo por Diana. Isto acaba mudando mesmo a atitude da família real, que a contragosto organiza um funeral público, mais uma vez um grande evento coberto pela mídia, como tudo o que dizia respeito à Diana.

Este é o grande eixo do filme: a disputa velada de poder entre Blair e a soberana e o conflito entre modernidade e tradição na família real.

O roteiro de Peter Morgan mostra inteligência e ironia para explorar bem mais do que isso, apesar de não questionar o núcleo duro do poder. No final das contas, tanto a rainha, quanto o primeiro-ministro, saem com as imagens intactas do embate. Eles superaram suas falhas, suas fraquezas, seus traumas, e deram a volta por cima. Nada mais Hollywoodiano. A rainha, que já viu passar outros dez primeiros-ministros pelo cargo, sabe o quanto a sua lua-de-mel com o povo pode ser breve e deixa isso claro a Blair durante um encontro.

Nada mais profético já que, depois de três mandatos, o primeiro-ministro, que caiu em desgraça diante da opinião pública inglesa, agora prepara-se mesmo para sair. Enquanto a rainha, claro, continua como sempre em seu trono.

O Último Rei da Escócia



Nota: 4

Nicholas Garrigan, médico escocês recém-formado, gira um globo em seu quarto e escolhe, de olhos fechados, o lugar do mundo que terá o privilégio de recebê-lo para uma vida de diversão, aventuras e, porque não, talvez, serviços humanitários. Se ele soubesse que se veria mais tarde torturado, dependurado por ganchos espetados no corpo em um hospital de Uganda, provavelmente não teria recusado a primeira opção que a sorte lhe ofereceu no jogo do globo - o frio e seguro Canadá.

O Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland, 2006) conta um pouco da história de Idi Amin, o ditador que governou Uganda entre 1971 e 1979. Nascido no interior, ele serviu o exército inglês durante a época em que o país ainda era uma colônia britânica. Com a independência, em 1962, ele subiu rapidamente de patente, chegando a ser chefe do exército em 1966, sob comando do presidente Milton Obote, que ele mesmo destituiu do poder, no golpe militar de 1971, quando Obote ameaçava abrir investigação de desvio de verbas.

O longa, porém, procura dar ao sanguinário ditador algumas feições humanas. O projeto é uma adaptação de um romance homônimo, escrito por Giles Foden. No livro, o autor cria a figura de um jovem escocês, Nicholas Carrigan (James McAvoy), que acaba se tornando o médico pessoal e confidente do governante ugandense. Nicholas, acuado pelo jeito como seu pai o tratava, resolve pegar seu recém-conseguido diploma de medicina e partir para o mundo em busca de aventuras, mulheres e experiência profissional. Acaba em Uganda, trabalhando em condições precárias no interior do país. Após um acidente com o presidente, ele é chamado para prestar primeiros-socorros e com seu jeito sincero e direto conquista Idi Amin, que já tinha admiração pelos escoceses e o convida para o cargo de confiança.

No livro e no filme, a ficção supera a realidade com a narrativa do dr. Garrigan, que inicialmente não parece ser mais do que um adolescente franzino, irresponsável e sedento por novas experiências, quaisquer que sejam elas. Com um espírito meio inocente - e meio inconseqüente -, ele concorda em fazer parte do mundo sedutor do ditador, sem enxergar ou questionar os métodos que levaram Amin ao poder e o mantiveram ali. Alheio aos avisos, Garrigan só questiona seu envolvimento no horror que o rodeia quando a violência crua se torna impossível de ser ignorada. Quando atinge seu mundinho fechado, sua hipócrita vida.

A mudança para a capital parece ser o oposto do que Nicholas pretendia. Mas usando o seu carisma, Amin convence o jovem que ali, ao seu lado, ele poderia fazer ainda mais coisas por Uganda do que no meio do mato. Inebriado pelo poder, pela riqueza e pelas grandiosas festas oferecidas pelo presidente, o médico fica e vai descobrindo uma outra faceta do ditador, que não consegue ser contrariado e usa seu poder para se impor sobre os adversários.

