13 dezembro 2006

O Ilusionista

























Nota: 7

Era mais fácil a vida dos mágicos no século 19, ao menos em relação à crença do público em seus truques. Antes da criação do cinema, pertencia a eles a primazia de lidar com o potencial ilusório das imagens, explorando a idéia de que nem tudo é exatamente o que parece. Eisenheim (Edward Norton), o personagem central de O Ilusionista, faz valer essa vantagem para se tornar uma celebridade em Viena, na década de 1870.

Seu número mais polêmico traz ao palco imagens de pessoas que, supostamente, estão mortas. Atrações como essa chamam a atenção não só do público mais popular mas também do príncipe herdeiro (Rufus Sewell), de sua noiva (Jessica Biel) e do chefe de polícia da cidade (Paul Giamatti). A partir desse quarteto, constrói-se um pequeno mistério que se explica apenas no final.

Baseado em conto de Steven Millhauser, o diretor e roteirista Neil Burger (que fez antes o inédito Interview with the Assassin, sobre o assassinato de John Kennedy) se aproveita do pano de fundo histórico - a então recente formação do Império Austro-Húngaro - para dar um pouco de substância política a uma trama que, sabiamente, deixa de lado os truques de Eisenheim para se ocupar dos que a própria narrativa tem a oferecer.

Filme de época ambientado na Viena de 1900, O Ilusionista se destaca por uma atuação notável de Edward Norton no papel do mágico Eisenheim, que pode ou não possuir poderes sobrenaturais.

Baseado num conto do escritor ganhador do Prêmio Pulitzer Steven Millhauser e escrito e dirigido por Neil Burger, O Ilusionista é como uma paisagem de sonho que existe entre os estados do sono e da consciência, entre o velho mundo e o novo. Não é por acaso que a história acontece na Viena de Sigmund Freud.

No prólogo, vemos Eisenheim ainda menino (Aaron Johnson), filho de um carpinteiro, tendo um encontro casual com um mágico viajante e enxergando na magia a sua vocação. Como mágico novato e jovem, ele atrai a atenção da bela Sophie, herdeira de uma família aristocrata. O vínculo entre eles é uma daquelas coisas mágicas que parecem não ter explicação. Então, quando a família dela os separa à força, Eisenheim percorre o mundo aperfeiçoando-se em sua profissão.

Anos mais tarde, ele está de volta a Viena, onde é saudado como mágico famoso e comanda um palco grandioso.

Uma noite, uma bela mulher se oferece para fazer um truque com ele sobre o palco, e Eisenheim se emociona profundamente: é Sophie (Jessica Biel), agora adulta. Infelizmente, ela é amante do poderoso príncipe herdeiro Leopold (Rufus Sewell).

Em função disso, Eisenheim se desentende com as forças da lei, aplicadas pelo inspetor-chefe de polícia Uhl. No papel de Uhl, Paul Giamatti não chega a ser realmente sinistro, mas, com a ajuda de um chapéu e um sotaque, ele consegue dotar sua personalidade naturalmente simpática de um toque sombrio. Eisenheim infringe as leis do país e, possivelmente, também as da natureza, e a história passa a ser contada por meio do olhar às vezes incrédulo e enganoso do inspetor.

Sophie e Eisenheim consumam sua relação, e, num ataque de raiva e ciúmes, o príncipe mata Sophie - será que a mata de fato? Esse acaba sendo o mistério principal do filme, algo que vai testar se Eisenheim é realmente um ilusionista ou possuidor de um poder secreto. Os espectadores mais sagazes talvez decifrem o mistério muito antes do final da história, o que acabará por torná-lo menos interessante.

Em todo caso, tendo Ricky Jay como assessor em magia, os truques mostrados no filme -- uma laranjeira que floresce sobre o palco, uma espada que fica em pé sobre o piso, espíritos dos mortos que rondam o teatro - são apresentados de maneira autêntica, como teria sido feito na virada do século passado.

O diretor propositalmente usou poucos efeitos especiais e procura acompanhar cada truque do começo ao fim, sem cortes, para que as mágicas possam ser vistas como teriam sido vistas pela platéia da época.

Caminho Para Guantánamo
























Nota: 8,5

Inúmeros filmes já retrataram os horrores vividos nos campos de concentração nazistas. As ditaduras militares na América do Sul, com suas histórias de tortura e desaparecimento de presos políticos, também renderam obras igualmente contundentes e tocantes. Há vários outros exemplos semelhantes. O cinema tem, entre suas funções primordiais, manter vivo o passado para que as atuais gerações não esqueçam de crimes bárbaros cometidos contra a humanidade.

O que torna Caminho para Guantanamo um filme especialmente assustador e chocante é sabermos que tudo o que está sendo visto na tela continua acontecendo. Nos indignarmos com o presente é muito mais doloroso, especialmente diante da sensação de que nada parece que vai mudar (curiosamente, no momento em que digito essas linhas, o secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, que aparece no filme negando que os prisioneiros de Guantanamo sofram maus tratos, é afastado do governo Bush).

Como Michael Moore com seus filmes-tese anti-Bush, os diretores ingleses de Caminho para Guantanamo, Michael Winterbottom e Matt Whitecross, não escondem sua vontade de tomar partido e, assim, reforçar a denúncia. Não é muito convincente a explicação dos jovens britânicos de origem paquistanesa para, depois de viajarem ao Paquistão para o casamento de um deles, decidirem fazer uma visita ao Afeganistão logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Eles também dizem que pediram ao motorista para levá-los embora e o trajeto seguido foi o oposto, fazendo com que fossem confundidos com militantes da Al-Qaeda e presos por soldados das forças da Aliança do Norte. É possível acreditar na palavra deles, assim como também é possível não acreditar.

Isso parece importar pouco para os realizadores. Os acontecimentos se sucedem com tal velocidade, que a angústia que toma conta do espectador não permite que a sua reação no momento seja outra que não a de acreditar - e se revoltar. Como não reagir a cenas chocantes como a dos prisioneiros sendo transportados amontoados num caminhão em que as únicas saídas de ar são as marcas dos tiros desferidos a esmo pelos soldados na carroceria, e que ao chegar ao destino boa parte dos presos estão mortos?

Quando a ação se transfere para Guantanamo, a todos esses sentimentos se une o asco. Porque talvez não exista outra palavra senão asco para definir o sentimento despertado pelo comportamento das supostas “autoridades” americanas e britânicas encarregadas de interrogar, à base de tortura física e psicológica, aqueles prisioneiros contra os quais não havia uma evidência concreta qualquer.

Winterbottom e Whitecross têm um mérito grande, pela forma como estruturaram o filme, intercalando os depoimentos dos três sobreviventes com a narrativa dramatizada a partir do que eles relatam. Os acertos se estendem à fotografia, edição, escolha de elenco e direção, que capturam a atmosfera daquele pesadelo com precisão e realismo, sem escorregões melodramáticos ou panfletários.

Vencedor do Urso de Prata de Melhor Direção no Festival de Berlim, Caminho para Guantanamo chamou a atenção da imprensa para o drama dos três jovens britânicos e para as atrocidades contra os direitos humanos que ainda são cometidas em Guantanamo. Pena que os americanos mais ouviram falar do filme do que o assistiram – foi lançado com míseras 15 cópias -, e que o presidente Bush tenha dito que iria fechar aquela prisão, mas não tomou atitude alguma. Ainda há centenas de presos em Guantanamo e volta e meia se tem notícias de mortes por suicídio.

