04 dezembro 2006

Volver



Nota: 6

A mais notória característica do cinema de Pedro Almodóvar é a sua relação confessional com o universo feminino. Mas a obra do espanhol pode ser vista também como a negação do mundo dos homens. Há uma cena em Volver (2006) - seu retorno às raízes depois de um raro trabalho masculino, Má Educação (2004) - que sintetiza formidavelmente essa idéia.

Sole (Lola Dueñas, de Mar Adentro), irmã de Raimunda (Penélope Cruz), acaba de saber que Tia Paula morreu, e retorna ao vilarejo onde a família cresceu para participar do velório. O povo do lugar, cheio de folclores, diz que Tia Paula estava sendo cuidada nos últimos anos de sua vida pelo fantasma de Irene (Carmen Maura), mãe de Sole e Raimunda. Sole não acredita - mas na hora em que entra na casa se espanta com a aparição de Irene. Corre do fantasma da mãe, abre a porta da rua e se depara com um grupo de homens, engravatados para o velório. A câmera sempre branda de Almodóvar corta rápido então, de close em close nos homens. E Sole dá meia-volta. Instintivamente, prefere encarar o fantasma.

Pode ser reflexo da sua própria vida ou reação aos machismos arraigados da cultura hispânica - o fato é que Almodóvar cria em Volver uma redoma para acolher as suas mulheres. A grande graça de seu trabalho como cineasta é a maneira como ele expõe as fraquezas e as forças dessas mulheres, sem paternalismo, e como elas resolvem conflitos entre si, num mundo à parte da guerra dos sexos.

Há outros homens em Volver, mas são como adereços, MacGuffins - servem mais para tocar a trama adiante do que para exprimir o que há realmente de pertinente na história. Sole é separada, ficamos sabendo, mas seu marido nunca aparece na tela. O pai da família também não é mostrado. O marido de Raimunda não demora a sumir. O enterro de cadáveres masculinos no filme são como alegorias: livrar-se das amarras do sexo oposto é o caminho que cabe a elas para se encontrarem como mulheres.

Raimunda mora em Madri, depois de um passado mal resolvido com a mãe, e anda às voltas com um desses empecilhos masculinos. Quando retorna do vilarejo com o fantasma no porta-malas do carro, Sole não conta a Raimunda que viu a aparição da mãe. Pelo contrário, coloca Irene para lavar cabelos no seu cabelereiro improvisado dentro de casa e a esconda da irmã. Acontece que mãe e filhas têm assuntos pendentes.

Depois de excursionar por metalinguagens e devaneios de realidade e ficção em Fale com Ela e Má Educação, Almodóvar retorna à narrativa tradicional com Volver. Isso quer dizer que o filme tem começo, meio e fim, sem atalhos ou contornos, mas não significa que é vazio de significados ou interpretações.

Almodóvar já renasceu algumas vezes como cineasta. A primeira foi em 1988, com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, que marcou sua afirmação definitiva fora da Espanha. A segunda foi em 1995, com A Flor do Meu Segredo, quando ele abandonou uma certa ênfase no humor debochado para se aprofundar no melodrama. Esse aprofundamento chegou ao ápice em Tudo sobre Minha Mãe (1999) e Fale com Ela (2002), duas obras-primas, mas começou a dar sinais de desgaste em Má Educação (2004).

Volver, em vários sentidos, é mais bem resolvido que Má Educação, mas continua apontando para um certo fastio no exercício melodramático e para a necessidade de um novo renascimento artístico.

Que não haja dúvidas: estamos falando de um dos melhores cineastas em atividade no mundo, e Volver ainda está cheio de suas melhores qualidades. Elas aparecem, principalmente, na recusa por um julgamento moralista dos atos de seus personagens; no olhar generoso, porém não indulgente, sobre as fraquezas do ser humano; na composição dos planos e na escolha da palheta de cores, e na excelência da encenação e da direção de atores.

Volver (Voltar) marca a volta do cineasta à região de La Mancha, onde ele nasceu. É ali que ele situa boa parte da saga de sua heroína Raimunda (Penélope Cruz, em composição visivelmente inspirada em Sophia Loren). O filme marca também um reencontro com Carmen Maura, atriz-fetiche de sua primeira fase, com quem ele não trabalhava desde Mulheres à Beira.... Nesse reencontro, a morte, em outros filmes um tema periférico, assume um papel central.

Em Volver, a morte ganha uma concretude poucas vezes vista no cinema. Almodóvar procura traduzir, cinematograficamente, o sentimento que nos enche depois da perda de uma pessoa querida, aquela espécie de presença que se faz ver pela ausência, pelos signos deixados pelos mortos, pelos rastros que ficam sobre a terra com a ausência do corpo.

Em vários momentos, Almodóvar traduz essa sensação com clareza absoluta, demonstrando o pleno domínio que tem sobre a linguagem. Em outros, parece não saber muito bem para onde ir, principalmente quando a história caminha para seu final, anticlimático. À medida em que o filme perde o rumo, perde também a emoção -algo que não faltava, absolutamente, a Tudo sobre Minha Mãe e a Fale com Ela. E que nos deixa aquela ponta de decepção quando a projeção chega ao fim.