Estamira
Nota: 8,5
Dona Estamira, de 63 anos, era apenas mais um retrato nas lentes do fotógrafo Marcos Prado no lixão de Jardim Gramacho. Em 2000, Prado - que já realizava há seis anos um projeto fotográfico no local - esbarrou com a senhora. Na verdade, tudo nos dá a entender que foi ela quem o achou. "Posso tirar uma foto sua?", "Claro, mas depois sente aqui que eu quero conversar". Foi assim que aconteceu a aproximação deste estreante na direção e de Estamira, que é a personagem-título do documentário.
Estamira é como muitos catadores de lixo, marginalizados pela sociedade, que se reconstroem onde todo mundo joga restos fora. São ex-traficantes, ex-trabalhadores, ex-domésticas, jovens, crianças ou idosos e "Estamiras" à procura de sustento próprio ou até de uma família inteira. Mas, o que torna esta pessoa tão especial a ponto de ganhar um filme só para ela? Diagnosticada como esquizofrênica por um centro psiquiátrico público, ela profetiza, filosofa, sem censura. Muitas vezes, é difícil entender o que ela fala, o que quer falar. Apesar da espontaneidade das palavras, de uma fala singular, seus raciocínios são coerentes.
Para o psicanalista Contardo Calligaris, o discurso de Estamira não é paranóico. Muito pelo contrário, é lúcido. Ela tem consciência do jogo de palavras do seu próprio nome: "Estamira, esta mira", repete muitas vezes. Em um dos momentos de maior lucidez, ela questiona o destino do lixo. "Quem economiza, tem", enfatiza a senhora. Ela usa de neologismos para falar sobre os problemas da humanidade. Afirma que é preciso trabalho, suor, mas não sacrifício. E chora, muito. E canta. E é feliz.
Ela ouve vozes, fala sozinha (muitas vezes num dialeto próprio) ou com os "astros", blasfema contra Deus, é tratada como louca pelos filhos, é dona de uma imaginação fértil e poderosa. Ao mesmo tempo em que parece uma líder despótica no lixão, é muito carismática. "Se eu não fosse casado, casava com ela", fala um morador do aterro. Ela se diz o tempo todo feliz naquele lixão, pois foi onde encontrou os amigos que lhe dão suporte, respeito, socialização e Marcos Prado.
"Acho que Estamira está muito bem ali, num lugar privilegiado", diz Contardo Calligaris ao analisar a situação dela. "Se ela morasse em outro lugar, não teria a mesma capacidade de criação", complementa o psiquiatra. Ela acredita que tem uma missão: "mostrar a verdade aos homens e capturar a mentira". Certo dia, perguntou ao documentarista qual era a missão dele e antes de obter resposta, disse: "Sua missão é revelar a minha missão". E é isto que Prado tentou passar com o filme.
Nas palavras do próprio diretor, o documentário Estamira é poético, apesar da tentativa biográfica. A câmera de Prado está sempre presente, em cada lágrima, em casa objeto e pessoa que rodeia a vida da personagem. A poesia se dá também na montagem do filme, que intercala o preto e branco e o colorido. A princípio, a intenção era apresentar a vida da personagem de forma cronológica, mostrar como seu comportamento mudou com o tratamento psiquiátrico com uso de medicamentos tarja preta, que coincide com o início das filmagens, em 2000. Mesmo com a desistência do cineasta em fazer esta montagem linear, o espectador ainda pode acompanhar os efeitos dos remédios. "O discurso dela empobreceu, eu acompanhei a fala dela minguar", fala Prado.
Depois de apresentar o cotidiano de Estamira, Prado parte para a profundidade, faz o espectador entender porque ela odeia tanto Deus, que chama de estuprador, assaltante e arrombador. Os filhos trazem a resposta, assim como fotos do passado. O documentário revela que ela era uma pessoa religiosa, mas foi vítima de abuso sexual, prostituição, morou na rua, foi traída muitas vezes em seus dois casamentos, teve que dar a filha mais nova para outra família cuidar por falta de condições (e não de amor).
O problema mental de Estamira também está no sangue. Ela teve o mesmo destino da mãe, igualmente diagnosticada como paciente psquiátrica. Foi obrigada pelo segundo marido a interná-la e carrega esta culpa até hoje. O seu primogênito chegou a fazer o mesmo ao deixá-la num hospício amarrada e presa a uma camisa de força. A fita aborda muitas questões e, como Calligaris afirma, é um filme pedagógico, uma aula de psicanálise. Mas, para ele, o assunto principal não tem nada a ver com psique, moral e nem religião. O filme mostra uma insanidade interessante, de alguém que coloca a vida no limiar.
Após de "conviver" 115 minutos com Estamira, ser dominado por sentimentos como dó, tristeza e admiração por sua força, surge a inevitável vontade de saber como ela está hoje. "Ela está muito bem. Eu resolvi adotar Dona Estamira, todo o mês ela recebe um dinheirinho e não precisa mais ir ao lixão, apesar de se sentir feliz lá", conta o diretor Marcos Prado. Ela deixou o barraco em que morava e agora tem uma casa. O tratamento psiquiátrico continua a ela toma seus remédios por vontade própria. Estamira foi a primeira pessoa a ver o filme, ainda na ilha de edição e confessa não lembrar de muitas cenas. Também reconhece que o tom da narrativa é forte, mas sabe que faz parte se sua missão mostrar ao mundo o que foi capturado honestamente pelas lentes.
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