04 dezembro 2006

Eu Me Lembro



Nota: 7,5

Eu Me Lembro, primeiro longa-metragem do veterano em curtas Edgard Navarro, propõe uma visita aos grandes momentos/movimentos que mudaram a face do país. De meados da década de 1950 até os anos 1970 acompanhamos tais passagens históricas através dos olhos de uma criança, que se torna homem nesse período.

Guiga, o protagonista, começa pequeno numa provinciana Salvador e, conforme cresce, nutre interesse pela literatura e o cinema. As artes o colocam em contato com o mundo dos pensadores numa época em que pensar causa problemas, em plena Ditadura Militar. Mais tarde, com os amigos, chegam as experiências lisérgicas.

O cruzamento de dois passados, o individual e o coletivo, como busca de compreensão do caos presente virou tema recorrente em filmes brasileiros recentes. A sobreposição de história pessoal e do país ao ponto de uma se constituir no foco que elucida a outra encontra-se tanto na poesia de O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues, quanto na pedagogia de Veias e Vinhos, de João Batista de Andrade. Eu Me Lembro, reafirma essa temática num esforço mais polifônico.

Desde o título, o longa de Navarro assume-se como um trabalho da memória, em que a nostalgia é a força que pretende restaurar aquilo que foi perdido, dissipado ou simplesmente agredido ao longo do tempo por forças autoritárias. Para isso Navarro procura estabelecer, antes de tudo, uma empatia com o espectador por meio da identificação com seu protagonista, que se transformará sob nosso olhar em adolescente rebelde, jovem libertário e adulto em crise.

É em particular na primeira parte dessa história que o filme de Navarro é mais feliz porque se distingue por um encanto lírico típico da nostalgia. No prólogo dessa vida condenada, como a de milhões de nós, é que se encontra mais do que se chama comum.
A magia da natureza e o despertar do desejo misturam-se aos afetos e aos desafetos domésticos, que o diretor pinta no retrato de cada figura da família, tenha ela ou não maior importância na fase seguinte da narrativa.

Do pai autoritário às criadas afetivas, passando pela mãe edipiana, a tia lúbrica, o irmão don-juanesco e a irmã carola, todos os personagens desse universo aparecem carregados com um humor peculiar. A respeito de Eu Me Lembro, fala-se muito numa inspiração felliniana, sobretudo nas similitudes com Amarcord, o que não é equivocado. O que torna, contudo, mais atraente essa referência não são os meros elementos recorrentes - o tio louco, a libido juvenil -, mas a transmutação do imaginário, da Itália para a Bahia através de um barroco transbordante, que contamina de excesso todas as figuras da infância, sobretudo as femininas.

Quando sai dessa vertente o filme se torna menos interessante. É o que acontece quando avança no tempo e tenta deixar claro o efeito traumático das mutações históricas. Um ponto de ruptura dramática o reconduz para um eixo demasiado explicativo e a partir daí o destino do protagonista passa a rimar mais com os desatinos sociais do país. Quando novo, o personagem observava e captava tudo quietinho, deixando aos telespectadores a tarefa de compreender ou analisar o que isso traria ao personagem no futuro. É interessante essa liberdade. Na parte adulta, o personagem toma o controle da história, ditando seu rumo, deixando o telespectador observando as mudanças, como se ela fossem necessárias, e únicas verdades possíveis.

A necessidade de reiterar o valor "barra-pesada" do regime militar faz Eu Me Lembro patinar no território do clichê, com a entrada de personagens estereotipados, apesar de verídicos, como o guerrilheiro e o "bicho grilo".
É só no fim, ao restituir a primazia às delícias do imaginário, que Eu Me Lembro reencontra sua originalidade. Talvez se tivesse deixado o filme inteiro com esse olhar observador da infância, inclusive apenas observando a ditadura, teria mostrado mais contundentemente a crueldade do período.