Diferente de outros filmes sobre a África que vêm sendo feitos recentemente, como Hotel Ruanda (2004), ou Diamantes de Sangue (2006), O Último Rei da Escócia pega leve quando o assunto é mostrar as barbaridades que aconteceram por lá. Estima-se que Amin tenha matado entre 300 mil e meio milhão de pessoas durante o seu regime, mas este seu lado mais feroz só aparece mesmo na parte final do filme, quando Nicholas começa a enxergar quem o general realmente era e a temer pela sua própria vida. Para se ter uma idéia, desmembramento de uma de suas esposas e até canibalismo são exemplos freqüentemente atribuídos ao ex-líder, morto em 2003, exilado na Arábia Saudita. Torturas e assassinatos daqueles que não comungavam da sua visão de governo também estão na lista.

Esta figura instável, da qual não se sabe se virá um ataque ou um sorriso, deve render a Forest Whitaker seu primeiro Oscar de Melhor Ator. Merecido. Todo aquele discurso dos atores de que eles não interpretam vilões, mas sim pessoas com visões diferentes do mundo, se encaixa perfeitamente aqui. Whitaker consegue mostrar na tela que Amin achava que estava fazendo o melhor pelo seu país, pelo seu povo. Tanto é que até hoje o ex-ditador é lembrado com uma certa afeição por alguns ugandenses. Durante as filmagens, toda feita no país, um general disse ao ator "Sim, Amin matou meu pai, mas ele também fez coisas maravilhosas pelo país".

À Procura da Felicidade



Nota: 2

Está em alta o prestígio do cineasta italiano Gabriele Muccino em Hollywood. Seu O Último Beijo (2001) foi refilmado em 2006 pelo ator e diretor Tony Goldwyn (Ghost), com roteiro de Paul Haggis (Crash, A Conquista da Honra), elenco liderado por Zach Braff (Hora de Voltar) e resultado apenas discreto.

Já a estréia de Muccino nos EUA, em À Procura da Felicidade, lhe confiou um dos mais populares astros do país no momento, Will Smith, em projeto familiar no qual aparece também o filho do ator, Jaden Smith, e que superou US$ 150 milhões em bilheteria.

O que faz um italiano no meio disso tudo? Em primeiro lugar, aparenta compreender como funcionam os veículos hollywoodianos para gente com o poder de atrair multidões. O filme é um tapete vermelho para o solo de Smith, que obteve pelo papel sua segunda indicação ao Oscar (a primeira foi por Ali).

O protagonista, pai de família que sonha enriquecer com um aparelho de uso médico patenteado por ele, vai parar quase na sarjeta em companhia do filho. Para reforçar o sentimentalismo, o carimbo de "história verídica": o roteiro de Steve Conrad (O Homem do Tempo) se baseia no best-seller autobiográfico de Chris Gardner, hoje um milionário do mercado financeiro.

Só desgraça! Um cara falido, sem dinheiro, que milagrosamente consegue a vaga de estágio mesmo indo fazer a entrevista com os sócios da empresa direto da cadeia, onde ficou preso por não ter pago multas do carro que nem tinha mais. E com o estágio garantido as coisas começam a se acertar? Que nada! O trabalho não é remunerado. Os seis meses de curso serão eternos, com o pouco de dinheiro que havia sobrado se esvaindo mais rápido que brigadeiro em festa de criança. Sem condições de pagar aluguel, Chris e seu filho passam a viver na rua, dormindo um dia no metrô, outro nos abrigos para sem-teto. A vida não era fácil, mas usando a sua inteligência, o bom humor e a capacidade de lidar com as pessoas Chris vai sobrevivendo e mantendo saudável a sua relação com o filho.