Estamira
























Nota: 8,5

Dona Estamira, de 63 anos, era apenas mais um retrato nas lentes do fotógrafo Marcos Prado no lixão de Jardim Gramacho. Em 2000, Prado - que já realizava há seis anos um projeto fotográfico no local - esbarrou com a senhora. Na verdade, tudo nos dá a entender que foi ela quem o achou. "Posso tirar uma foto sua?", "Claro, mas depois sente aqui que eu quero conversar". Foi assim que aconteceu a aproximação deste estreante na direção e de Estamira, que é a personagem-título do documentário.

Estamira é como muitos catadores de lixo, marginalizados pela sociedade, que se reconstroem onde todo mundo joga restos fora. São ex-traficantes, ex-trabalhadores, ex-domésticas, jovens, crianças ou idosos e "Estamiras" à procura de sustento próprio ou até de uma família inteira. Mas, o que torna esta pessoa tão especial a ponto de ganhar um filme só para ela? Diagnosticada como esquizofrênica por um centro psiquiátrico público, ela profetiza, filosofa, sem censura. Muitas vezes, é difícil entender o que ela fala, o que quer falar. Apesar da espontaneidade das palavras, de uma fala singular, seus raciocínios são coerentes.

Para o psicanalista Contardo Calligaris, o discurso de Estamira não é paranóico. Muito pelo contrário, é lúcido. Ela tem consciência do jogo de palavras do seu próprio nome: "Estamira, esta mira", repete muitas vezes. Em um dos momentos de maior lucidez, ela questiona o destino do lixo. "Quem economiza, tem", enfatiza a senhora. Ela usa de neologismos para falar sobre os problemas da humanidade. Afirma que é preciso trabalho, suor, mas não sacrifício. E chora, muito. E canta. E é feliz.

Ela ouve vozes, fala sozinha (muitas vezes num dialeto próprio) ou com os "astros", blasfema contra Deus, é tratada como louca pelos filhos, é dona de uma imaginação fértil e poderosa. Ao mesmo tempo em que parece uma líder despótica no lixão, é muito carismática. "Se eu não fosse casado, casava com ela", fala um morador do aterro. Ela se diz o tempo todo feliz naquele lixão, pois foi onde encontrou os amigos que lhe dão suporte, respeito, socialização e Marcos Prado.

"Acho que Estamira está muito bem ali, num lugar privilegiado", diz Contardo Calligaris ao analisar a situação dela. "Se ela morasse em outro lugar, não teria a mesma capacidade de criação", complementa o psiquiatra. Ela acredita que tem uma missão: "mostrar a verdade aos homens e capturar a mentira". Certo dia, perguntou ao documentarista qual era a missão dele e antes de obter resposta, disse: "Sua missão é revelar a minha missão". E é isto que Prado tentou passar com o filme.

Nas palavras do próprio diretor, o documentário Estamira é poético, apesar da tentativa biográfica. A câmera de Prado está sempre presente, em cada lágrima, em casa objeto e pessoa que rodeia a vida da personagem. A poesia se dá também na montagem do filme, que intercala o preto e branco e o colorido. A princípio, a intenção era apresentar a vida da personagem de forma cronológica, mostrar como seu comportamento mudou com o tratamento psiquiátrico com uso de medicamentos tarja preta, que coincide com o início das filmagens, em 2000. Mesmo com a desistência do cineasta em fazer esta montagem linear, o espectador ainda pode acompanhar os efeitos dos remédios. "O discurso dela empobreceu, eu acompanhei a fala dela minguar", fala Prado.

Depois de apresentar o cotidiano de Estamira, Prado parte para a profundidade, faz o espectador entender porque ela odeia tanto Deus, que chama de estuprador, assaltante e arrombador. Os filhos trazem a resposta, assim como fotos do passado. O documentário revela que ela era uma pessoa religiosa, mas foi vítima de abuso sexual, prostituição, morou na rua, foi traída muitas vezes em seus dois casamentos, teve que dar a filha mais nova para outra família cuidar por falta de condições (e não de amor).

O problema mental de Estamira também está no sangue. Ela teve o mesmo destino da mãe, igualmente diagnosticada como paciente psquiátrica. Foi obrigada pelo segundo marido a interná-la e carrega esta culpa até hoje. O seu primogênito chegou a fazer o mesmo ao deixá-la num hospício amarrada e presa a uma camisa de força. A fita aborda muitas questões e, como Calligaris afirma, é um filme pedagógico, uma aula de psicanálise. Mas, para ele, o assunto principal não tem nada a ver com psique, moral e nem religião. O filme mostra uma insanidade interessante, de alguém que coloca a vida no limiar.

Após de "conviver" 115 minutos com Estamira, ser dominado por sentimentos como dó, tristeza e admiração por sua força, surge a inevitável vontade de saber como ela está hoje. "Ela está muito bem. Eu resolvi adotar Dona Estamira, todo o mês ela recebe um dinheirinho e não precisa mais ir ao lixão, apesar de se sentir feliz lá", conta o diretor Marcos Prado. Ela deixou o barraco em que morava e agora tem uma casa. O tratamento psiquiátrico continua a ela toma seus remédios por vontade própria. Estamira foi a primeira pessoa a ver o filme, ainda na ilha de edição e confessa não lembrar de muitas cenas. Também reconhece que o tom da narrativa é forte, mas sabe que faz parte se sua missão mostrar ao mundo o que foi capturado honestamente pelas lentes.

04 dezembro 2006

Um Bom Ano



Nota: 5,5

Imagine uma comédia romântica dirigida por um inglês, com um roteiro baseado em um livro inglês, e que tem como protagonista um inglês cheio de charme. Você pensou nos filmes da Working Title, como Um Lugar Chamado Notting Hill e Simplesmente Amor, e nos atores Hugh Grant e Colin Firth? Errou! E parte do erro foi induzido porque o personagem é inglês, mas o ator é na verdade o neozelandês Russel Crowe.

E o que mais desperta a curiosidade nessa comédia romântica, no entanto, está nos bastidores: o filme é dirigido pelo inglês Ridley Scott, cineasta acostumado a aventuras e ficções, como Blade Runner e Cruzada.

Um Bom Ano (A Good Year, 2006) marca a primeira reunião do ator com o diretor Riddley Scott desde que eles fizeram o premiado e aclamado Gladiador (2000). O título se refere a uma boa safra de vinho. A bebida serve de pano de fundo para toda a história, que foi inspirada no livro de Peter Mayle que, assim como Scott, saiu da publicidade. Os dois se conheceram neste ramo na década de 70, em Londres, e cultivaram a amizade. Enquanto um decidiu virar cineasta, o amigo se aventurou pela literatura. Outro assunto em comum entre os dois é a paixão por Provence, região no sul da França. Foi em um almoço por ali que surgiu a idéia de criar uma história sobre vinhos de garagem, que mesmo sem terem pedigree chegam a ser vendidos por até 45 mil dólares a caixa, conseqüência da sua alta qualidade e baixa produção - o que os tornam raros e por isso caros.

