23 fevereiro 2007

Pro Dia Nascer Feliz



Nota: 8

A universalização do ensino no Brasil fica muito bem nas estatísticas: 97% das crianças freqüentam escolas. Mas, ao assistir Pro Dia Nascer Feliz, dirigido por João Jardim, em cartaz desde a última sexta, a certeza que fica é que o acesso à escola não significa muito mais além do acesso em si.

Escolas destruídas, professores sem capacitação, alunos desmotivados são o resultado de uma opção de ensino que resolveu ser abrangente, pagando o preço de nivelar por baixo.

É sobre isso esse brilhante filme - sobre escolas que fingem ensinar alunos que fingem aprender. É também um filme sobre a viabilidade do nosso país e deixa claro que ela depende muito menos de PACs do que de um investimento sólido e prioritário em educação. Grande novidade.

Um estudo do próprio Ministério da Educação concluiu que o investimento de 4,3% do PIB é insuficiente para resolver este problema secular. Segundo o mesmo estudo, seriam necessários 8% do PIB para tal. Não bastasse isso, o foco do investimento em educação no Brasil privilegia a elite, ao investir pesadamente no ensino superior.
Enquanto o Prouni serve de bandeira eleitoral, o Fundep mal saiu do papel.

Mas o filme de João Jardim não segue por esta trilha. Conversando com alunos, professoras e diretoras sobre o dia-a-dia de escolas em lugares tão distantes quanto Manari, no sertão de Pernambuco, ou Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e sem nunca ser panfletário ou óbvio, o filme encontra um viés próprio para nos colocar frente a frente com o nosso futuro.

Numa das seqüências mais dramáticas, assistimos a uma reunião de conselho onde professores decidem se devem ou não aprovar um determinado aluno, sabidamente sem as qualificações para passar de ano. Se o fizerem, certamente prejudicarão a futura turma da qual ele faria parte. Por outro lado, se reprovado, o aluno abandonará a escola e, por já estar com um pé no crime, certamente fará sua opção definitiva. Como resolver tal dilema? Sinuca de bico.

Numa outra seqüência, uma diretora diz que é difícil administrar uma escola onde os professores, assim como deputados, encaram seu número máximo de faltas permitidas por lei como um direito. Os alunos reclamam que, com estas faltas, fica impossível aprender.

A câmera de João vai até uma professora faltosa que confessa que, às vezes, fica em casa por não ter condições psicológicas de ser agredida sistematicamente. Sinuca de bico outra vez.

Seria muito mais simples se os culpados fossem apontados e condenados, como faz Michael Moore, mas João, que também é o montador do filme (aliás foi pela montagem que ele chegou à direção), não toma nenhum partido. E é justamente o equilíbrio do impasse que nos tira o fôlego.

O contraponto desta situação está numa seqüência rodada no Colégio Santa Cruz, escola particular de elite em São Paulo. Os alunos ali têm o tal privilégio de saltar do drama (da sobrevivência) para a tragédia (da existência humana), como diria Bertrand Russel.

Apesar da coincidência de situações com alunos de escolas da periferia, estão amparados, num ambiente propício ao seu pleno desenvolvimento.

Fica claro que serão estes os alunos que ocuparão as melhores universidades do país, em geral públicas, e revela-se que, perversamente, o sistema de ensino que deveria promover a inclusão social acaba sendo um perpetuador das diferenças.

Não me lembro de outro documentário com tamanha capacidade de nos fazer refletir sobre nosso futuro e ainda por cima emocionar como poucos filmes de ficção são capazes.

Achei que eu pudesse estar meio frágil no dia em que assisti a Pro Dia Nascer Feliz, mas depois constatei que não fui o único a pagar o mico de derrubar lágrimas no cinema.

Em meio a questões sobre ensino, o filme ainda consegue mergulhar no universo dos adolescentes, com toda a sua carga de incertezas e esperanças diante do mundo adulto no qual estão entrando. Como uma lâmina precisa, o filme corta a alma.

O cineasta João Jardim não se limitou, fora da tela, a documentar a situação do ensino no Brasil. Abriu uma instituição no Rio de Janeiro que realiza projetos de educação e visita iniciativas similares em outras cidades. Em Pro Dia Nascer Feliz, porém, nada disso é mostrado. O filme evidencia e analisa os desníveis do ensino fundamental e médio no país. Tomamos conhecimento da presença de João Jardim, quando ouvimos sua voz fazendo perguntas, apenas uma ou duas vezes.

Hoje o gênero documentário cada vez mais se torna um exercício de metalinguagem - há diversos exemplares na safra recente brasileira que discutem a relação documentarista-documentado, escancarando a figura do diretor e da equipe de filmagem. Jardim escolhe a via oposta, mostrar somente o seu objeto de estudo. E como já provou em Janela da Alma, co-direção sua com Walter Carvalho, o olhar é o que mais importa.

Ao invés de se mostrar interagindo com seus entrevistados, Jardim assume uma posição de observador. E o jeito como ele filma a adolescência, as conversas de canto das amigas, os ombros curvos do garoto impopular, as idas e vindas de todos, muitas vezes desnorteados em corredores de escolas, é de uma sensibilidade emocionante. Se o cinema é a arte de nos fazer ver o mundo com outros olhos, Jardim a domina.

Fruto de pesquisa de quatro anos, o filme começa com uma visita a Manari, Pernambuco, uma das cidades mais pobres do país, onde Valéria, de 16 anos, é acusada de plágio porque suas redações são bem escritas demais. Segue para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, com a criminalidade à porta do colégio. E pára em São Paulo, onde uma hora de carro separa a excelência do Alto de Pinheiros de uma escola precária de Itaquaquecetuba. De um lado, alunos em crise existencial, discutindo o futuro, reforçados pelo apoio paterno e de professores particulares. Do outro, sonhos postergados em nome do sustento da casa e das urgências de curto prazo.