É difícil acreditar no que se vê na tela e a verdade é que a história não foi bem assim. Chris Gardner e seu filho passaram noites no metrô e dormiram muito no abrigo para sem-teto, mas foi para economizar os mil dólares que ele ganhava no estágio. O roteirista Steven Conrad dramatiza o que já era duro. "Carrega na tinta", como se diz no jargão jornalístico. Tudo em nome do "sonho americano", da vontade de mostrar que qualquer um consegue enriquecer na "Terra da Liberdade". O fato do Chris trair sua primeira esposa e ser acusado de bater na segunda também não é citado. O que resta é só o paizão perfeito, que não mede esforços para proteger sua cria.

Eis, portanto, história manjada de ressurreição que se sustenta em valores-chave do individualismo americano, habilidosamente traduzidos, em forma de empreendedorismo, pelo manancial da literatura de auto-ajuda -com a qual o filme, não por acaso, se confunde.

Perdedores são aqueles que desistem, diria o personagem de Greg Kinnear em Pequena Miss Sunshine. Pois Chris (Smith) não desiste jamais, ainda que a mulher (Thandie Newton, de Assédio e Crash) jogue cedo a toalha, e que haja uma criança a sustentar e a educar no meio do caos.

Esses elementos recorrentes no cinema norte-americano se inserem em cenário um pouco mais raro de ver -e a ênfase dada a ele talvez se relacione à pitada de "realismo" de Muccino. São bicudos os tempos em que se passa a provação do personagem, os EUA da era Reagan, com recessão econômica e elevados índices de desemprego.

Não é Chris o único responsável pela situação que vive, assim como as centenas de marmanjos que disputam com ele e o filho, em pico sentimental do filme, um lugar para dormir em um albergue de São Francisco.

E, ainda que ele seja um obstinado, está bem claro que o acaso lhe dá empurrões -e que a graça, como se sabe, não tem como beneficiar a todos.

Estado falido e indiferente, cidadãos lançados à própria sorte: essas coordenadas tornam "À Procura da Felicidade" um drama engrandecedor cujo protagonista, no fundo, é o dinheiro, o que explica por que tanta gente se identifica com a dificuldade de Chris em ter algo na carteira além de esperança.

Perfume



Nota: 8

Considerado por muito tempo infilmável, o best-seller Perfume, de Patrick Suskind, chega às telas na forma de uma grande produção que se sai razoavelmente bem na difícil tarefa de mostrar o mundo dos odores e do olfato no cinema.

Perfume - História de um Assassino, de Tom Tykwer, com orçamento estimado em mais de 60 milhões de dólares, traz a história movimentada de Jean-Baptiste Grenouille, um homem cujo olfato superaguçado faz com que ele se torne um assassino em série.

Tom Tykwer, famoso pelo "videoclíptico" Corra, Lola Corra, está irreconhecível na cadeira do diretor. Nada da correria de Franka Potente, nada de cortes bruscos e música alta. Nada de empolgação. O ritmo é lento e os planos são concentrados e fechadíssimos nos momentos em que o protagonista emprega suas excepcionais habilidades olfativas. Mais um pouco e dava pra ver os cravos dentro dos poros da pele de Ben Whishaw, que vive o aberrante Jean-Baptiste Grenouille, personagem que a trama persegue de maneira perturbadora.

Grenouille, interpretado pelo novato Ben Whishaw, nasce num mercado de peixe em Paris em 1738. Sobrevive à tentativa de infanticídio por parte da mãe (que é executada por isso), às agressões dos colegas no orfanato e à infância marcada pelo trabalho infantil.

Seu único prazer é explorar Paris, principalmente com seu nariz, que tem uma capacidade singular de detectar nuances nos odores. Acaba chegando à casa de Baldini (Dustin Hoffman), um perfumista experiente que percebe a proeza do olfato do jovem e começa a cuidar dele, ensinando-lhe a arte de fazer óleos, essências e fragrâncias.

O rapaz começa a dar mostras de seu comportamento quando tenta destilar um gato. Antes, já havia matado uma moça sem querer, ao tentar mantê-la quieta, e descoberto os cheiros intoxicantes do corpo de uma mulher.

Ele vai para a cidade de Grasse, a capital mundial dos perfumes, e tem uma experiência mística, na qual percebe que seu corpo não tem um cheiro específico. O filme assume então o ritmo de um thriller, enquanto o protagonista tenta criar seu perfume final, uma junção de odores retirados das mulheres que ele persegue e mata.