Quando conhecemos Max (Crowe) ele é um bem sucedido operador da bolsa de valores. Sua ganância, porém, o afastou do seu último parente vivo, o bon vivant Tio Henry (Albert Finney), com quem passava instrutivas e divertidas férias de verão. É por correio que Max recebe a notícia de que seu tio havia morrido e que, como parente mais próximo, ele acabara de herdar seu château e o vignard. Individualista e ganancioso homem de negócios, Max viaja até a França para assinar a papelada e lucrar logo com a venda do local, mas o destino intercede, prendendo-o lá por alguns dias. O resto é aquilo de sempre: longe da correria e do conforto da cidade grande ele vai redescobrindo o valor das coisas simples da vida.

Poucas são as adaptações de uma mídia para outra que mantêm todos os elementos da obra original. Um bom ano não escapa à regra. Na transposição do livro para o filme, Max deixa de ser o corretor mediano da bolsa que leva um golpe do chefe para se tornar o canalha que dá o golpe nos outros. Há ainda a supressão de personagens e de passagens. Ao contrário do que acontece no longa-metragem, a tabeliã Nathalie Auzet (Valeria Bruni Tadeschi) tem grande importância nas páginas escritas por Mayle, bem como o enólogo Fitzgerald (Gilles Gaston-Dreyfus) e o vinho Le Coin Perdu, que dão um toque de suspense à história.

Até aí tudo normal. O problema começa quando coisas que eram legais, como o tenso flerte entre Max e Fanny (Marion Cotillard) vira uma relação rasa que se resolve em poucos minutos. E ainda pior quando se desdenha da capacidade do espectador e se arruma formas de costurar pontas que estavam muito melhor quando soltas.

Se eu fosse um sommelier, diria que é um filme que de início agrada o paladar, mas no final deixa um resíduo meio amargo na boca. Como não sou, digo que Um bom ano cumpre suas funções inebriantes, mas dá uma dorzinha de cabeça depois.

Crônica de uma Fuga



Nota: 8,5

É curioso que, num momento em que ex-montoneros estejam à frente do governo da Argentina, surja um filme que lança um olhar crítico com relação às atividades guerrilheiras durante a ditadura militar naquele país (1976-1983). Obviamente, Crônica de uma Fuga, de Adrián Caetano, não faz a defesa do regime, e expõe, com cores e intensidade artísticas, todo o horror do sistema de repressão responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas, de acordo com entidades de direitos humanos.

Entretanto, o diretor uruguaio, ao retratar a maneira como os prisioneiros se relacionavam no cativeiro da Mansión Seré, recriado a partir do livro do ex-prisioneiro Claudio Tamburrini (hoje professor de filosofia da Universidade de Estocolmo), não deixa de ressaltar que aquele era um ambiente de intriga, delação, traição e disputas de poder por parte dos guerrilheiros, e não um celeiro de candidatos a mártires.

Nesse microuniverso, Tamburrini, que é inocente e foi preso por engano, surge como o mais lúcido do grupo e, por conta disso, apavorado com o delírio ideológico que havia tomado conta dos colegas. Esse olhar ambíguo é um dos trunfos do filme de Caetano. Outro ponto caro ao diretor é a fixação em mostrar a deterioração -carnal e espiritual- a que chegam homens submetidos a tal grau de sofrimento. Os quatro protagonistas se transformam de rapazes vigorosos em figuras encolhidas e semi-humanas. Vítimas de humilhação psicológica e surras duríssimas, passam a maior parte do tempo agachados, rastejando ou simplesmente colados ao chão, muitas vezes nus e em carne viva. As imagens são quase bíblicas, mas sem que se dê aos personagens um ar de santidade. Os olhares revelam uma confusão de sentimentos que vai da desolação ao ódio.
"Estamos desaparecendo", diz um deles. A frase é literal - no sentido de que são homens se esfacelando - e dúbia do ponto de vista político -"desaparecidos", afinal, são os apagados pelo regime sem que vestígios sejam encontrados.

A câmera, solta na mão do cineasta, assume papel participativo, pois parece ser conduzida pelo olhar de um outro prisioneiro, fisicamente na cena. Caetano abusa de tomadas feitas a partir do chão, pois é em colchões ou estrados muito baixos que a "ação" acaba por se passar a maior parte do tempo. A Argentina já fez muitos filmes sobre a ditadura. Mas Crônica inscreve-se entre aqueles que realmente trazem novos elementos à discussão do tema. Foi assim com A História Oficial (Luis Puenzo, 1985), em que uma professora se dá conta de que pessoas desapareceram durante o regime e que sua filha adotiva pode ter sido roubada dos verdadeiros pais.

Como em Un Oso Rojo (2002), quando abordou a volta de um ex-detento à vida comum, Caetano concentra a câmera sobre a figura humana submetida à privação da liberdade, tema que já havia explorado antes em Tumberos ("presidiários" na gíria portenha), série que criou e dirigiu com êxito na televisão argentina há quatro anos.

"Gosto de trabalhar com o verossímil, com o que vai sendo montado na cabeça do espectador. Meu cinema é simples, sem a necessidade de mostrar que há um autor por trás."

Crônica de uma Fuga estreou em abril na Argentina, um mês após se completarem três décadas da instalação do regime militar no país, num momento em que o assunto anda sendo bastante debatido até em uma telenovela. Coincidentemente, a estrela desse folhetim, batizado de Montecristo, é Pablo Echarri, também um dos atores centrais no longa de Caetano, no qual interpreta o chefe das tarefas da Casa do Terror.

"Se o filme desencadear mais debate, que seja bem-vindo, mas não fiz Crônica pensando nisso", diz o cineasta, que se programa para iniciar, em 2007, as filmagens de mais uma história de "tumberos": a fuga do presídio uruguaio de Punta Carretas (hoje um shopping center), em 1971, quando 111 pessoas escaparam por um túnel que desembocava na sala de estar de uma residência.

"Sou bastante cético em relação a todo esse debate que está tendo lugar na Argentina a respeito da ditadura. Desconfio de toda essa mobilização, me parece estranho que tudo isso esteja aflorando nesse momento", diz. "Agora mesmo temos um desaparecido em plena democracia", lembra o diretor, em referência ao pedreiro Jorge Julio López, 77, uma das testemunhas-chave do julgamento que condenou à prisão Miguel Etchecolatz, ex-oficial da polícia durante o regime militar argentino e responsável, entre outros, por cerca de 30 centros clandestinos de detenção.

López desapareceu há 24 dias, e o governo de Buenos Aires está oferecendo uma recompensa de 200 mil pesos (cerca de R$ 138.550) por informações, mas até agora o paradeiro da testemunha permanece ignorado. "As coisas não mudaram", afirma Caetano.

Pequena Miss Sunshine



Nota: 8,5

Depois que o Festival de Sundance ganhou status internacional, cada vez mais cineastas iniciantes procuram seguir a fórmula do filme independente: família disfuncional em uma situação excêntrica. Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006) é mais um exemplo. Para temperar a receita, a narrativa acontece no gênero "filme de estrada" (road movie), outro estilo em que os realizadores norte-americanos são especialistas.

