Coração de Fogo
Nota: 8
Duvido que seja mera coincidência. A safra do cinema argentino que chega às nossas telas calca-se em escolhas baseadas em temas e aspectos mais ou menos semelhantes. Ao contrário do que se imagina, a produção de lá é bem mais vasta. E o resultado, portanto, na média ponderada, tomando-se um filme pelo outro, é de uma cinematografia apenas mediana. Entretanto, graças a essa fina peneira feita, ao atravessar a fronteira e chegar às principais capitais brasileiras, a sensação otimista e equivocada que fica é a de que a produção hermana é superior à nossa, em termos de qualidade. Que nada. São apostas seguras, feitas em cima dos resultados de sucessos anteriores e dos motivos que levaram essa platéia à comoção.
É óbvio afirmar que nem todos os filmes cisplatinos falam sobre a mesma coisa. Mas existe sim, nestes blockbusters vizinhos, uma espécie de receita de bolo em seu preparo que faz com que o público brasileiro se delicie com essa massa pronta já na primeira mordida. Os argentinos são mais habilidosos na ironia. Enquanto os brasileiros, no geral, ou se levam a sério demais ou não se levam nada a sério, os argentinos usam um certo humor judaico que é o de achar graça dentro da própria tristeza. É um rir de si próprio, de sua condição. Não por conformismo, muito menos auto-indulgência. Talvez essa fina ironia, esse humor refinado, seja mesmo uma questão de sobrevivência, chutando alto. O tom de suas “comédias dramáticas” está mais pra Woody Allen do que pra Renato Aragão. Apesar dessa suposta leveza, o que está por trás disso é um não se deixar abalar pela decadência pátria inevitável. Os argentinos vêem de perto, com mais desencanto do que sadismo, o desmoronamento de suas raízes. Em Nove Rainhas (2000), há a nítida falência do sistema econômico. Em O Filho da Noiva (2001), o protagonista é um homem de meia-idade em crise, tendo de conviver com sua mãe esclerosada. Até mesmo O Abraço Partido (2004) mostra, de leve, um ruir arquitetônico, uma transformação híbrida dos alicerces da sociedade.
Coração de Fogo (Corazón de Fuego, 2002), de Diego Arsuaga, não foge dessa regra imposta por si mesmos e, literalmente, segue essa mesma linha. Há no filme todos os ingredientes comuns aos trabalhos citados, seja na revelação do retrato esmaecido de seu terreno, seja na busca utópica por uma solução. A tentativa de se erguer através da combinação de saudosismo e de ressentimento. Pepe (Federico Luppi, de Histórias Mínimas), Professor (Hector Altério, de O Filho da Noiva), Dante (José Soriano), veteranos funcionários de uma antiga empresa estatal de trens, mais o menino Guito (Balaram Dinard) que entra de gaiato, armam um plano para “seqüestrar” uma histórica locomotiva, recentemente adquirida por um estúdio de Hollywood através do produtor Jimmy Ferreira (Gastón Pauls, de Nove Rainhas), antes que ela seja enviada para fora do país.
O longa é simples assim. Não há, digamos, acontecimentos elaborados pra “esquentar” a trama. É um típico trail movie, uma adaptação do gênero. Um pequeno grande filme. Uma superprodução às avessas. A locomotiva, que em outrora costumava representar o progresso, a civilização, a entrada do mercado de trabalho em regiões virgens, aqui é vista apenas como um símbolo de um passado enferrujado. Não há nela qualquer resíduo do imaginário de velocidade, tanto é que seu abastecimento à base de carvão é lento, pesado. Pois o filme não fala de travessias no espaço, cortando matas e invadindo velhos oestes, mas sim de uma travessia pelo tempo, nos trilhos do desgaste histórico pelo qual passa o país de Maradona. Entre os infratores idosos, um deles tem súbitos ataques de perda de memória. Outro tem problemas cardíacos. Outro vive das histórias de um pretérito glorioso, época em que valia a pena lutar. Sintomas de uma nação senil, cuja única resistência encontra-se em organismos debilitados. O filme mostra que a rendição ao entreguismo capitalista cabe somente aos gagás. O menino, que nem tem idade suficiente pra saber quem é Sophia Loren, representa a juventude não esclarecida, que participa dos movimentos de rebelião mas não tem consciência da importância desses atos.
Há sim, no trajeto, um ranço ideológico até natural. O impacto do conteúdo da flâmula hasteada no dorso do vagão solitário, com os dizeres de que o patrimônio nacional não deve se render aos capitais estrangeiros, parece ter a mesma idade dos personagens. Há uma ingenuidade não nociva no filme, o que não diminui sua apreciação. Coração de Fogo é octagenário na cabeça, mas pueril em suas artérias. Seu sabor está justamente nas desventuras em série, nas missões desbravadoras de passar por cima de rochas, barreiras e pontes de safena.