O Céu de Suely
Nota: 8
Quem inventou a parábola do filho pródigo, aquele que à casa torna, não conhecia Hermila.
A protagonista de O Céu de Suely (2006) está de volta a Iguatu, interior do Ceará, depois de passar um tempo em São Paulo. Traz o filho pequeno no colo, à espera de Mateus, seu amor, que ficou na cidade grande e logo virá. As coisas não mudaram muito na sua cidade natal. Os chegados, as prostitutas, os moto-taxistas são todos os mesmos. A terra, as ruas, o posto de gasolina são todos os mesmos.
Hermila telefona para São Paulo. Mateus mudou-se sem dizer para onde. Na rodoviária de Iguatu nada dele apacecer.
Como nas trajetórias clássicas do eterno retorno, Hermila de repente atina que está só. Tia e avó a acolhem como a filha que enfim regressou, mudada pelas circunstâncias, agora com uma mexa loira no cabelo ruim. Mas Hermila perdeu o amor numa promessa de reencontro e agora precisa dar novo rumo à sua vida. Iguatu não é uma lavoura arcaica, não há acerto de contas, revisões do passado, não há redenções. Hermila só precisa sair novamente desse lugar-nenhum.
Falta dinheiro para o ônibus. Ela decide rifar uma noite de sexo. E inventa que seu nome é Suely.
O diretor do filme, Karim Aïnouz, filho de brasileira com argelino, também ganhou o mundo a partir do Ceará. Formou-se em arquitetura e urbanismo em Brasília, fez mestrado em história do cinema em Nova York, nos EUA foi assistente de montagem e direção de longas-metragens no início dos anos 90. Trabalhou com Todd Haynes (Longe do Paraíso). Em 2000 assinou um curta-metragem, Rifa-Me, que serviria de embrião a O Céu de Suely.
O primeiro longa de Aïnouz, Madame Satã (2002), um dos melhores filmes brasileiros da Retomada para cá, foi bem recebido em Cannes, transformou-o em expoente. Da história de malandro carioca, o diretor, que completou 40 anos em 2006, agora retorna como o filho pródigo para filmar no seu estado. Mas da mesma maneira que Hermila não reconhece que pertence àquele lugar, Aïnouz prefere narrativas universais.
Não há como evitar o paralelo: saíram também do Nordeste os dois melhores filmes brasileiros do ano passado, Cidade Baixa e Cinema, Aspirinas e Urubus, e em ambos Aïnouz colabora como roteirista. São, como O Céu de Suely, histórias que poderiam transcorrer em lugares diferentes, na medida em que trabalham mais o que se passa na cabeça e no coração dos personagens do que no ambiente ao seu redor. São exemplos de um cinema de sensações, não de eventos.
Aïnouz assume em entrevistas que os seus filmes nascem, primeiramente, no trabalho de iluminação de cena e de preparação de atores. Ele tem à disposição em O Céu de Suely os dois melhores profissionais brasileiros dessas respectivas áreas: o diretor de fotografia Walter Carvalho (Madame Satã) e a preparadora de elenco Fátima Toledo (Cidade Baixa). Pode parecer que pouco acontece enquanto Hermila vaga com sacolas de compra ou pega carona com algum motoqueiro. Mas está acontecendo tudo - na composição dos quadros, no semblante da atriz - e isso sucede graças ao talento coletivo.
Aïnouz não teria da atriz Hermila Guedes a mesma espontaneidade se não fosse o dom de Fátima para preparar atores ao improviso e ao acaso. O diretor não utiliza marcações de cena. Ou seja, o elenco não sabe onde se posicionar para propiciar o melhor ângulo. É a câmera - dirigida por Walter, mas operada por seu filho Lula Carvalho - que segue os personagens e acha o seu lugar. E esse tipo de liberdade, paradoxalmente, só vem com muita labuta e outro tanto de ensaio e tentativa-e-erro.
Não é fácil fazer um filme simples. Simples no sentido de extrair significados que não carecem de auto-explicação, mensagens dadas com um corte preciso, um plano estático que se alonga um pouco mais, uma profundidade de campo que instala corpos ao fundo como se fossem vultos, um foco de luz no lado esquerdo do rosto da mulher. Não é fácil também explicar o que se passa diante de um filme desses, um filme que cresce dentro do espectador e que o implode aos poucos.
O Céu de Suely é um filme emocional que permite leituras cerebrais. Mesmo sabendo que aquele final extraordinário foi pensando para desarmar nossas convenções, nossas facilidades, nosso sentimentalismo de cinema-ficção-padrão, ficamos esperando Hermila na garupa. É uma emancipação, para a personagem e para nós, mas não dá para evitar. Pode ter se passado meia hora do final da sessão, ainda espero Hermila na garupa.
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