Os protagonistas são os membros da família Hoover, moradores do Novo México. Richard (Greg Kinnear) é o pai, um palestrante motivacional que está tentando vender seu programa de auto-ajuda chamado os "9 passos", que promete transformar qualquer pessoa em um vencedor. Sheryl (Toni Collette) é a mãe, mulher que trabalha fora e também exerce as funções domésticas em casa. Seus filhos são Dawyne (Paul Dano) e Olive (Abigail Breslin). Dawyne resolveu fazer o voto do silencio até conseguir se integrar na escola de pilotos das Forças Armadas: não fala há meses e segue a filosofia de Friedrich Nietzche. Olive é uma menina de 9 anos que sonha em se tornar miss. Frank (Steve Carrell) é irmão de Sheryl, um professor universitário que se diz maior conhecedor sobre a vida do escritor Marcel Proust e que recentemente tentou o suicídio. Completa o grupo Edwin (Alan Arkin), o pai de Richard. Um senhor que foi expulso do asilo por ser viciado em heroína.

Durante um jantar com toda a família, Olive recebe um telefonema, um convite para participar de um concurso supercompetitivo chamado de Little Miss Sunshine no sul da Califórnia. A viagem é muita cara ser feita de avião. O jeito é ir de carro. Mas Sheryl precisa levar Frank, pois tem medo que ele tente se suicidar de novo. Vovô Edwin quer ir também, pois criou a coreografia que Olive usará no concurso. Mas como o carro de Sheryl é muito pequeno e desconfortável para a viagem, o jeito é usar a velha Kombi amarela de Richard. O problema é que a única pessoa da família que saber guiar com embreagem e marcha é Richard. Sobra então Dawyne, que por ser adolescente não pode ficar sozinho em casa. Resultado: a família toda acaba pegando a estrada na tentativa de realizar o sonho de Olive.

Tudo isso acontece nos primeiros 12 minutos. O restante do filme é ambientado na estrada, na tentativa de chegar ao concurso a tempo. Essa sinopse parece até uma cópia do famoso Férias Frustradas estrelado por Chevy Chase. Realmente a espinha dorsal é a mesma, muda apenas o objetivo da viagem. Mas isso não diminui em nada a qualidade do filme, já que a mensagem é bem diferente. Em Pequena Miss Sunshine a epístola é sobre perdedores, vencedores e aceitação.

As situações no filme são hilárias, chegando ao nonsense. Mas apesar de absurdas, são verossímeis. Essa sustentação parte da ótima interpretação de todos os atores, sendo impossível destacar apenas um. Nenhum deles fica preso em um estereótipo e disparam com igual competência os diálogos afiados escritos pelo estreante Michael Arndt, responsável pelo roteiro.

Igualmente felizes é o casal de diretores Jonathan Dayton e Valerie Faris, egressos dos videoclipes e comerciais. Eles conseguem imprimir ritmo e evitam competentemente as típicas grosserias escatológicas das comédias ou a pieguice. Os aplausos no último Sundance foram merecidíssimos.

O Ano em que Meus Pais Sairam de Férias



Nota: 8

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) não teria esse título se não fosse um humor de mercado. Convenceram o diretor Cao Hamburguer (Castelo Rá-Tim-Bum - O Filme) de que Vida de Goleiro, o nome original, afastaria o público feminino. A mudança faz sentido, mas o anterior era melhor. Mesmo porque a metáfora futebolística aqui é preciosa.

Com doze anos de idade, Mauro (Michel Joelsas) já sabe que a profissão de arqueiro é a mais solitária dentro de campo. A responsabilidade é tremenda. Transcorre 1970, ano de Copa, e os pais de Mauro "saem de férias". Esse é o eufemismo para dizer que a ditadura forçou o casal a se esconder. O garoto é deixado em São Paulo com o avô. O que os pais não esperavam é que o velho falecesse de repente. Mauro está prestes a experimentar um pouco da responsabilidade - e da solidão - de ser um "goleiro" nesse jogo da tenebrosa e incerta época da repressão.

O bairro é o Bom Retiro, centro de comércio têxtil paulistano de grande concentração judaica. Mauro acaba no apartamento de Shlomo (Germano Haiut) e o primeiro contato dos dois não é dos melhores - mesmo porque o garoto é um gói, um não-judeu. Ao choque cultural se soma o de gerações. E Mauro não está interessado em interagir. Passa os dias ao lado do telefone, aguardando um telefonema. Seu pai prometeu voltar a tempo do começo da Copa, e Mauro guarda aí a sua esperança.

A melancolia que se segue é comum aos filmes nacionais que tratam do período do regime, mas nenhum adere, como Hamburguer, ao ponto-de-vista de uma criança. A referência mais evidente é o cinema argentino: Kamchatka (2002), em particular, também enxerga dilemas de adulto por olhos inocentes. Justiça seja feita, no material de imprensa do filme a inspiração portenha é admitida. Spielberg e Leone também são citados no release. Do primeiro Hamburguer herda o bom trato com elenco-mirim, contato esse depurado pelos anos de direção do seriado Rá-Tim-Bum. Do segundo, tira menção a Era uma vez na América, as ótimas sequências da espiadela pelo buraco da parede.

O ano... não é feito só de colagens. Muita coisa saiu da própria vida dos realizadores. Hamburguer viu o pai judeu e a mãe católica serem presos pela ditadura. E também atuou como goleiro no time da infância. Essas memórias afetivas respondem pelos melhores momentos do filme. São aqueles instantes de sensibilidade, de percepção do mundo, que só uma criança consegue ter - seja o jeito diferente com que olha a moça bonita do bairro, a curiosidade com que veste as luvas de couro do avô ou a alegria de completar o álbum de figurinhas.

A essa porção mais leve, de descoberta, se sobrepõe a mais grave, de contexto político. Há genialidade espontânea nas cenas que relembram o espectador do clima civil de insegurança, sem que isso seja verbalizado. Uma é quando Mauro sai à rua pela primeira vez com seus novos amigos, e é surpreendido pelo avanço do cachorro. Outra é quando ele comemora sozinho um gol - a câmera enfoca-o do lado de fora do apartamento, e com as janelas fechadas vemos Mauro gritar, mas não ouvimos nada.

Triste pra caramba. E faz mulher, homem, fã ou não de futebol, se comover.

Volver



Nota: 6

A mais notória característica do cinema de Pedro Almodóvar é a sua relação confessional com o universo feminino. Mas a obra do espanhol pode ser vista também como a negação do mundo dos homens. Há uma cena em Volver (2006) - seu retorno às raízes depois de um raro trabalho masculino, Má Educação (2004) - que sintetiza formidavelmente essa idéia.

Sole (Lola Dueñas, de Mar Adentro), irmã de Raimunda (Penélope Cruz), acaba de saber que Tia Paula morreu, e retorna ao vilarejo onde a família cresceu para participar do velório. O povo do lugar, cheio de folclores, diz que Tia Paula estava sendo cuidada nos últimos anos de sua vida pelo fantasma de Irene (Carmen Maura), mãe de Sole e Raimunda. Sole não acredita - mas na hora em que entra na casa se espanta com a aparição de Irene. Corre do fantasma da mãe, abre a porta da rua e se depara com um grupo de homens, engravatados para o velório. A câmera sempre branda de Almodóvar corta rápido então, de close em close nos homens. E Sole dá meia-volta. Instintivamente, prefere encarar o fantasma.

Pode ser reflexo da sua própria vida ou reação aos machismos arraigados da cultura hispânica - o fato é que Almodóvar cria em Volver uma redoma para acolher as suas mulheres. A grande graça de seu trabalho como cineasta é a maneira como ele expõe as fraquezas e as forças dessas mulheres, sem paternalismo, e como elas resolvem conflitos entre si, num mundo à parte da guerra dos sexos.

