Cartas de Iwo Jima
Nota: 7,5
Ainda que tenha sido dirigido três vezes por um dos maiores estetas do cinema, Sergio Leone, como diretor Clint Eastwood não tem muitos arroubos de estilo. Sua economia visual é célebre, e não só no jeito de filmar, sempre com o mínimo de takes e o máximo de rapidez. Em seus últimos três filmes, porém, Clint parece ter se apaixonado pelos efeitos de luz.
Desde Menina de Ouro, com aquele ginásio envolto em sombras, o cineasta encontrou na contraluz e no chiaroscuro uma forma de intensificar o drama de seus personagens. O recurso alcançou momento baixo em A Conquista da Honra, quando se banalizou nas cenas em que o filho do sobrevivente da Guerra entrevista outros veteranos no meio da penumbra, trucagem hiperdramática. A iluminação de cena segundo Clint Eastwood agora encontra sua reabilitação e seu auge com Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, 2006).
O pôster de A Conquista da Honra mostra os soldados entrando na trincheira com a luz às suas costas. O cartaz de Cartas de Iwo Jima é parecido, com o sol ao fundo, mas ao longo do filme sucede o contrário - é o exterior que se torna negro, o interior nós vislumbramos em tons de alto contraste. São as cavernas que os japoneses cavam no interior da ilha, ponto estratégico na disputa entre Aliados e Eixo na Segunda Guerra, para se proteger do ataque dos estadunidenses. É difícil mensurar, mas uns 70% do filme se passam dentro dos buracos mal iluminados.
Clint tem em John Ford outra inspiração declarada - Cartas de Iwo Jima paga tributo, especialmente, a Rastros de Ódio. A cena que abre o faroeste de 1956 é inesquecível, a porta da aconchegante casa dos Edwards se escancarando para a brutalidade do deserto. São dois mundos inconciliáveis: o interior e o exterior. Passar de um para outro implica transformação. Os mais de 20 mil japoneses entranhados na ilha vivem conflito semelhante. Dentro das cavernas, guardam ainda alguma humanidade. Fora delas, alvos fáceis, são apenas o que são: gente mal equipada morrendo num combate que não lhes diz respeito.
Falar que Clint "humaniza o inimigo", ao escolher filmar o episódio histórico do ponto de vista dos japoneses, é reduzir a questão ao óbvio. Mais do que isso, Cartas de Iwo Jima é quase uma recusa do filme de guerra como espetáculo - ao retratar os subterrâneos, geográficos e mentais, o diretor mostra que guerras não são feitas só de heróicos sobreviventes, mas também de medos. Rendição misturada com instinto de sobrevivência misturado com esperança. Tudo isso pode ser encontrado nos buracos de Iwo Jima, signo invertido do mito da caverna de Platão - o clarão das bombas e dos sinalizadores, lá fora, só nos ajuda a ver melhor o interior.
A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima são filmes que se dispõem como espelhos e refletem a Segunda Guerra a partir de pontos de vista distintos. A Conquista aborda o "lado americano", o que não significa que o defenda. É dos soldados, de sua experiência, que trata o diretor Clint Eastwood, em um nível. E é da representação da guerra que se ocupa o filme, num outro nível.
Cartas de Iwo Jima, aborda o "lado japonês", e novamente isso não quer dizer que o defenda. Existe uma nítida diferença entre os dois filmes. O primeiro parte do conhecimento que Clint tem de seu país. Cartas, ao contrário, é um filme de prospecção. Como se a pergunta a fazer fosse: que povo é esse que enfrentamos? Por que o enfrentamos? Por que o detestávamos? A resposta passa por uma reflexão sobre os enfrentamentos atuais entre os EUA e os povos islâmicos.
Mas a composição do filme parte da pouca intimidade do diretor com os costumes japoneses. Daí um trabalho mais clintiano, em que a morte se apresenta desde as primeiras imagens, pela voz do padeiro Saigo. Sua primeira carta escrita à mulher é como que uma carta de além-túmulo, de alguém que já se vê morto.
Saigo tem como contraponto o novo comandante das tropas japonesas, o competentíssimo general Kuribayashi. Este não parece ser um militarista na tradição nipônica. Tanto sabe ser compassivo com os comandados como considera um erro o atual enfrentamento.
Kuribayashi também escreve cartas e em certo momento confessa não saber por que aceitou esse comando que só pode culminar com a própria morte. No entanto, o general não é um desses samurais que consideram morrer a suprema honra. Como um Miyamoto Musashi, ele entende que o dever do guerreiro é viver para lutar. Ele não cultiva a morte nem muito menos a deseja.
No entanto, ela o ronda, pois é sob o signo da fatalidade que se delineia este filme. Aquele mar coberto de navios de guerra, que vimos em A Conquista e que procurava tranqüilizavar o público quanto ao resultado do combate, agora parece uma maldição. Idem os aviões que bombardeiam a ilha, que os recrutas americanos saudavam com tanta alegria e que agora soam aterrorizantes.
O conjunto dos dois filmes é evidentemente pacifista. O primeiro questionava a guerra a partir de suas representações. O segundo torna a guerra insuportável na medida em que nos leva a conhecer intimamente os japoneses. E, se conhecemos o outro, se o admitimos como um igual, já não temos forças para exterminá-lo. Existem aí ecos do atual enfrentamento dos EUA com os povos islâmicos, sem dúvida. Não se trata, no entanto, de atacar George Bush. Clint Eastwood nunca foi de chutar cachorro morto.