A técnica é perfeita, a direção de arte, figurinos, idem. Há até bons efeitos especiais, como quando as cidades, especialmente a imunda Paris do século 18, são mostradas de ângulos abertos. Tykwer só erra a mão na duração. Estende-se desnecessariamente em cenas diversas, encantado demais com o tema, seus planos e soluções. Faltou dureza na montagem - algo que Hollywood sabe fazer muito melhor que qualquer outro lugar do planeta quando o assunto é um filme comercial. Com 2 horas e 30 minutos, Perfume é longo demais.

Traseiros quadrados à parte, há o mérito de Tykwer ter conseguido filmar o infilmável - odores. Afinal, trata-se de uma obra sobre o menos artístico dos sentidos, que consegue de certa forma ser registrado na tela através de insinuações visuais e apelando para a memória olfativa do público. O filme mantém a atenção, usando o poder das imagens para evocar os cheiros, seja de peixe estragado ou de rosas e campos de lavanda.

E há o clímax, o sensacional desfecho, e esse só estando lá mesmo pra ver (e, quem sabe, sentir o cheiro).

A Conquista da Honra



Nota: 3

A Conquista da Honra, de Clint Eastwood, é um filme sobre um conceito. E não um conceito qualquer, mas a idéia batida e muitas vezes equivocada de "heroísmo". O que é ser um herói. Como se criam os heróis.

O filme, cumpre a missão em meio à batalha de Iwo Jima, uma ilha no Japão, em 1945, quando o fotógrafo da Associated Press Joe Rosenthal tirou a famosa foto de seis soldados americanos erguendo uma bandeira do país sobre o monte Suribachi.

O longa de Eastwood desconstrói aquele momento, transformando-o num quebra-cabeças de flashbacks e de incursões no futuro (não muito bem colocadas, o que acaba irritando em certo momento), para explicar como aquela foto acabou se transformando em instrumento para a campanha de venda de bônus de guerra pelo governo dos Estados Unidos.

O diretor examina sem dó a campanha dos bônus e aquilo que hoje reconhecemos como o nascimento do culto às celebridades, pois os três sobreviventes da imagem estiveram entre os homens mais famosos dos EUA.

Mas o projeto é cheio de ação e sangue, como tantos outros filmes de guerra norte-americanos - O Resgate do Soldado Ryan, Falcão Negro em Perigo e Fomos Heróis. E Eastwood segue a cartilha, como bom cowboy estadusunidense, e exalta o sacrifício e as conquistas dos homens que lutaram e morreram pelos EUA, pela "liberdade", em Iwo Jima.

O filme é baseado num livro de James Bradley sobre seu pai, o médico da Marinha John Bradley, um dos que levantaram a bandeira, mas que nunca falava sobre a guerra com a família. O roteiro de William Broyles Jr. e Paul Haggis (Crash), tenta ser rebuscado com tantas indas e vindas no tempo, mas isso só confunde, não inovando em nada.

Um soldado corre sozinho num cenário árido que mais parece a superfície lunar e então acorda suando frio na cama, com sua mulher reconfortando-o, muitos anos depois.

Três soldados que escalam uma montanha em meio a explosões chegam ao cume e deparam com um mar de gente num estádio de futebol, aplaudindo entusiasmados a representação da experiência real deles de algumas semanas antes. Enquanto isso, numa época mais recente - depois percebemos que se trata do filho, James Bradley (Tom McCarthy) - entrevista pessoas que conheceram o pai.

É dessa maneira que o filme vai para a frente e para trás, analisando a questão do heroísmo e como o gesto de erguer a bandeira transformou-se num símbolo ao qual os norte-americanos se agarraram.

No início é difícil distinguir quem é quem entre os seis protagonistas da foto, mas Eastwood e os roteiristas provavelmente fizeram isso de propósito, para retratar os homens como soldados comuns que apenas faziam seu trabalho.