Há outros homens em Volver, mas são como adereços, MacGuffins - servem mais para tocar a trama adiante do que para exprimir o que há realmente de pertinente na história. Sole é separada, ficamos sabendo, mas seu marido nunca aparece na tela. O pai da família também não é mostrado. O marido de Raimunda não demora a sumir. O enterro de cadáveres masculinos no filme são como alegorias: livrar-se das amarras do sexo oposto é o caminho que cabe a elas para se encontrarem como mulheres.

Raimunda mora em Madri, depois de um passado mal resolvido com a mãe, e anda às voltas com um desses empecilhos masculinos. Quando retorna do vilarejo com o fantasma no porta-malas do carro, Sole não conta a Raimunda que viu a aparição da mãe. Pelo contrário, coloca Irene para lavar cabelos no seu cabelereiro improvisado dentro de casa e a esconda da irmã. Acontece que mãe e filhas têm assuntos pendentes.

Depois de excursionar por metalinguagens e devaneios de realidade e ficção em Fale com Ela e Má Educação, Almodóvar retorna à narrativa tradicional com Volver. Isso quer dizer que o filme tem começo, meio e fim, sem atalhos ou contornos, mas não significa que é vazio de significados ou interpretações.

Almodóvar já renasceu algumas vezes como cineasta. A primeira foi em 1988, com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, que marcou sua afirmação definitiva fora da Espanha. A segunda foi em 1995, com A Flor do Meu Segredo, quando ele abandonou uma certa ênfase no humor debochado para se aprofundar no melodrama. Esse aprofundamento chegou ao ápice em Tudo sobre Minha Mãe (1999) e Fale com Ela (2002), duas obras-primas, mas começou a dar sinais de desgaste em Má Educação (2004).

Volver, em vários sentidos, é mais bem resolvido que Má Educação, mas continua apontando para um certo fastio no exercício melodramático e para a necessidade de um novo renascimento artístico.

Que não haja dúvidas: estamos falando de um dos melhores cineastas em atividade no mundo, e Volver ainda está cheio de suas melhores qualidades. Elas aparecem, principalmente, na recusa por um julgamento moralista dos atos de seus personagens; no olhar generoso, porém não indulgente, sobre as fraquezas do ser humano; na composição dos planos e na escolha da palheta de cores, e na excelência da encenação e da direção de atores.

Volver (Voltar) marca a volta do cineasta à região de La Mancha, onde ele nasceu. É ali que ele situa boa parte da saga de sua heroína Raimunda (Penélope Cruz, em composição visivelmente inspirada em Sophia Loren). O filme marca também um reencontro com Carmen Maura, atriz-fetiche de sua primeira fase, com quem ele não trabalhava desde Mulheres à Beira.... Nesse reencontro, a morte, em outros filmes um tema periférico, assume um papel central.

Em Volver, a morte ganha uma concretude poucas vezes vista no cinema. Almodóvar procura traduzir, cinematograficamente, o sentimento que nos enche depois da perda de uma pessoa querida, aquela espécie de presença que se faz ver pela ausência, pelos signos deixados pelos mortos, pelos rastros que ficam sobre a terra com a ausência do corpo.

Em vários momentos, Almodóvar traduz essa sensação com clareza absoluta, demonstrando o pleno domínio que tem sobre a linguagem. Em outros, parece não saber muito bem para onde ir, principalmente quando a história caminha para seu final, anticlimático. À medida em que o filme perde o rumo, perde também a emoção -algo que não faltava, absolutamente, a Tudo sobre Minha Mãe e a Fale com Ela. E que nos deixa aquela ponta de decepção quando a projeção chega ao fim.

O Céu de Suely



Nota: 8

Quem inventou a parábola do filho pródigo, aquele que à casa torna, não conhecia Hermila.

A protagonista de O Céu de Suely (2006) está de volta a Iguatu, interior do Ceará, depois de passar um tempo em São Paulo. Traz o filho pequeno no colo, à espera de Mateus, seu amor, que ficou na cidade grande e logo virá. As coisas não mudaram muito na sua cidade natal. Os chegados, as prostitutas, os moto-taxistas são todos os mesmos. A terra, as ruas, o posto de gasolina são todos os mesmos.

Hermila telefona para São Paulo. Mateus mudou-se sem dizer para onde. Na rodoviária de Iguatu nada dele apacecer.

Como nas trajetórias clássicas do eterno retorno, Hermila de repente atina que está só. Tia e avó a acolhem como a filha que enfim regressou, mudada pelas circunstâncias, agora com uma mexa loira no cabelo ruim. Mas Hermila perdeu o amor numa promessa de reencontro e agora precisa dar novo rumo à sua vida. Iguatu não é uma lavoura arcaica, não há acerto de contas, revisões do passado, não há redenções. Hermila só precisa sair novamente desse lugar-nenhum.

Falta dinheiro para o ônibus. Ela decide rifar uma noite de sexo. E inventa que seu nome é Suely.
O diretor do filme, Karim Aïnouz, filho de brasileira com argelino, também ganhou o mundo a partir do Ceará. Formou-se em arquitetura e urbanismo em Brasília, fez mestrado em história do cinema em Nova York, nos EUA foi assistente de montagem e direção de longas-metragens no início dos anos 90. Trabalhou com Todd Haynes (Longe do Paraíso). Em 2000 assinou um curta-metragem, Rifa-Me, que serviria de embrião a O Céu de Suely.

O primeiro longa de Aïnouz, Madame Satã (2002), um dos melhores filmes brasileiros da Retomada para cá, foi bem recebido em Cannes, transformou-o em expoente. Da história de malandro carioca, o diretor, que completou 40 anos em 2006, agora retorna como o filho pródigo para filmar no seu estado. Mas da mesma maneira que Hermila não reconhece que pertence àquele lugar, Aïnouz prefere narrativas universais.

Não há como evitar o paralelo: saíram também do Nordeste os dois melhores filmes brasileiros do ano passado, Cidade Baixa e Cinema, Aspirinas e Urubus, e em ambos Aïnouz colabora como roteirista. São, como O Céu de Suely, histórias que poderiam transcorrer em lugares diferentes, na medida em que trabalham mais o que se passa na cabeça e no coração dos personagens do que no ambiente ao seu redor. São exemplos de um cinema de sensações, não de eventos.

Aïnouz assume em entrevistas que os seus filmes nascem, primeiramente, no trabalho de iluminação de cena e de preparação de atores. Ele tem à disposição em O Céu de Suely os dois melhores profissionais brasileiros dessas respectivas áreas: o diretor de fotografia Walter Carvalho (Madame Satã) e a preparadora de elenco Fátima Toledo (Cidade Baixa). Pode parecer que pouco acontece enquanto Hermila vaga com sacolas de compra ou pega carona com algum motoqueiro. Mas está acontecendo tudo - na composição dos quadros, no semblante da atriz - e isso sucede graças ao talento coletivo.

Aïnouz não teria da atriz Hermila Guedes a mesma espontaneidade se não fosse o dom de Fátima para preparar atores ao improviso e ao acaso. O diretor não utiliza marcações de cena. Ou seja, o elenco não sabe onde se posicionar para propiciar o melhor ângulo. É a câmera - dirigida por Walter, mas operada por seu filho Lula Carvalho - que segue os personagens e acha o seu lugar. E esse tipo de liberdade, paradoxalmente, só vem com muita labuta e outro tanto de ensaio e tentativa-e-erro.

