04 dezembro 2006

Crônica de uma Fuga



Nota: 8,5

É curioso que, num momento em que ex-montoneros estejam à frente do governo da Argentina, surja um filme que lança um olhar crítico com relação às atividades guerrilheiras durante a ditadura militar naquele país (1976-1983). Obviamente, Crônica de uma Fuga, de Adrián Caetano, não faz a defesa do regime, e expõe, com cores e intensidade artísticas, todo o horror do sistema de repressão responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas, de acordo com entidades de direitos humanos.

Entretanto, o diretor uruguaio, ao retratar a maneira como os prisioneiros se relacionavam no cativeiro da Mansión Seré, recriado a partir do livro do ex-prisioneiro Claudio Tamburrini (hoje professor de filosofia da Universidade de Estocolmo), não deixa de ressaltar que aquele era um ambiente de intriga, delação, traição e disputas de poder por parte dos guerrilheiros, e não um celeiro de candidatos a mártires.

Nesse microuniverso, Tamburrini, que é inocente e foi preso por engano, surge como o mais lúcido do grupo e, por conta disso, apavorado com o delírio ideológico que havia tomado conta dos colegas. Esse olhar ambíguo é um dos trunfos do filme de Caetano. Outro ponto caro ao diretor é a fixação em mostrar a deterioração -carnal e espiritual- a que chegam homens submetidos a tal grau de sofrimento. Os quatro protagonistas se transformam de rapazes vigorosos em figuras encolhidas e semi-humanas. Vítimas de humilhação psicológica e surras duríssimas, passam a maior parte do tempo agachados, rastejando ou simplesmente colados ao chão, muitas vezes nus e em carne viva. As imagens são quase bíblicas, mas sem que se dê aos personagens um ar de santidade. Os olhares revelam uma confusão de sentimentos que vai da desolação ao ódio.
"Estamos desaparecendo", diz um deles. A frase é literal - no sentido de que são homens se esfacelando - e dúbia do ponto de vista político -"desaparecidos", afinal, são os apagados pelo regime sem que vestígios sejam encontrados.

A câmera, solta na mão do cineasta, assume papel participativo, pois parece ser conduzida pelo olhar de um outro prisioneiro, fisicamente na cena. Caetano abusa de tomadas feitas a partir do chão, pois é em colchões ou estrados muito baixos que a "ação" acaba por se passar a maior parte do tempo. A Argentina já fez muitos filmes sobre a ditadura. Mas Crônica inscreve-se entre aqueles que realmente trazem novos elementos à discussão do tema. Foi assim com A História Oficial (Luis Puenzo, 1985), em que uma professora se dá conta de que pessoas desapareceram durante o regime e que sua filha adotiva pode ter sido roubada dos verdadeiros pais.

Como em Un Oso Rojo (2002), quando abordou a volta de um ex-detento à vida comum, Caetano concentra a câmera sobre a figura humana submetida à privação da liberdade, tema que já havia explorado antes em Tumberos ("presidiários" na gíria portenha), série que criou e dirigiu com êxito na televisão argentina há quatro anos.

"Gosto de trabalhar com o verossímil, com o que vai sendo montado na cabeça do espectador. Meu cinema é simples, sem a necessidade de mostrar que há um autor por trás."

Crônica de uma Fuga estreou em abril na Argentina, um mês após se completarem três décadas da instalação do regime militar no país, num momento em que o assunto anda sendo bastante debatido até em uma telenovela. Coincidentemente, a estrela desse folhetim, batizado de Montecristo, é Pablo Echarri, também um dos atores centrais no longa de Caetano, no qual interpreta o chefe das tarefas da Casa do Terror.

"Se o filme desencadear mais debate, que seja bem-vindo, mas não fiz Crônica pensando nisso", diz o cineasta, que se programa para iniciar, em 2007, as filmagens de mais uma história de "tumberos": a fuga do presídio uruguaio de Punta Carretas (hoje um shopping center), em 1971, quando 111 pessoas escaparam por um túnel que desembocava na sala de estar de uma residência.

"Sou bastante cético em relação a todo esse debate que está tendo lugar na Argentina a respeito da ditadura. Desconfio de toda essa mobilização, me parece estranho que tudo isso esteja aflorando nesse momento", diz. "Agora mesmo temos um desaparecido em plena democracia", lembra o diretor, em referência ao pedreiro Jorge Julio López, 77, uma das testemunhas-chave do julgamento que condenou à prisão Miguel Etchecolatz, ex-oficial da polícia durante o regime militar argentino e responsável, entre outros, por cerca de 30 centros clandestinos de detenção.

López desapareceu há 24 dias, e o governo de Buenos Aires está oferecendo uma recompensa de 200 mil pesos (cerca de R$ 138.550) por informações, mas até agora o paradeiro da testemunha permanece ignorado. "As coisas não mudaram", afirma Caetano.