O destino escolhe quem serão os seis de forma totalmente aleatória. Três deles morrem logo depois da foto ser tirada, e os três remanescentes são chamados de volta ao continente pelo governo dos EUA: Doc Bradley (Ryan Phillippe), Rene Gagnon (Jesse Bradford) e Ira Hayes (Adam Beach).

Durante a campanha dos bônus, o "mentor" do trio (John Benjamin Hickey) tem ao mesmo tempo que superar a resistência deles em fazer o papel de heróis e que manter Ira sóbrio.

A fotografia é em cores lavadas, como filmes antigos e apagados. Há momentos surpreendentes, como quando os soldados norte-americanos percebem que os japoneses sobreviventes estão se suicidando com suas granadas.

A batalha de Iwo Jima também é tema de um filme-irmão, feito pelo próprio Clint Eastwood, Cartas de Iwo Jima, que mostra o lado japonês da batalha, com atores japoneses e no idioma japonês.

Apocalypto



Nota: 4

Eis mais um polêmico filme do atormentado diretor Mel Gibson. Obcecado por sangue e momentos finais, seja da humanidade (Mad Max) ou de Jesus (A Paixão de Cristo), em Apocalypto ele mostra sua versão dos estertores do império maia. O filme se passa entre o final do século 15 e o início do 16, quando os espanhóis chegam para implantar a nova ordem mundial.

Obsessão é a palavra que mais passa pela cabeça de quem assiste aos 124 minutos de Apocalypto. Torturas indizíveis, sacrifícios humanos e a plebe (maia) em êxtase: eis a base de um filme que, como o próprio Gibson admite, nem precisaria de legendas. Afinal, qualquer criança entende a lei do mais forte, ainda mais quando ele também é tirânico e sádico. Mas, por favor, deixe as crianças longe disso.

Se em A Paixão de Cristo o diretor se defendeu das pesadas críticas -especialmente de judeus - dizendo que havia transposto para a tela uma leitura fidelíssima dos momentos finais de Jesus, segundo a Bíblia, dessa vez não há argumentos que justifiquem qualquer veracidade da obra.

Sim, parece provocação grosseira quando um sacerdote maia, mãos encharcadas de sangue após retirar dois ou três corações de semelhantes vivos, se dirije à multidão histérica, aos berros: "Nós somos o povo escolhido!". À falta de provas históricas desta "auto-eleição" maia, impossível não pensar que, de novo, o "anti-semita" Gibson está cutucando seus desafetos.

Logo após mostrar a sua visão para as últimas horas da vida de Jesus Cristo, Gibson já procurava um novo projeto. Seu objetivo era fazer um filme de perseguição. Conseguiu e com louvor. Apocalypto é correria ininterrupta. Maratona para queniano nenhum botar defeito.

Logo na primeira cena já somos levados para uma caçada pela floresta. Com a presa devidamente capturada, vem o descanso, um respiro para apresentar os personagens (sempre em yucateco, a língua local) e dar algumas risadas. Pata de Jaguar é um dos caçadores. Filho do líder da vila, ele fica atormentado com a visão de outros indígenas que tiveram sua tribo devastada e agora procuram um novo começo em outro lugar. O medo no olhar das pessoas é transferido para ele e se transforma em realidade quando guerreiros maias invadem o local onde mora atrás de escravas e prisioneiros. A destruição é generalizada e o sangue jorra sem miséria. Antes de ser capturado, Pata de Jaguar consegue proteger sua esposa, grávida, e filho. Serão eles que lhe darão forças para superar o medo e seus ferozes caçadores no longo caminho de volta para casa.

Durante as pesquisas sobre o povo maia, Gibson descobriu alguns possíveis motivos que causaram a queda do império que dominou a região da América Central e se estendia do México a El Salvador. O consumismo, a devastação do meio-ambiente e a ganância por poder estão entre eles. Para construir prédios cada vez maiores, hectares de florestas eram derrubados. Sem as árvores, a lama corria para o pântano, diminuindo a qualidade do solo e gerando piores colheitas. Os reis, que acreditava-se ter um contato direto com os deuses, faziam oferendas, utilizando até mesmo humanos. E para manter sua mordomia, tributavam mais da população, que por sua vez ia se irritando mais e mais.