Não é fácil fazer um filme simples. Simples no sentido de extrair significados que não carecem de auto-explicação, mensagens dadas com um corte preciso, um plano estático que se alonga um pouco mais, uma profundidade de campo que instala corpos ao fundo como se fossem vultos, um foco de luz no lado esquerdo do rosto da mulher. Não é fácil também explicar o que se passa diante de um filme desses, um filme que cresce dentro do espectador e que o implode aos poucos.

O Céu de Suely é um filme emocional que permite leituras cerebrais. Mesmo sabendo que aquele final extraordinário foi pensando para desarmar nossas convenções, nossas facilidades, nosso sentimentalismo de cinema-ficção-padrão, ficamos esperando Hermila na garupa. É uma emancipação, para a personagem e para nós, mas não dá para evitar. Pode ter se passado meia hora do final da sessão, ainda espero Hermila na garupa.

A Fonte da Vida



Nota: 8

A Fonte da Vida
(The Fountain, 2006) do talentoso cineasta Darren Aronofsky (Pi, Requiem Para um Sonho) desperta reações de amor e ódio. O projeto levou cinco anos para sair do papel e teve problemas a partir da pré-produção. Brad Pitt abandonou as filmagens por diferenças criativas com o diretor e foi naufragar em Tróia. Por conta disso, Cate Blanchett também saiu e o orçamento de 75 milhões de dólares foi reduzido para 35 milhões. Todavia, mesmo com todos esses percalços, o filme é brilhante. Um lindo poema sobre o amor entre duas pessoas e a aceitação da morte como parte da evolução e da vida.

A história foi escrita por Ari Handel e Aronofsky e produz enorme reflexão ao final da sessão, aqueles momentos únicos que só o cinema de qualidade consegue proporcionar. Não apenas as imagens, mas os temas e idéias permanecem na memória por dias. A narrativa é complexa, mas não é difícil de entender, basta querer pensar.

Nela, Hugh Jackman é Tommy Creo, um cientista que está em busca da cura do câncer. Para ele é pessoal, já que Izzi (Rachel Weisz), sua esposa, esta morrendo com um tumor cerebral. A chance de sucesso chega juntamente com seu time de pesquisadores, que traz uma amostra de uma árvore singular das selvas da América do Sul. A planta pode ser a cura que ele tanto busca. Enquanto isso, Izzi escreve um livro sobre um conquistador (também interpretado por Jackman) que viaja para o Novo Mundo em busca da Árvore da Vida a pedido da rainha Isabel (também interpretada por Weisz). A terceira parte da história é passada no futuro, quando o cientista (ainda Jackman) viaja pelo espaço.

Pode parecer complicado, mas, ao final, algumas peças do quebra-cabeça se encaixam. Outras ficam inteligentemente vagas e cabe ao espectador (tentar) decifrá-las. Dessa forma, não há uma solução definitiva para o filme, já que seu entendimento em muito se deve às crenças e experiências da cada um.

O tema é conceitualmente denso e ao mesmo tempo rico emocionalmente. Da mesma forma que 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968), do lendário cineasta Stanley Kubrick, provoca uma reflexão sobre a vida, a morte e a existência, A Fonte da Vida trilha um caminho parecido. Mas o combustível de Aronofsky é o amor.

Filosofias à parte, os saltos cronológicos do longa são apenas variações psicológicas do tema. Só o presente realmente esta acontecendo. As outras épocas ajudam a preencher algumas lacunas da história, mas a trama pode ser analisada de forma cartesiana através dos detalhes, como as tatuagens no braço do protagonista. O recurso dá espaço de sobra para que teorias sejam formuladas e essa é a brilhante proposta do cineasta. É fantástico que ainda existam diretores que procuram criar algo mais do que simples entretenimento.

Em relação as atuações, o filme também é um achado. Hugh Jackman (X-Men) revela um lado não conhecido pelo grande público. Ele é carismático. Já provou que sabe cantar e dançar (na Broadway ano passado) e aqui surpreende com uma interpretação emocionalmente devastadora. Conseguimos sentir sua essência em cada gesto e olhar. Suas cenas como o conquistador são boas. As do presente são tocantes e comoventes. As do futuro são brilhantes e complicadíssimas, já que ele está sozinho e consegue ser ao mesmo tempo um lunático, uma alma perdida, um Buda.

Rachel Weisz (O Jardineiro Fiel) não fica atrás. Ela interpreta sua personagem que irá morrer sem os habituais clichês. A atriz proporciona níveis de complexidade, camadas de medo e aceitação, no pequeno espaço de tempo em que aparece. Ela tem olhos lindos e os usa para contar a sua história, registrada de maneira apaixonada pelo diretor - até porque eles são casados - e ele aproveita o tema para mostrar todo seu sentimento por ela.

Todo esse carinho ajudou na concepção de cenas belíssimas. Os recursos reduzidos não impediram Darren de ser criativo. Os efeitos especiais foram filmados num laboratório por meio de experiências químicas. Podemos até notar várias influências de Pi, seu primeiro filme. Temas como a busca incansável e a obsessão reaparecem. A diferença está na montagem. Se antes ela era picotada e com efeitos, agora Darren equilibra os cortes com sons para dar um compasso sutil ao filme. Tudo isso embalado numa trilha sonora hipnótica, escrita por Clint Mansell no estilo de Phillip Glass.

Definitivamente o filme não foi feito para ser exibido em multiplexes e muita gente deve sair revoltada do cinema, como aconteceu em festivais por aí. Mas quem consegue se despir de preconceitos e busca no cinema algo diferente, será recompensado com uma viagem inesquecível.

C.R.A.Z.Y.



Nota: 6

Depois das enormes bilheterias no Canadá, C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor (C.R.A.Z.Y., 2005) continuou seu sucesso no mercado independente mundial. O filme ganhou vários prêmios em festivais e deu prestígio ao diretor Jean-Marc Vallée. Ele já está sendo visto como um possível candidato a fazer parte do seleto hall dos atuais cineastas canadenses mais relevantes, como David Cronenberg, Denys Arcand e Guy Maddin.

C.R.A.Z.Y. segue uma estrutura que todo mundo conhece. A diferença é que não só a vida que conta é muitíssimo interessante, como o modo de apresentá-la torna o filme no mínimo muito prazeroso de assistir. Um fator essencial para obter esse efeito é a eficácia diabólica do roteiro, assinado também pelo próprio diretor, o canadense Jean-Marc Vallée. Do nascimento, na noite de Natal de 1960, até chegar aos 21 anos, em 1981, a narrativa acompanha os passos habituais de um personagem igual a qualquer um de nós. Mas as descobertas da infância, os percalços da adolescência e as ambigüidades da entrada na vida adulta são também passos de uma reinterpretação endemoniada da Paixão de Cristo.

Em vez de desperdiçar sua melhor munição, o roteiro, tentando demonstrar com acrobacias que é capaz de fazer cinema "criativo", Vallée filma de maneira quase tradicional e usa o recurso de pontuar a história com canções de época (de alta voltagem pop) para aumentar a potência de sua obra. Sem as canções para sinalizar as épocas, C.R.A.Z.Y. perderia muito de sua ênfase, pois se trata mais que um filme centrado num personagem, mas de uma narrativa geracional. A adoção da linearidade é um recurso que não implica, neste caso, limitações de significados, pois é com ela que o roteiro consegue transmitir a dinâmica de vai-e-vem entre o personagem e os valores de sua época. Tempos de rápidas mutações sociais e morais e, sobretudo, de modificações ao avesso de muitas certezas.

O filme se inicia em 25 de dezembro de 1960, quando Zachary Beaulieu (atores Emile Vallée como criança e Marc-André Grondin como o adolescente) vem ao mundo. É o quarto entre cinco irmãos, todos meninos, cujas iniciais formam a palavra "crazy" (louco). O filme acompanha os 20 primeiros anos da vida de Zachary. A infância é marcada pelos aniversários natalinos em que seu pai (Michel Côté), invariavelmente, encerra a festa imitando Charles Aznavour. Sua a adolescência traz descoberta de uma sexualidade diferente e sua negação profunda para não decepcionar a família. E a maturidade, enfim, chega com uma libertadora viagem mística por Jerusalém, a cidade que sua mãe (Danielle Proulx) sempre sonhou conhecer.

O projeto levou dez anos para ficar pronto. O roteiro foi escrito por Vallée e François Boulay, baseado nos diários de Boulay. O argumento também conta com passagens da vida pessoal do diretor. Especialmente as cenas da mãe devota e do pai apaixonado por música. Mesmo tendo sido escrito das experiências da dupla, o contexto será reconhecido por qualquer pessoa pertencente a uma família numerosa. E mesmo com essa premissa o filme não cai no melodrama. A história mistura de forma inteligente o sagrado e o profano, o pessoal e o universal. Interessante que o tema não se concentra na descoberta sexual, mas sim sobre o amor.

Vallée negligencia dois dos irmãos, que nem parecem estar no filme, já que surgem e somem na mesma rapidez. Mas isso não impediu de Vallée destilar toda a sua habilidade técnica para contar mais de 20 anos de história. Truques cinematográficos aumentam a carga dramática das cenas. Ele utiliza close-ups, ângulos diferenciados, slow-motion e charme nas imagens de pessoas fumando. A cenografia de Patrice Bricault-Vermette se encaixa perfeitamente à proposta visual. Tudo isso embalado por uma trilha sonora apaixonante com as músicas de Patsy Cline, David Bowie, Pink Floyd, Rolling Stones, Charles Aznavour e The Cure, entre outras feras.

Um filme interessante, bem filmado, que mostra a história de uma geração embalada por sexo, drogas e rock and roll.

O Crocodilo



Nota: 8,5

Há quem se arrepie ao ouvir o nome de Nanni Moretti, por conta das chorosas lembranças do dramático O Quarto do Filho (2001). Mas foi no gênero das comédias que o cineasta italiano consagrou-se e é para esse cenário conhecido que retorna em seu novo longa, O Crocodilo (Il Caimano). A caixa de lenços de papel pode ficar em casa, portanto.

O filme é uma inteligente sátira à era do bilionário midiático milanês Silvio Berlusconi, o "crocodilo" do título, à frente do ministério italiano. Dono de um império de mídia, ele foi primeiro-ministro por três mandatos, quando finalmente foi derrotado - por ínfima margem - pelo economista Romano Prodi, em 2006. Sua longa e polêmica passagem pelo governo foi pontuada por escândalos de corrupção e denúncias de ligações com a Máfia, chegando a virar piada na comunidade européia e no mundo. Uma espécie de Roberto Marinho italiano, midas da mídia, Berlusconi além de controlar o povo italiano pela televisão, com mil e uma emissoras e programas, era dono de empresas de comida e de times de futebol.

A solução encontrada por Moretti para tratar do tema é extremamente criativa. Na tradição dos filmes dentro de filmes, ele coloca Teresa (Jasmine Trinca), uma jovem diretora cansada do momento que vive seu país, em busca de um produtor para seu longa-metragem que denunciará o governo Berlusconi. Ela chega ao personagem principal da trama, o produtor fracassado de filmes B Bruno Bonomo (Silvio Orlando, histérico), que viveu uma era de prosperidade no passado, mas perdeu quase tudo com um filme de ação estrelado pela esposa Paola (Margherita Buy).

Bonomo está perdido. Seu casamento vai de mal a pior, sua empresa dedica-se a terríveis informerciais e as dívidas se acumulam. Num lance de desespero, sem ter lido o texto, ao conversar com um executivo da rede de TV RAI ele comenta sobre o roteiro da estreante. Inadvertidamente, então, começa a produção do filme de esquerda. O problema é que o produtor é eleitor de Berlusconi e um ferrenho detrator do consagrado cinema político italiano...

Dessa forma, Moretti arma o palco para que acompanhemos a vida de Bruno, as dificuldades da produção e, claro, as falcatruas do Primeiro-Ministro. O elenco está impecável, os personagens são muito bem desenvolvidos e as situações cômicas, engraçadíssimas. Além de fazer uma deliciosa comédia, com ótimas e engraçadas atuações, o diretor não deixou de lado sua veia crítica e toda a herança política do cinema italiano. Assim como fizeram os grandes diretores do passado, Moretti critica acidamente a sociedade e os políticos italianos. Fica evidente no filme o ódio que o diretor tem para com o Crocodilo.

Para nós brasileiros, que pouco conhecemos da história não-oficial italiana, esse filme é um grande alerta. Mostra que quem comanda a mídia, comanda a política. Temos que questionar o que nós enfiam goela abaixo pela televisão, o tempo todo.

O Labirinto do Fauno



Nota: 9,5

Um verdadeiro soco no estômago, O Labirinto do Fauno (2006) é com certeza um dos melhores filmes do ano. O cineasta Guillermo Del Toro apresenta uma fábula sombria recheada de metáforas e alegorias. Além de ser puro entretenimento, o longa também é uma ótima refeição mental para os cinéfilos e amantes da literatura fantástica. É fácil encontrar referências a filmes como O Iluminado, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, O Mágico de Oz, Hellboy (do próprio Del Toro) e livros como Alice no país das maravilhas e as fábulas de Hans Christian Andersen e dos Irmãos Grimm.

O filme abre com uma pequena narração sobre uma princesa que abandonou seu reino subterrâneo para conhecer a realidade humana e as conseqüências de seu ato. Depois disso conhecemos Ofelia (Ivana Baquero), uma menina de 10 anos fascinada por livros de contos e fábulas com fadas. Ela está viajando junto com a sua mãe Carmen (Ariadne Gil) para o campo, onde vai encontrar seu padrasto, Vidal (Sergi Lopez). Ele é o capitão das forças fascistas do general Franco, que governa a Espanha em favor dos ricos e poderosos com a aprovação da Igreja Católica. Logo de cara percebemos que Vidal é um homem extremamente sádico e que maltrata Ofelia.

Ao redor de sua nova casa, a menina encontra um labirinto que leva a uma trilha subterrânea. Lá ela conhece o Fauno (o mímico Doug Jones), uma criatura metade humana, metade bode, que a convence de que ela é a princesa perdida do reino subterrâneo e que precisa realizar três tarefas para retornar para seu reino. Ao mesmo tempo em que Ofelia embarca nessa viagem repleta de fantasia, Vidal não poupa esforços e sadismo para exterminar os guerrilheiros rebeldes que ameaçam o governo fascista.