Este aspecto sócio-político fica nas entrelinhas. É a forma encontrada por Gibson para alertar sobre o risco que corremos. Segundo ele, se a sociedade atual não se cuidar, pode ter fim semelhante aos dos seus antepassados. Mas a verdade é que no meio de tanta correria pela selva, corações pulsantes sendo arrancados dos corpos e cabeças literalmente rolando, a mensagem passa batida por quem não tiver em mente criticas como as acima.

O Violino



Nota: 8,5

Se existe associação para controlar quantidade de palavrão em um filme, bem que poderia ter outra para fiscalizar o violino. Sabe naqueles épicos de guerra, quando a criança loira sobrevivente descobre uma boneca sem cabeça no meio dos escombros? Então: a associação, com atenção redobrada na trilha sonora, impediria o violino de subir nessa hora.

O roteirista e diretor mexicano Francisco Vargas, em seu primeiro longa-metragem, tem uma desculpa: o instrumento é o centro da história de O Violino (El Violin, 2006). Se for para tocar, que seja na cena, de fato. Pelo menos não é música incidental.

A história segue pai, avô e neto no interior do México, região paupérrima, agrária, onde os miseráveis para sobreviver às precárias condições impostas pelo Estado e as pressões do exército (que mata centenas por mês), montaram milícias populares. Com a guerrilha armada, os mexicanos tentam sobreviver em um país que se vende ao capital estrangeiro. Sem recorrer à política, à partidos, à super-homens, o diretor soube ser simples, e contestar o estabelecido. Ele conseguiu nos passar um outro olhar dos zapatistas, sem precisa falar que eles existem. Enquanto o seu filho planeja ações com outros rebelados, Don Plutarco (Don Angel Tavira), o patriarca, faz companhia ao neto pequeno com o seu violino. Don Plutarco não tem uma das mãos; para tocar, ele amarra o arco ao pulso. Jamais sabemos como foi que ele se mutilou - mas o silêncio do velho diante da militância campesina do filho pode ser um indício.

O filme todo se concentra na tentativa, da guerrilha, de retomar a sua aldeia, ocupada pelos militares. Preocupado com a sua plantação de milho, Don Plutarco faz que não ouve os avisos - e segue no lombo de uma mula, com o violino às costas, para ver se os militares o deixam passar, só para checar a lavoura. Lá, um capitão (Dagoberto Gama, de Amores Brutos e Era uma vez no México) se interessa pelo instrumento. Tenta tocar, não consegue. Mas convence Don Plutarco a lhe mostrar sua música.

Instala-se em O Violino a relação clássica de arte versus barbárie. Por trás da carcaça impiedosa o capitão tem uma alma capaz de admirar a música de Don Plutarco. Graças a ela, o velho tem passagem garantida diariamente pelo bloqueio armado. Quando periga, Vargas não deixa seus personagens se banalizarem - o músico não é tão inocente nem o militar é tão condescendente. A música os une, mas não deixa de ser uma relação conflituosa de opressor e oprimido.

Vencedor de cinco prêmios no Festival de Gramado no ano passado - melhor filme latino-americano, melhor filme latino pelo júri popular, prêmio da crítica, ator (Tavira) e roteiro - O Violino tem como grande qualidade a crueza. A fotografia em preto-e-branco e o enfoque anti-paternalista (os personagens são perseguidos, mas não são tratados como coitados) ajudam a separá-lo da grande massa de filmes-denúncias, com viés de esquerda, que se multiplicam no cinema da América Latina.

Curiosamente, o momento mais lamurioso é aquele em que silencia-se o som ambiente e a câmera enfoca os rostos de cada um dos desalojados. Para intensificar o drama, soa o violino, vazado de uma cena anterior com Don Plutarco, mas que se transforma em música incidental por alguns segundos. A melosa tentação das facilidades musicais é grande, como se vê.