Realidade e fantasia se completam em um verdadeiro banquete de cenas e personagens inesquecíveis. Visualmente, o filme é soberbo. A cor é extremamente carregada de um sombreado que transforma a narrativa em um livro antigo de fábulas.

Inteligentemente, Del Toro transporta seu argumento para o campo. Cercado de florestas, o público se sente confortável em aceitar que possa existir por ali um universo mítico. Envolvendo este universo estão as duras cercas do mundo real, característica que também marca o trabalho de outros diretores fantásticos, como Tim Burton e Terry Gilliam. O único ingrediente diferente no filme de Del Toro são os toques surrealistas herdados do cineasta espanhol Luis Buñuel, outro que utilizou sua obra para criticar os fascistas.

Esse universo onírico e gótico é a espinha dorsal do filme. Del Toro não delimita o que é fantasia ou realidade. Ele aponta caminhos e deixa que o público embarque na viagem de sua preferência. Mesmo na conclusão, Del Toro contrasta os dois mundos. O espectador tem a possibilidade de escolher baseado em suas crenças pessoais. Quem não acredita em fadas, lendas e mitologia não se sentirá enganado. Otimistas que ainda vêem esperança no mundo caótico em que vivemos ficarão satisfeitos. E essa dualidade fica evidente na personalidade de Ofelia. Ela mostra que talvez a melhor maneira de escapar da realidade seja criando um mundo de fantasia.

Del Toro correlaciona seus personagens fabulescos com os de carne e osso. Nas tarefas, Ofelia é obrigada a enfrentar criaturas horripilantes. Impossível não associá-las à brutalidade de Vidal. Por mais aterrorizantes que sejam as aparências dos seres, fica a impressão de que os humanos são os verdadeiros vilões.

Fica evidente a diferença entre o mundo de Ofelia e o de Vidal. Ela acredita em sonhos e fantasia, sentimentos e características vitais para o desenvolvimento do ser humano. Vidal é um produto de mundo rígido, autoritário e fascista. Sua ideologia é baseada na violência. Del Toro aproveita para analisar psicologicamente como homens dessa natureza são resultado de uma relação agressiva e abusiva dos seus pais.

Mas o debate não é só social, mas também político. Vidal não consegue ver nos rebeldes uma ameaça. Para ele, é uma questão de tempo para que todos sejam eliminados. Em A Espinha do Diabo (2001), Del Toro já tinha utilizado crianças para apresentar temas políticos como pano de fundo - a mesma guerra civil espanhola. Os dois filmes se completam em significado. E a mensagem de Del Toro não é sobre a perda da inocência, mas sim de como temos que nos abarcar a ela para conseguirmos sobreviver emocionalmente.

O elemento humano por trás dos comentários e mensagens de Del Toro reforçam ainda mais suas idéias. Todo o elenco está excelente. Mas quem chama a atenção é Sergi Lopez. Impossível desviar o olhar da tela quando ele aparece. Ele cria um vilão completamente odiável e se torna o ser mais asqueroso e repugnante, mesmo rodeado pelas criaturas mais estranhas possível.

Del Toro realizou todo seu filme com uma equipe basicamente mexicana, mas sem dispensar a máquina hollywoodiana. Ele, Alejandro Gonzáles Iñárritu e Alfonso Cuarón (também produtor do filme) são exemplos de cineastas que nunca deixaram de imprimir sua marca autoral em suas produções, mesmo com as amarras dos grandes estúdios. Coincidentemente, ou não, todos os três são produtos de um povo que até hoje é tratado com desprezo pelos norte-americanos. O preconceito está longe de acabar, mas o talento e o sucesso dos três é a melhor resposta.

Eu Me Lembro



Nota: 7,5

Eu Me Lembro, primeiro longa-metragem do veterano em curtas Edgard Navarro, propõe uma visita aos grandes momentos/movimentos que mudaram a face do país. De meados da década de 1950 até os anos 1970 acompanhamos tais passagens históricas através dos olhos de uma criança, que se torna homem nesse período.

Guiga, o protagonista, começa pequeno numa provinciana Salvador e, conforme cresce, nutre interesse pela literatura e o cinema. As artes o colocam em contato com o mundo dos pensadores numa época em que pensar causa problemas, em plena Ditadura Militar. Mais tarde, com os amigos, chegam as experiências lisérgicas.

O cruzamento de dois passados, o individual e o coletivo, como busca de compreensão do caos presente virou tema recorrente em filmes brasileiros recentes. A sobreposição de história pessoal e do país ao ponto de uma se constituir no foco que elucida a outra encontra-se tanto na poesia de O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues, quanto na pedagogia de Veias e Vinhos, de João Batista de Andrade. Eu Me Lembro, reafirma essa temática num esforço mais polifônico.

Desde o título, o longa de Navarro assume-se como um trabalho da memória, em que a nostalgia é a força que pretende restaurar aquilo que foi perdido, dissipado ou simplesmente agredido ao longo do tempo por forças autoritárias. Para isso Navarro procura estabelecer, antes de tudo, uma empatia com o espectador por meio da identificação com seu protagonista, que se transformará sob nosso olhar em adolescente rebelde, jovem libertário e adulto em crise.

É em particular na primeira parte dessa história que o filme de Navarro é mais feliz porque se distingue por um encanto lírico típico da nostalgia. No prólogo dessa vida condenada, como a de milhões de nós, é que se encontra mais do que se chama comum.
A magia da natureza e o despertar do desejo misturam-se aos afetos e aos desafetos domésticos, que o diretor pinta no retrato de cada figura da família, tenha ela ou não maior importância na fase seguinte da narrativa.

Do pai autoritário às criadas afetivas, passando pela mãe edipiana, a tia lúbrica, o irmão don-juanesco e a irmã carola, todos os personagens desse universo aparecem carregados com um humor peculiar. A respeito de Eu Me Lembro, fala-se muito numa inspiração felliniana, sobretudo nas similitudes com Amarcord, o que não é equivocado. O que torna, contudo, mais atraente essa referência não são os meros elementos recorrentes - o tio louco, a libido juvenil -, mas a transmutação do imaginário, da Itália para a Bahia através de um barroco transbordante, que contamina de excesso todas as figuras da infância, sobretudo as femininas.

Quando sai dessa vertente o filme se torna menos interessante. É o que acontece quando avança no tempo e tenta deixar claro o efeito traumático das mutações históricas. Um ponto de ruptura dramática o reconduz para um eixo demasiado explicativo e a partir daí o destino do protagonista passa a rimar mais com os desatinos sociais do país. Quando novo, o personagem observava e captava tudo quietinho, deixando aos telespectadores a tarefa de compreender ou analisar o que isso traria ao personagem no futuro. É interessante essa liberdade. Na parte adulta, o personagem toma o controle da história, ditando seu rumo, deixando o telespectador observando as mudanças, como se ela fossem necessárias, e únicas verdades possíveis.

A necessidade de reiterar o valor "barra-pesada" do regime militar faz Eu Me Lembro patinar no território do clichê, com a entrada de personagens estereotipados, apesar de verídicos, como o guerrilheiro e o "bicho grilo".
É só no fim, ao restituir a primazia às delícias do imaginário, que Eu Me Lembro reencontra sua originalidade. Talvez se tivesse deixado o filme inteiro com esse olhar observador da infância, inclusive apenas observando a ditadura, teria mostrado mais contundentemente a crueldade do período.